Diante de casos de desnutrição grave, malária e infecção respiratória, o Ministério da Saúde decretou emergência em saúde pública no território Yanomami no último sábado (21).
- O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) visitou a região, descreveu a situação nas redes como “genocídio” e afirmou se tratar de um “crime premeditado” por seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL);
- Já o ex-presidente e seus ministros se defenderam dizendo que os cuidados com a saúde indígena sempre foram prioridade do governo federal — alegação que não tem respaldo na realidade.
Contrário às políticas de demarcação de terras, Bolsonaro promoveu o desmonte das estruturas de fiscalização que coibiam o garimpo e atuavam na proteção dos povos indígenas. O governo também ignorou pedidos do MPF (Ministério Público Federal) de Roraima, que apontava desde 2020 a necessidade de garantir assistência ao povo Yanomami e combater o garimpo, que polui as águas e contamina os indígenas. Reportagens e relatórios divulgados por organizações também já alertavam para os casos de desnutrição e contaminação pelo mercúrio.
Diante de declarações de membros do antigo governo, como a da senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF) — ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos —, que negou ter havido omissão das autoridades, Aos Fatos explica quais as atribuições de cada órgão governamental na assistência aos povos originários.
Além de consultar documentos oficiais, a reportagem entrevistou Fernando Vianna, indigenista da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e presidente da Indigenistas Associados, e Juliana Batista, assessora jurídica do ISA (Instituto Socioambiental).
- Quem é responsável pela saúde dos povos indígenas?
- Quem é responsável pela segurança das terras indígenas?
- Qual é o papel da Funai?
- O que mudou com a criação do Ministério dos Povos Indígenas?
1) QUEM É RESPONSÁVEL PELA SAÚDE E INTEGRIDADE DOS POVOS INDÍGENAS?
A saúde indígena é de responsabilidade da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena), vinculada ao Ministério da Saúde. Criada em 2010, no fim do segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a secretaria era uma demanda antiga de lideranças indígenas, que pediam que questões sanitárias dos povos originários fossem tratadas diretamente pela Saúde.
Antes disso, o sistema de saúde indígena era gerido pela Funasa (Fundação Nacional de Saúde), também vinculada ao Ministério da Saúde, mas responsável por ações de saneamento e prevenção e combate a doenças de forma geral. A fundação foi extinta e teve suas atribuições repassadas a outros órgãos neste ano.
Descentralizado, o sistema de atendimento aos povos indígenas tem como estrutura primária os DSEIs (Distritos Sanitários Especiais Indígenas), criados em 1999 e delimitados a partir de critérios epidemiológicos, geográficos e etnográficos. O povo Yanomami, por exemplo, possui um distrito próprio.
Dentro da estrutura de atendimento dos DSEIs estão:
- As unidades básicas de saúde indígenas, localizadas dentro das terras demarcadas e destinadas ao atendimento primário;
- Os pólos-base, destinados a administração e organização dos serviços de saúde e saneamento;
- As Casai (Casas de Saúde Indígena), responsáveis por ações complementares de saúde, além de apoio e acolhimento aos pacientes e aos acompanhantes.
De acordo com os dados mais recentes, a Sesai possui 22 mil profissionais de saúde em atividade, 52% deles indígenas. A secretaria atende, em média, 762 mil indígenas distribuídos pelo território nacional.
Integridade. O Ministério dos Direitos Humanos tem entre suas funções garantir a integridade e assegurar direitos fundamentais aos povos indígenas. De acordo com os especialistas consultados por Aos Fatos, as principais atividades envolvem o recebimento de denúncias de violações de direitos e ações como a distribuição de cestas básicas.
No decreto que regulamentava o antigo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, constava como atribuição da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial “articular e acompanhar a execução das políticas públicas desenvolvidas em favor das comunidades indígenas”, em parceria com o Ministério da Justiça e a Funai.
Apesar de essa informação não constar no decreto do atual Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o ministro Silvio Almeida anunciou em suas redes uma série de ações para atender aos yanomami, como diagnósticos de violações de direitos, fomento à participação de indígenas em conselhos tutelares, implantação de centros de atendimento a crianças vítimas ou testemunhas de violência com apoio à realização de atividades em terras indígenas, e a criação de uma rede de proteção para crianças e adolescentes da etnia.
2) QUEM É RESPONSÁVEL PELA SEGURANÇA DAS TERRAS INDÍGENAS?
A Constituição Federal de 1988 reconhece o direito dos povos originários aos seus territórios e determina que é função da União demarcar, proteger e fazer respeitar todos os bens neles contidos. As ações de vigilância, no entanto, não estão restritas à atuação de um órgão específico: elas são fruto de um intercâmbio entre ministérios como Meio Ambiente, Defesa e Justiça.
A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) é uma autarquia federal que atua para garantir o usufruto exclusivo das terras dos povos originários. Para isso, ela realiza ações de fiscalização, por vezes em parceria com órgãos do Ministério do Meio Ambiente, como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), que combate crimes ambientais, e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), que atua em unidades de conservação.
Caso surjam evidências de crimes, são acionados o Ministério da Justiça e o Ministério da Defesa:
- A Justiça coordena a atuação da Polícia Federal, órgão de investigação, e da Força Nacional, acionada para garantir a segurança de pessoas e do patrimônio e em situações de emergência ou calamidade;
- A Defesa entra em ação quando é necessária a atuação das Forças Armadas, que têm estrutura logística mais capilar e poder de polícia em áreas de fronteira.
Um exemplo de atuação conjunta é a Operação Guardiões do Bioma, conduzida até o ano passado pela Polícia Federal em parceria com o Ibama e a Funai. Um dos eixos de atividade foi justamente o desmonte de pontos de garimpo no território Yanomami.
Vale ressaltar que, ao longo do governo Bolsonaro, ocorreu um desmonte progressivo das políticas de fiscalização ambiental e de combate a crimes contra os povos indígenas. Além de paralisar os procedimentos de demarcação de terras, necessários para garantir a segurança dos povos, a antiga gestão do governo federal reduziu os orçamentos da Funai, do Ibama e do ICMBio, esvaziou seu quadro de funcionários e se posicionou abertamente contra ações de desmonte de estruturas para práticas ilícitas, como o desmatamento e o garimpo.
3) QUAL É O PAPEL DA FUNAI?
Criada em 1967, a Funai é o principal órgão indigenista do Estado brasileiro. Antes vinculada ao Ministério da Justiça, a autarquia agora compõe a estrutura do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas.
Estão entre as suas atribuições:
- Promover estudos de identificação e demarcação de terras indígenas, em parceria com o Ministério da Justiça e a presidência da República;
- Garantir o reconhecimento dos povos indígenas e de suas respectivas culturas, formas de organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e do direito inalienável à terra;
- Proteger e garantir os direitos dos povos isolados;
- Garantir a proteção e a preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável nas terras indígenas;
- Promover e apoiar levantamentos, censos, estudos e pesquisas sobre os povos indígenas, de forma a valorizar e divulgar suas culturas;
A lei também determina que a Funai atue em parceria com outros ministérios em ações ligadas aos povos indígenas. Tanto na saúde quanto na educação, o órgão age monitorando os trabalhos, que são executados no primeiro caso pela Sesai, vinculada ao Ministério da Saúde, e, no segundo, pelas secretarias municipais e estaduais de educação, em parceria com o Ministério da Educação.
Como já explicado em tópicos anteriores, a autarquia também atua em ações de fiscalização das terras indígenas, auxiliada, por vezes, por órgãos de fiscalização ambiental. No caso do combate a ilícitos, a atuação é em conjunto com o Ministério da Justiça e o Ministério da Defesa.
O orçamento do órgão segue uma tendência de queda há dez anos, como mostra o gráfico abaixo. Para 2023, estão previstos 645,9 milhões para a autarquia.
4) O QUE MUDA COM A CRIAÇÃO DO MINISTÉRIO DOS POVOS INDÍGENAS?
Antes concentradas na Funai, as políticas indigenistas ganharam status ministerial com a criação da pasta dos Povos Indígenas pelo governo Lula. O decreto que descreve a estrutura do novo ministério entrou em vigor na última terça-feira (24) e prevê como principais atribuições:
- Reconhecer e promover os direitos indígenas;
- Demarcar, defender e garantir o usufruto exclusivo das terras indígenas;
- Proteger os povos isolados e de recente contato;
- Articular tratados e acordos internacionais relacionados aos povos indígenas.
Especialistas consultados pelo Aos Fatos afirmam que, mesmo com a criação do ministério, as políticas públicas indígenas ligadas à saúde, à educação e à segurança devem continuar sendo descentralizadas e fruto de parcerias interministeriais. “Em tese, o ministério vem para fortalecer o que todos os outros órgãos fazem e dar mais pujança dentro do próprio Estado brasileiro, vão conseguir mais recursos e mais força política para que isso seja executado de maneira mais articulada, com mais orçamento”, afirmou o indigenista Fernando Vianna, da Funai.