A tentativa de golpe de Estado que culminou nos ataques de 8 de janeiro de 2023 teve na desinformação um de seus principais pilares. Longe de ser um subproduto da retórica política, ela aparece no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, condenado nesta quinta-feira (11) pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, como elemento central de planejamento e execução da trama golpista.
De acordo com os ministros, a mentira deliberada foi instrumentalizada não apenas como discurso, mas como mecanismo de corrosão da confiança pública nas instituições, de mobilização social e de preparação psicológica para a violência – e, por essas particularidades, não são meras mentiras protegidas pela liberdade de expressão.
Aos Fatos já havia mostrado no especial Golpeflix, lançado em 2023 no aniversário do golpe militar de 1964, que as plataformas digitais deram espaço para que um projeto militarista e autoritário instilasse paranoia e mobilizasse turbas a partir de incentivos cognitivos – como engajamento – ou financeiros – como a monetização de lives. Em seu voto, a ministra Cármen Lúcia destacou a concepção performática do golpe:
“Nós estamos numa sociedade em que as pessoas querem tanto se mostrar, mais do que ser, que elas querem mostrar que elas participaram, que elas fazem, que elas dão o golpe… E aí elas vão deixando rastros, porque elas fazem maquete do projeto, elas desenham, mostram, fotografam, como se fotografa a comida do dia a dia, dizendo ‘olha, eu como’.”
Segundo ela, a desinformação antecedeu os atos de violência, forneceu a narrativa legitimadora para seus participantes e funcionou como cola ideológica da organização criminosa liderada por Jair Bolsonaro.
No voto do ministro Alexandre de Moraes, o uso da desinformação não é tratado como mera infração eleitoral ou cível, mas como parte de atos executórios de crimes contra o Estado Democrático de Direito. Em sua fundamentação, Moraes enquadra a disseminação sistemática de narrativas falsas como meio para a prática do crime de golpe de Estado. Segundo ele, a produção e propagação de mentiras — sobre urnas, fraude eleitoral e ilegitimidade da Justiça Eleitoral — constituíram etapas concretas da tentativa de ruptura institucional, pois visavam criar as condições sociais e políticas para inviabilizar a posse do presidente eleito em 2022 e justificar uma intervenção violenta no 8 de Janeiro.
Além disso, o ministro associa essas condutas à associação criminosa armada, à medida que a desinformação foi planejada e executada por grupos organizados – como as “milícias digitais” –, e ao crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, já que a mentira foi usada como combustível para incitar a invasão e destruição das sedes dos Poderes.
É importante deixar claro: em outros contextos, mesmo a mentira deve ser protegida pela liberdade de expressão. O mentir e o desmentir são inerentes ao livre discurso público – o problema é a sistemática, a intenção e a associação de tecnologias e violência para fazer valer uma versão enganosa da realidade concreta. A desinformação, no contexto desse julgamento, não é apenas discurso político protegido pela liberdade de expressão, mas um instrumento criminal de execução do golpe.
No julgamento, os ministros demonstraram que entre junho de 2021 e 2022, órgãos do Estado, como a Abin e o GSI, foram usados de forma ilícita para criar e difundir narrativas fraudulentas sobre urnas eletrônicas e o sistema eleitoral. Relatórios e documentos de militares orientavam a construção deliberada de uma realidade paralela, com o objetivo de enfraquecer a Justiça Eleitoral e a própria democracia. Nesse período, lives de Bolsonaro e a atuação das milícias digitais ampliaram essas mentiras nas redes sociais, transformando desinformação em ação concreta contra instituições, com destaque ao ato de 7 de setembro de 2021.
Em 2022, a estratégia assumiu caráter institucional e internacional. Eles mencionam a confusão proposital entre “voto impresso” e “voto auditável” para mobilizar apoiadores, além de reuniões ministeriais que reforçaram narrativas golpistas. O ápice ocorreu em encontro com embaixadores, quando informações fraudulentas foram apresentadas para legitimar o discurso internamente e minar a credibilidade do processo eleitoral brasileiro perante a comunidade internacional, gerando uma “severa desordem informacional”.
Após o segundo turno das eleições de 2022, a campanha de mentiras atingiu seu ápice. Aos Fatos mostrou, em colaboração com o Washington Post, o incremento de conteúdo antidemocrático nas redes sociais no período entre a campanha eleitoral e o 8 de Janeiro. O aumento foi perceptível em diferentes intensidades no Twitter, no Facebook, no WhatsApp e no YouTube, conforme levantamento da unidade de inteligência Radar Aos Fatos.
Narrativas falsas ligando ministros do Supremo a bancos, além de ataques pessoais aos magistrados e notícias falsas sobre fraudes eleitorais circularam com dupla função: manter a militância mobilizada nos acampamentos e sustentar a rejeição do resultado eleitoral.
O exercício da repetição culminou em janeiro de 2023, quando as sedes dos Três Poderes foram invadidas em Brasília. Em seu voto, Moraes sublinha que a “estruturação, produção e divulgação de massiva desinformação” foram essenciais para a consumação do golpe, criando as condições psicológicas e sociais que levaram milhares de pessoas às ruas e legitimaram a violência como defesa da democracia, embora não fosse exatamente a democracia o que estavam defendendo.
Na verdade, Moraes destacou, ao comentar o voto de Cármen Lúcia, a periculosidade do efeito cascata da falta de responsabilização por esse tipo de discurso: “Algum de nós aqui, e o nosso eminente decano [Gilmar Mendes, presente durante a sessão], algum de nós permitiria e afirmaria que isso é liberdade de expressão, e não crime? Se um prefeito numa cidade do interior, mediante milhares de pessoas, insuflar o povo contra o juiz da comarca, dizendo que não vai mais cumprir decisões dos juízes da comarca, nós aqui placitaríamos isso?”
O que ficou claro durante os anos Bolsonaro foi que, no exercício da repetição das mentiras – no caso do ex-presidente, 356 declarações golpistas – a autoridade inerente ao cargo e a visibilidade oferecida pelas instituições do Estado permitiram a radicalização de uma turba a ponto de conceitos caros como democracia e liberdade acabarem descaracterizados. Ao criarem um ambiente enganoso, lideranças autoritárias igualam ataque a defesa, e o resultado presumido é a impunidade.
Para o Supremo, a cronologia da desinformação comprova como ela foi instrumentalizada com o objetivo de capturar a democracia: em 2021, houve a estruturação estatal da narrativa; de 2021 a 2022, sua amplificação em lives e eventos públicos; em 2022, sua institucionalização em reuniões e projeção internacional; no fim de 2022, sua radicalização no pós-eleição; e, finalmente, em 2023, a eclosão violenta. O golpe começou na mentira — e só pôde avançar porque a desinformação se consolidou como o cimento que uniu discurso, mobilização e violência.




