Nelson Jr./SCO/STF

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Março de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Debate nos Três Poderes sobre regulação das redes mobiliza ações de lobby do Google à Globo

Por Ethel Rudnitzki e Gisele Lobato

30 de março de 2023, 16h13

Empresas que figuram entre as de maior faturamento do mundo, como o Google e a Meta, e as principais companhias brasileiras de mídia, como o Grupo Globo e o Grupo Record, protagonizam hoje nos bastidores de Brasília um embate sobre a regulamentação das redes sociais.

Ambos os lados mobilizam lobistas e atuam discretamente junto aos Três Poderes a fim de tentar fazer valer os seus interesses em normas que serão fundamentais para o futuro da internet no Brasil. A briga é pelos corações e mentes de tomadores de decisão que, desde os ataques golpistas de 8 de janeiro, consideram urgente aumentar o controle sobre as plataformas.

A discussão ocorre de forma simultânea nos Três Poderes:

  • No Legislativo, o Projeto de Lei 2.630/2020, conhecido como PL das Fake News, está pronto para votação na Câmara dos Deputados;
  • O Executivo, após semanas de discussão que envolveu diversos ministérios, apresentou nesta quinta-feira (30) sua própria proposta de regulamentação;
  • Enquanto isso, no Judiciário, o STF (Supremo Tribunal Federal) deve julgar a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet (lei 12.965/2014), que determina que as plataformas não podem ser responsabilizadas por conteúdos de usuários, exceto se descumprirem ordem judicial.

Em condição de anonimato, um profissional de relações governamentais que trabalha para uma emissora de TV contesta que a mobilização de esforços ocorra em pé de igualdade. “Não é uma guerra de gigantes”, ele sentencia, colocando-se desta vez como pigmeu: “É Davi contra Golias.”

Embora a disparidade nos números seja evidente, a mídia tradicional possui uma relação mais consolidada junto aos centros de poder: levantamento do Intervozes mostra que, dos 45 candidatos nas eleições de 2022 que eram donos ou tinham ligação com empresas de mídia, 32 foram eleitos ou estão na suplência. Um dos principais partidos do Centrão, o Republicanos, é ligado à Igreja Universal do Reino de Deus e à Record TV.

Impactados pela queda de suas receitas publicitárias, os grandes grupos de mídia nacionais cobram maior responsabilização das redes sociais pelo conteúdo, ao mesmo tempo em que tentam emplacar uma proposta que obrigue as redes sociais a pagar pelo trabalho jornalístico.

A discussão sobre como seria essa remuneração, porém, não é consenso mesmo na imprensa brasileira.

  • Organizações como a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV) — que têm entre as associadas da Globo à Jovem Pan, além de Band, SBT e outras — e a ANJ (Associação Nacional de Jornais) defendem que o jornalismo profissional é um antídoto para a desinformação e, por isso, precisa ser valorizado;
  • Veículos não alinhados a grandes grupos econômicos, como os que integram a Ajor (Associação de Jornalismo Digital), da qual o Aos Fatos faz parte, argumentam que o modelo a ser implantado no país pode acabar por privilegiar os conglomerados, incentivando a concentração, não a pluralidade de vozes.

Já a mobilização das plataformas quer evitar mudanças na legislação que prejudiquem modelos de negócios ou aumentem responsabilidades de moderação. Para tanto, as empresas enfatizam questões técnicas que, segundo elas, dificultariam controle mais amplo sobre conteúdos postados e argumentam que alterações podem representar riscos para a liberdade de expressão.

Também rebatem acusações de que são beneficiadas pela produção jornalística sem contrapartidas, afirmando que a imprensa ganha visibilidade com a circulação nas redes.

Ao relacionar uma eventual regulamentação a riscos para a liberdade de expressão, porém, o discurso das plataformas acaba por ecoar o principal grito de outro segmento apreensivo com o debate: desinformadores recorrentes e a extrema-direita, que se beneficiam com a livre propagação de mentiras e discursos de ódio.

Para esse grupo, a principal estratégia de pressão são as próprias redes sociais, nas quais mensagens associando a regulação à “censura” tornam a circular sempre que o tema volta à tona. O deputado Mário Frias (PL-SP), ex-secretário de Cultura do governo Jair Bolsonaro (PL), por exemplo, tenta retomar na Câmara, por meio do PL 3.227/2021, uma proposta do ex-presidente que limita a moderação de conteúdo.

Com a derrota de Bolsonaro — e sobretudo após os ataques de 8 de janeiro —, o cerco tem se fechado sobre os que lucram com a desinformação. A partir deste cenário, as próprias plataformas adotaram táticas defensivas:

  • O TikTok, por exemplo, anunciou no dia 21 um endurecimento de suas diretrizes de comunidade;
  • Dias depois, o Google defendeu em audiência no STF a possibilidade de ampliação das hipóteses legais para a remoção extrajudicial de conteúdo.
  • A consultora jurídica do Twitter Brasil, Jacqueline Abreu, também não fechou portas para a regulamentação, mas ressaltou que os debates sobre essas mudanças devem se dar de “forma cautelosa e diligente”.

Se parece cada vez mais evidente que mudanças na regulamentação serão inevitáveis, resta saber quais serão os termos.

Para influenciar a discussão, cada lado reúne todas as armas à disposição, que vão do patrocínio de eventos até o corpo a corpo nos corredores de Brasília.


INFLUÊNCIA NA OPINIÃO PÚBLICA

Uma das ações de lobby mais comuns é o patrocínio a eventos. Há duas vantagens diretas: os lobistas têm uma chance de se relacionar pessoalmente com tomadores de decisão ao convidá-los para falar e, além disso, a participação de políticos ou magistrados faz com que haja cobertura da imprensa — o que ajuda a divulgar os argumentos da patrocinadora.

No dia 13 de março, a Globo organizou, em parceria com a FGV (Fundação Getulio Vargas), o seminário Liberdade de Expressão, Redes Sociais e Democracia. Apresentado pela jornalista Maju Coutinho, o debate reuniu um time do primeiro escalão do poder, como os ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, o ministro da Justiça Flávio Dino (PSB) e os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

No jornal Valor Econômico, que pertence ao Grupo Globo, a cobertura do evento rendeu títulos como “governo e STF defendem regulamentar redes” e “Moraes defende que redes sociais sejam classificadas como empresas de comunicação”.

Dois dias depois, a Abert se juntou à AIR (Associação Internacional de Radiodifusão) para lançar a Carta de Brasília, documento que apresenta propostas para a regulamentação das redes. O texto foi elaborado no 1º Seminário sobre os Desafios e Ações na Era Digital, que também reuniu figuras-chave na discussão, como o ministro-chefe da Secom (Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República), Paulo Pimenta (PT), e o relator do PL das Fake News, deputado Orlando Silva (PC do B-SP).

A organização do evento em parceria com a AIR foi uma aposta da Abert na internacionalização do debate, estratégia que teve início em fevereiro, com a organização de um seminário em Portugal.

Menos de uma semana após a mobilização da Abert, no dia 21, foi a vez de o YouTube patrocinar um evento que também rendeu manchetes sobre regulação de redes: uma entrevista ao vivo com o advogado-geral da União, Jorge Messias, na série Rumos do Brasil, organizada pelo JOTA, veículo que é associado à Ajor.

Enquanto tomadores de decisão se pronunciavam em eventos de empresas interessadas na discussão, a Meta pôs em prática outra ação de lobby para tentar influenciar a opinião pública. A empresa fez circular um release em que argumenta que as plataformas digitais não são responsáveis pela crise financeira dos jornais nos Estados Unidos e nem levam vantagem ao distribuir notícias. A fonte é um estudo feito pela consultoria Nera — encomendado pela própria Meta, informação omitida no comunicado à imprensa.

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OFENSIVA NO PARLAMENTO

No Congresso, o PL das Fake News começou a ser discutido em 2020, ano em que foi aprovado no Senado. Na Câmara, porém, o texto sofreu muitas modificações e ainda aguarda votação. O texto de Orlando Silva estabelece regras de transparência, obrigando as plataformas a publicarem relatórios sobre ações de moderação, estende a imunidade parlamentar às redes sociais e prevê remuneração do conteúdo jornalístico, entre outras medidas.

A Frente Parlamentar de Radiodifusão é alinhada aos interesses das grandes empresas de mídia nacionais. Um exemplo dessa aliança pode ser verificada em uma entrevista concedida no ano passado pelo então presidente da bancada, o agora suplente de deputado Eli Corrêa Filho (União-SP), a um programa da Abert. Nela, o político e radialista assume pautas caras a seus interlocutores, como a defesa de um sistema de remuneração do jornalismo pelas plataformas digitais.

Se a relação dos grupos de mídia com o poder é antiga e consolidada, as big techs têm usado artilharia pesada para não ficar em desvantagem.

Por meio de associações do setor, as plataformas são as principais apoiadoras da Frente Parlamentar Mista da Economia e Cidadania Digital.

Em novembro do ano passado, um grupo de deputados da frente visitou o Vale do Silício a convite do Departamento de Comércio dos EUA, conforme mostrou o Intercept Brasil. Entre os organizadores da caravana está o Instituto Cidadania Digital, que tem entre os mantenedores a Câmara-e.net (Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico), associação da qual fazem parte Amazon, Meta, Google e Twitter, entre outras empresas. O Cidadania Digital é responsável pelo secretariado da Frente Digital.

A comitiva incluiu o então líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). O grupo ficou cinco dias nos Estados Unidos. A primeira agenda da missão teve como anfitrião o governo americano. Segundo o relatório apresentado por Barros, esse encontro permitiu que empresas como Uber, Amazon, Meta e Google apresentassem “temas técnicos” que norteariam a visita nos dias seguintes. Entre os tópicos estava justamente a regulamentação das redes.

A programação da viagem ao Vale do Silício contou ainda com visitas às sedes de algumas das empresas. Na Meta, os deputados brasileiros assistiram a apresentações sobre moderação de conteúdo e transparência, ocasião na qual a companhia buscou demonstrar sua boa vontade no combate à desinformação.

Fundada em 2019, a Frente Digital reunia na Legislatura passada parlamentares identificados sobretudo com a direita liberal. A principal pauta que mobilizou o grupo no início foi o Marco Legal das Startups, uma demanda antiga de empresas que lidam com tecnologias inovadoras e cujo projeto foi relatado pelo então presidente da frente, o deputado Vinicius Poit (Novo-SP).

No entanto, a lista de assinaturas para o novo registro da bancada, apresentada na última segunda (27), mostra que bolsonaristas ganharam espaço. Dos 204 deputados que apoiaram a iniciativa em 2019, 24 estão hoje no PL. Na atual legislatura, a parcela do PL na frente subiu para 50 congressistas, embora o número total de assinaturas siga igual.

No último dia 15, o deputado Lafayette Andrada (Republicanos-MG) foi eleito o novo presidente da frente. Em discurso nesta semana no STF, o parlamentar defendeu que as plataformas não podem assumir a responsabilidade de julgar publicações de seus usuários, tarefa que considera caber ao poder público.

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AS MAÇANETAS DO GOVERNO

Representantes das plataformas e das empresas de mídia tradicional mantiveram diálogo aberto, a portas fechadas, com interlocutores do governo Lula (PT). O objetivo era tentar influenciar as propostas que o Executivo apresentou nesta quinta-feira (30) para robustecer o PL das Fake News.

Após os ataques de 8 de janeiro, uma corrente do Executivo, encabeçada por Flávio Dino, passou a defender ações enérgicas e imediatas contra as plataformas. O Ministério da Justiça chegou a propor multas para redes que não retirassem do ar, mesmo sem ordem judicial, conteúdos que atentassem contra o Estado Democrático de Direito. O governo acabou por desistir da ideia de buscar essa regulamentação via Medida Provisória e resolveu aprofundar o debate do texto que já circula na Câmara.

As discussões em torno do tema mobilizaram oito ministérios ou secretarias do governo:

  • AGU;
  • Casa Civil;
  • Ciência, Tecnologia e Inovação;
  • Cultura;
  • Direitos Humanos;
  • Justiça e Segurança Pública;
  • Relações Institucionais;
  • e Secom.
  • De forma mais afastada, também participou o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Saúde Digital, dirigida por Ana Estela Haddad;
  • o Ministério das Mulheres não participou do grupo de trabalho, mas enviou uma representante à audiência pública que ocorreu no STF nesta semana;
  • e o Ministério das Comunicações ficou escanteado pois é liderado por Juscelino Filho (União Brasil), cuja nomeação foi objeto de intrigas palacianas principalmente após vir a público que ele usou um avião da FAB (Força Aérea Brasileira) para ir a um leilão de cavalos de raça.

Apesar do consenso no Executivo de que o atual texto do PL das Fake News era insuficiente para blindar a democracia de ataques golpistas, as divergências entre os setores do governo sobre o modelo ideal adiaram mais de uma vez a apresentação de propostas.

O impasse abriu espaço para interessados no debate tentarem influenciar a discussão:

  • No dia 7 de fevereiro, três diretores do TikTok fizeram visita ao ministro da Secom, Paulo Pimenta;
  • Na semana seguinte, o secretário de políticas digitais do órgão, João Brant, recebeu representantes da Abert, do Google e da Meta;
  • As duas plataformas repetiram a visita a Brasília em março.

O objetivo dos encontros, conforme informado na agenda oficial, é “influenciar a formulação, a implementação ou a avaliação de estratégia de governo ou de política pública, ou de atividades a elas correlatas; ou influenciar a edição, revogação ou alteração de ato administrativo”.

Legítimas em um contexto democrático, as romarias a Brasília também mobilizaram plataformas de checagem, Ajor e especialistas de diversas organizações da sociedade civil. A diretora-executiva do Aos Fatos, Tai Nalon, também se encontrou com Brant para debater o tema, conforme consta na agenda do secretário.

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DIÁLOGOS COM O JUDICIÁRIO

Entre terça-feira (28) e quarta-feira (29), o STF promoveu audiência pública para ouvir especialistas, poder público e empresas a fim de subsidiar o julgamento de duas ações que discutem a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. O dispositivo questionado afirma que as plataformas digitais não são responsáveis pelo conteúdo distribuído por terceiros, exceto se deixarem de cumprir ordem judicial.

Na prática, o julgamento do STF irá influenciar não apenas ações similares no Judiciário, mas também a discussão nas outras esferas do poder.

  • A importância do debate provocou uma corrida por inscrições de entidades interessadas em falar;
  • Foram 91 pedidos, dos quais 47 foram aceitos pelo tribunal;
  • Mesmo recusando quase metade dos requerimentos, o Supremo precisou dividir a discussão em dois dias;
  • Representantes da radiodifusão, dos jornais e de diversas plataformas digitais ganharam o direito de se manifestar.
  • Levantamento do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade) mostra que a maior parte dos posicionamentos ouvidos na corte (22) foi a favor da constitucionalidade do artigo 19, grupo que inclui as plataformas;
  • Outras oito sustentações afirmaram que o dispositivo é inconstitucional. Foi o caso da Abert, da ANJ e da Aner (Associação Nacional dos Editores de Revistas);
  • Os demais intervenientes no debate não definiram posição clara.

As discussões em torno do artigo 19 somam-se a iniciativas da Justiça Eleitoral. Desde agosto de 2019, o TSE possui um programa de enfrentamento à desinformação, que reúne representantes de partidos políticos, das plataformas digitais, das empresas de mídia e da sociedade civil.

No ano passado, por causa das eleições, o órgão endureceu sua postura e chegou a bloquear o Telegram no Brasil por não atender a decisões para bloqueio de perfis apontados como disseminadores de informações falsas. Ao espreitar o risco de ver suas atividades banidas do país, a plataforma se juntou às concorrentes em acordo com o TSE para atuar no combate às fake news no último pleito.

Durante a campanha, plataformas fizeram reuniões periódicas com o presidente do tribunal, Alexandre de Moraes. Passadas as eleições, o diálogo permanece. No início de março, o ministro se reuniu com representantes de Telegram, Google, YouTube, TikTok, Kwai, Meta, Twitch e Twitter. O encontro resultou na criação de um novo grupo de trabalho, que apresentará propostas a serem levadas ao Congresso para melhoria na autorregulação das plataformas.

Após lobistas gastarem bastante saliva, suor e sola de sapato na tentativa de convencer ministros do Executivo e do STF, deputados e senadores, a hora da decisão se aproxima. As escolhas desses atores terão impacto profundo no futuro da internet no Brasil — e, acima de tudo, devem ser tomadas às claras e com base em evidências, considerando os interesses de toda a sociedade.

Referências:

1. Poder 360 (1 e 2)
2. Valor Econômico (1, 2, 3 e 4)
3. Intervozes
4. FGV
5. Agência Brasil
6. Abert (1 e 2)
7. JOTA
8. Meta
9. The Intercept Brasil
10. Instituto Cidadania Digital
11. Camara-e.net
12. Exame
13. Folha de S.Paulo
14. ITS
15. TSE (1, 2 e 3)
16. Núcleo


ATUALIZAÇÃO: este texto foi atualizado às 12h30 do dia 31 de março de 2023 para incluir detalhes sobre a proposta apresentada pelo Executivo.

CORREÇÃO: este texto foi atualizado às 11h15 do dia 31 de março de 2023 para corrigir a informação de que a Record TV seria associada à Abert. Na verdade, a emissora é associada à Abratel (Associação Brasileira de Rádio e Televisão).

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