Aviso: este texto é uma análise e foi publicado originalmente na newsletter O Digital Disfuncional.
Esta semana foi marcada por uma série de desdobramentos de ordem jurídica, com proporções diferentes, a partir de um denominador comum: a criação e o compartilhamento intencional de desinformação.
- O caso mais evidente é, sem dúvida, a condenação pelo STF (Supremo Tribunal Federal) dos primeiros réus julgados pelos atos golpistas de 8 de janeiro;
- Também sobrou para a empresa que edita a Revista Oeste, que recebeu uma notificação extrajudicial da AGU (Advocacia-Geral da União);
- E para a protagonista de um vídeo com desinformação sobre as enchentes no Rio Grande do Sul, que está sob investigação da Polícia Federal.
O percurso da responsabilização nesses três casos tem diferenças marcantes, até porque a história de um deles coincide com a expressão máxima do poder de destruição que o conspiracionismo é capaz de promover. Aécio Pereira e seus pares foram condenados por crimes de associação criminosa, golpe de Estado, abolição do Estado Democrático de Direito, dano qualificado ao patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado. Desinformação foi apenas o fio condutor.
Já os demais estão envolvidos em ações que apuram a disseminação de mentiras sobre as ações do governo federal e do PT na mitigação dos problemas decorrentes das enchentes em municípios gaúchos. À diferença dos golpistas condenados, ambos os casos estão sendo explorados por iniciativa do Poder Executivo, o que não é comum nem recomendável.
Primeira vez por aqui? Assine de graça O Digital Disfuncional e receba análises exclusivas e bastidores sobre a relação entre a tecnologia e a política.
Segundo a notificação da AGU, um dos apresentadores do programa Oeste Sem Filtro no YouTube, Alexandre Garcia, atribuiu à abertura de comportas de represas construídas durante governos do PT no Rio Grande do Sul uma das causas das enchentes no Vale do Taquari — o que é falso. A AGU encaminhou à publicação “demanda o exercício do direito de resposta” para que a publicação retifique o que foi dito pelo apresentador.
“Este esclarecimento atende a pedido realizado à Revista Oeste pela Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD), órgão da AGU, que tem como uma de suas atribuições realizar o enfrentamento de ações de desinformação que atingem políticas públicas”, justifica o governo.
Na segunda-feira (11), o repórter do Aos Fatos Luiz Fernando Menezes apurou que a informação falsa replicada por Alexandre Garcia teve origem em vídeos que circulavam desde 4 de setembro, no ex-Twitter e no Kwai. Eram resultado de uma desconfiança de anos da população local sobre a existência das barragens, gerando boatos. E os boatos, por sua vez, eram decorrentes do desconhecimento dos próprios moradores sobre como essas represas funcionam — e, principalmente, da ignorância sobre por que o regime de chuvas tem mudado de maneira geral.
No outro caso sobre as enchentes, uma mulher relata em vídeo que doações no município de Lajeado estavam suspensas até Lula chegar à região para fazer fotos de divulgação. Isso é falso. O Ministério da Justiça informou ao Aos Fatos que a Polícia Federal instaurou “investigação preliminar” e “intimou a senhora que aparece no vídeo” a prestar depoimento. Não informou, porém, quais suspeitas recaíam sobre ela, nem se o Ministério Público estava acompanhando o caso.
São procedimentos opacos, como esses, que me fazem pensar qual legislação será capaz de coibir as mentiras industriais transmitidas pelas redes. A falta de um padrão de conduta para investigar a incitação ao caos gera respostas descoordenadas que podem facilmente ser confundidas com abuso de poder.
No caso das doações em Lajeado, por exemplo, ainda que a exploração mentirosa da tragédia seja moralmente condenável, qual a ilegalidade e o prejuízo objetivo gerados ao coletivo que uma pessoa sozinha pode fazer a ponto de ser investigada de tal maneira? Para o ministro Flávio Dino (Justiça), “Inventar fatos para atingir honra de outrem também não é 'CRÍTICA'”. Mas o que é, então, e por que a Polícia Federal deve intervir? O ministério não deixa claro.
Desses três casos, também me preocupa a dificuldade de constranger quem de fato tem interesse em fabricar tal desordem. A expectativa é que sejam presos centenas de golpistas pelos ataques de 8 de janeiro — nenhum deles com a sofisticação necessária para instilar um ódio do tamanho do golpismo.
A dificuldade de atingir os patrocinadores dessas campanhas torna a responsabilização dos arruaceiros um tanto patética e dá lastro a declarações como a do ministro André Mendonça, segundo quem para se querer “um golpe [de Estado], teria que ser instituída uma norma ordem jurídica e institucional, definir o que seria feito com o Congresso e o STF”. “Uma série de planejamento de condutas que não vi nesses manifestantes”, disse.
Já o ministro Cristiano Zanin afirmou que, durante os ataques em Brasília, houve um “contágio mental que transformou os aderentes em massa de manobra”. Disse também que “os componentes da turba passam a exercer enorme influência aos outros, provocando efeito manada”. Resta saber, diferentemente desses três episódios, como pescar os peixes grandes da desinformação nas redes, e não apenas os bagrinhos da radicalização