Principal autoridade sanitária do Brasil, o Ministério da Saúde se converteu em catalisador de desinformação durante a pandemia de Covid-19. Desde que foi registrado o primeiro caso da doença no país, em 25 de fevereiro do ano passado, a pasta incentivou e destinou verba pública a tratamentos considerados ineficazes por cientistas e entidades internacionais, omitiu dados de casos e mortes pela doença e descontinuou iniciativas que davam transparência às suas ações e difundiam informações relevantes à população.
Um ano depois, dados e ações do ministério, que deveriam ser fidedignos, passaram a ser vistos com desconfiança por jornalistas e comunidade científica. Aos Fatos lista a seguir seis condutas da pasta que contribuíram para a desinformação sobre a doença.
- Defesa da hidroxicloroquina
- Informações desatualizadas sobre o vírus
- Falta de transparência na divulgação de dados
- Ausência de campanhas preventivas
- Abandono de ações informativas
- Omissão de dados desfavoráveis ao governo
Defesa da hidroxicloroquina
Um mês após a divulgação do primeiro caso de Covid-19 no Brasil, o Ministério da Saúde começou a distribuir aos estados hidroxicloroquina para o tratamento de formas graves da doença. Na ocasião, pesquisadores de todo o mundo davam início à busca por um medicamento que combatesse a infecção, e a pasta, então comandada pelo médico e ex-deputado federal Henrique Mandetta (DEM-MS), reconheceu que não havia evidências científicas da eficácia do medicamento, apenas "estudos promissores".
Pouco a pouco, os resultados dessas pesquisas passaram a mostrar que, além de não servir para tratar a doença, a hidroxicloroquina pode gerar complicações nos pacientes. O ministério, porém, não só manteve a recomendação de seu uso como já gastou R$ 203 milhões para comprar e distribuir 5,4 bilhões de comprimidos até fevereiro de 2021 e mobilizou a atuação de vários órgãos, como as Forças Armadas, para levá-los a todo o país.
A sobrevivência da política de defesa da cloroquina, capitaneada pelo presidente Jair Bolsonaro na contramão da ciência, também custou o cargo de dois ministros da Saúde. Após divergências com o presidente, entre outras coisas, sobre o uso das drogas, Mandetta deixou o comando da pasta no dia 16 de abril. O oncologista Nelson Teich, que o substituiu, pediu demissão no dia 15 de maio, após pressão de Bolsonaro para a ampliação da recomendação dos medicamentos.
Cinco dias depois, o novo ministro, Eduardo Pazuello, alinhou as ações da pasta ao entendimento do Planalto e incluiu a hidroxicloroquina associada ao antibiótico azitromicina no protocolo de tratamento de casos leves, moderados e graves de Covid-19. O documento foi revisado pela última vez em agosto, mas não houve alterações na prescrição da hidroxicloroquina. Naquele mês, uma revisão científica de 29 estudos já mostrava que a droga não diminuía a mortalidade causada pela infecção.
Em outubro, o projeto Recovery, maior ensaio clínico do Reino Unido, também teve o mesmo resultado. Enquanto isso, o Ministério da Saúde planejava o chamado “Dia Nacional da Conscientização para o Cuidado Precoce”. A iniciativa foi cancelada, mas a campanha insistente da pasta pelo uso do medicamento prosseguiu na TV e nas redes sociais. Uma das peças veiculadas no Twitter pelo ministério para incentivar a população a aceitar o chamado tratamento precoce (uso da droga na fase inicial da doença) chegou a ser classificada como enganosa pela plataforma em janeiro.
Também no início deste ano, diante do colapso no sistema de saúde do Amazonas, o ministério enviou um ofício à Prefeitura de Manaus para que promovesse a hidroxicloroquina nas Unidades Básicas de Saúde. À época, Pazuello disse que a crise na capital ocorria porque a cidade não deu “atenção ao tratamento precoce”.
Em fevereiro de 2021, apesar de a comunidade científica refutar qualquer indicação para o uso da hidroxicloroquina em pacientes com Covid-19, o ministério mantém o seu uso entre as medidas de prevenção e tratamento da doença.
Informações desatualizadas sobre o vírus
O ritmo de atualização das informações sobre o novo coronavírus por parte do Ministério da Saúde ficou bem aquém do seguido por cientistas e entidades internacionais em trazer respostas sobre a infecção. À medida que os meses passaram, novos estudos sobre a Covid-19 foram publicados, mas o site da pasta não acompanhou atualizações cruciais e manteve por longos períodos dados que, por estarem desatualizados, desinformavam.
Ao menos desde julho de 2020, a OMS (Organização Mundial da Saúde) e, depois, cientistas americanos dizem que o novo coronavírus é transmitido pelo ar, por meio de micropartículas que são exaladas durante a respiração e a fala. Até janeiro de 2021, porém, o site do Ministério da Saúde ainda trazia a informação desatualizada de que a transmissão não ocorreria pelo ar e que a principal forma de contágio seria pelo aperto de mão. A informação só foi retirada do portal após repercussão negativa nas redes sociais.
Ainda em abril do ano passado, uma página do Ministério da Saúde que reunia informações gerais sobre o novo coronavírus afirmava, de maneira errada, que os casos assintomáticos não eram contagiosos (veja abaixo). Desde aquela época, estudos apontavam para uma realidade contrária, pois já havia consenso de que pacientes sem sintomas eram capazes de transmitir o vírus.
Falta de transparência na divulgação de dados
Com dados crescentes de casos e mortes de Covid-19, o Ministério da Saúde passou a dificultar o acesso da imprensa a números da doença no país ainda na gestão de Nelson Teich. Além de atrasar a divulgação de informações, a pasta promoveu mudanças metodológicas na contabilização dos dados, o que gerou inconsistências nas informações prestadas.
A falta de confiabilidade nos dados do ministério fez com que a pasta deixasse de ser a fonte primária de veículos de imprensa, que decidiram em junho formar um consórcio para tabular entre eles casos e mortes de Covid-10 nos 26 estados e no Distrito Federal. O Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) também criou um portal paralelo para a divulgação dos dados.
Inicialmente, as informações eram divulgadas pelo ministério às 17h. Na gestão de Nelson Teich esse horário passou para 19h; sob Pazuello, mudou para 22h, quando a maioria dos jornais já foi para a gráfica e as edições dos noticiários de televisão terminaram. "Acabou matéria do Jornal Nacional", disse Jair Bolsonaro, no dia 5 de junho, ao aprovar a mudança.
Na ocasião, o presidente defendeu excluir do balanço diário os números de pessoas que tinham morrido em dias anteriores. O site do Ministério da Saúde saiu do ar no dia seguinte para manutenção e, ao voltar, não apresentava mais os dados acumulados de número de infectados e mortos. Os links para baixar as informações em formato de tabela, cruciais para análises de cientistas e jornalistas, e que alimentavam outras iniciativas de divulgação, também foram excluídos.
Somente após o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), determinar que a pasta restabelecesse a divulgação integral das informações, o governo retomou a publicação, em 9 de junho.
Em novembro, houve um segundo apagão: os sistemas de informação do Ministério da Saúde ficaram fora do ar devido a um suposto ataque cibernético, o que impediu o envio de dados por parte dos estados. Na época, a pasta primeiro negou que tivesse ocorrido um ataque, depois admitiu a possibilidade, mas não forneceu qualquer laudo sobre o incidente sob a justificativa de preservar provas e garantir segurança de dados.
Ausência de campanhas preventivas
Apesar de manter em seu site recomendações básicas de prevenção contra a Covid-19, como usar máscaras de proteção e higienizar as mãos constantemente, o Ministério da Saúde quase não divulga essas informações fora do portal. Como noticiado pelo Repórter Brasil, a pasta gastou em 2020 sob a gestão Pazuello cerca de R$ 88 milhões em propagandas que ignoraram a difusão de medidas básicas de proteção contra a doença.
Nas peças veiculadas na TV, o teor foi predominantemente institucional, com a divulgação de ações do governo durante a pandemia. Nos vídeos listados no canal oficial do ministério no YouTube agrupados em “Campanhas 2020” e “Campanhas 2021”, informações básicas como métodos de prevenção e formas de transmissão do vírus são foco de vídeos veiculados entre março e maio de 2020. Nas nove propagandas da gestão de Pazuello, apenas uma, que defende um “atendimento precoce”, traz a recomendação de usar álcool em gel e máscaras de proteção.
Enquanto isso, informações falsas sobre medidas preventivas proliferaram ao longo da pandemia. Só em 2021, por exemplo, o Aos Fatos desmentiu que autoridades de saúde estariam orientando a população a não usar máscara e até que elas causavam câncer. Já em 2020, foram checadas 38 peças desinformativas sobre isolamento e 14 sobre máscaras.
Abandono de ações informativas
Além de dificultar o acesso de jornalistas e cientistas a dados sobre a doença e de não fazer campanhas de difusão de medidas preventivas, o Ministério da Saúde deixou de atualizar as páginas de seu site oficial que traziam checagens de desinformação na área de saúde e estudos científicos atualizados sobre possíveis tratamentos da Covid-19.
Desde 2018, o projeto “Saúde sem Fake News” recebia por meio de um canal no WhatsApp pedidos da população, que eram apurados pela área técnica da pasta e respondidos oficialmente no site. Em 2019, o Aos Fatos analisou a base de dados do canal, que já continha 103 checagens, e mostrou que a maior parte era sobre câncer.
A última checagem, no entanto, foi publicada em julho de 2020. Até ali, o canal contabilizava 50 checagens sobre o novo coronavírus, a maioria de março. Desinformação sobre a Covid-19, no entanto, tem sido uma constante durante a pandemia. O Aos Fatos, por exemplo, desmentiu 249 peças associadas à doença durante todo o ano passado.
Boletins de evidências científicas
O ministério também descontinuou a divulgação de boletins de evidências científicas sobre possíveis tratamentos da Covid-19, que fazia desde abril de 2020. A última publicação data do começo de outubro, quando foram analisados estudos com administração de drogas como corticóides, favipiravir, hidroxicloroquina e plasma convalescente.
Antes de ser paralisada, a periodicidade da publicação dos boletins se tornou cada vez menos frequente. Entre os dias 8 de abril e 28 de agosto, a pasta divulgava um resumo das evidências coletadas quase diariamente. A partir do final de agosto, no entanto, a periodicidade passou a ser semanal. Segundo a pasta, tratava-se apenas de uma mudança de formato. O projeto, no entanto, foi encerrado semanas depois.
Em diversos momentos, o Aos Fatos usou os boletins para desmentir alegações sobre a eficácia de medicamentos contra a Covid-19 que circulavam nas redes sociais, como nesta checagem de julho. Com a paralisação da publicação, o Ministério da Saúde deixou de ser uma fonte oficial sobre evidências científicas de tratamentos da doença.
Omissão de dados desfavoráveis ao governo
Desde maio, o Ministério da Saúde passou a omitir o número de mortes por Covid-19 em suas publicações nas redes sociais. O movimento foi capitaneado no fim de abril pela Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social do governo federal) ao lançar o chamado “Placar da vida”, estratégia de comunicação para destacar dados da pandemia que fossem mais favoráveis ao governo, como o número de recuperados (classificados como “brasileiros salvos”) e em recuperação da doença, e sem menção aos óbitos.
A adoção por parte do ministério ocorreu quando o general Eduardo Pazuello assumiu interinamente a pasta. Os boletins foram substituídos pela arte que vinha sendo divulgada pela Secom.
No dia 8 de agosto, quando o país ultrapassou os 100 mil óbitos pela doença, o presidente Jair Bolsonaro usou seu perfil no Twitter para exaltar o número de pacientes “recuperados” compartilhando a publicação da Secom.
Entretanto, conforme mostrado pelo Aos Fatos, esse dado não indica um sinal de controle da pandemia. Isolado, o número de “recuperados” sequer atenua a gravidade da crise, uma vez que apenas indica que o país teve um grande número de infectados. Considerando apenas os últimos sete dias, o Brasil tem a segunda maior média mundial de mortes e novos casos da doença, segundo levantamento do jornal The New York Times.
A escolha de dados apenas favoráveis ao governo se repetiu com o início da campanha de imunização. Embora o Ministério da Saúde tenha criado um painel para acompanhamento do número de vacinados contra a Covid-19, ele traz apenas números absolutos, não proporcionais à população. Segundo dados do consórcio de veículos de imprensa, que utiliza dados das secretarias estaduais de Saúde, pouco mais de 6 milhões de pessoas já tomaram a primeira dose, e cerca de 1,5 milhão tomou duas doses de um dos imunizantes. Este último dado representa apenas 0,75% da população brasileira.