Julgamento no STF pressiona Congresso a regular ‘big techs’ em 2025

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Após mais um ano de impasses e avanços acanhados, o Congresso retomará os debates da agenda regulatória de tecnologias emergentes pressionado por uma decisão iminente do Supremo Tribunal Federal.

No início de fevereiro — com o fim do recesso no Judiciário e a eleição das novas Mesas Diretoras na Câmara e no Senado —, a expectativa é que o tribunal conclua o julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que pode terminar por responsabilizar plataformas pelo conteúdo publicado por usuários.

A responsabilidade das redes pela disseminação de conteúdo criminoso, porém, é apenas um dos temas da agenda regulatória do mundo digital, que enfrenta o desafio de acabar com a sensação de impunidade por crimes cibernéticos sem comprometer o debate político e a liberdade de expressão.

A segurança das crianças, o desenvolvimento e a aplicação de inteligência artificial, os direitos autorais e a concorrência predatória são outras das questões no radar que mobilizam interesses das gigantes da tecnologia, do empresariado nacional e da sociedade civil.

Abaixo, Aos Fatos apresenta o panorama das discussões da agenda regulatória digital, além das tendências e dos desafios para 2025.

  1. Julgamento no STF
  2. “PL das Fake News”
  3. Inteligência artificial
  4. Direitos autorais
  5. Proteção de crianças e adolescentes
  6. Regulação econômica
Ilustração mostra cartas similares às de um baralho, mas cores amarelo e azul.

Julgamento no STF

Na reta final de 2024, o STF iniciou o julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet (lei nº 12.965/2014), que estabelece como regra geral que as plataformas não são responsáveis pelos conteúdos postados por terceiros, exceto se descumprirem determinação judicial de remoção.

A conclusão do julgamento é o tema de maior impacto na agenda regulatória para 2025. As intervenções dos ministros ao longo do debate tornam improvável que a lei fique como está, restando dois possíveis desfechos:

  • O STF derrubar o artigo 19, seguindo a posição defendida pelos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, relatores das ações que estão sendo julgadas;
  • O plenário considerar o dispositivo constitucional, mas ampliar o rol de exceções à regra, aumentando a responsabilidade das empresas em casos de crimes cometidos nas plataformas.

A segunda hipótese foi apresentada na sessão de 18 de dezembro pelo ministro Luís Roberto Barroso, que propôs que as big techs sejam responsabilizadas caso não ajam após receberem denúncias de crimes, como racismo ou pedofilia, por exemplo. Contraditando os votos dos colegas, o ministro também defende que o artigo 19 continue valendo para os crimes contra a honra — calúnia, injúria e difamação.

Outra divergência do presidente do STF em relação a Dias Toffoli e Fux diz respeito ao grau de responsabilização das plataformas.

Enquanto os dois últimos defendem que as big techs sejam obrigadas a reparar danos causados por publicações criminosas mesmo se não tiverem culpa na sua disseminação, Barroso sugeriu a tese do “dever de cuidado”, na qual a punição só seria aplicada para falhas sistemáticas, e não erros pontuais.

Especialistas em direito digital ouvidos pelo Aos Fatos consideram que, caso prevaleçam as posições defendidas por Dias Toffoli e Fux, a decisão do STF levaria a um risco de censura prévia por parte das plataformas.

“Isso pode gerar incentivos estruturais e sistêmicos por mais remoção de conteúdo, o que pode acirrar a polarização política que o país já vive”, avalia João Victor Archegas, pesquisador do ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade), pontuando que nenhuma grande democracia tentou aplicar um regime de responsabilização objetiva como o apresentado.

Na sessão de 18 de dezembro, o ministro André Mendonça pediu vista no processo, e o julgamento só deverá ser retomado após o recesso do Judiciário. Ainda precisam votar os ministros Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Cristiano Zanin, Nunes Marques, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes.

Ilustração mostra cartas similares às de um baralho, mas cores amarelo e azul.

‘PL das Fake News’

A tomada de posição do STF em relação ao Marco Civil deve fazer com que a Câmara retome o debate sobre a regulação das redes. Até abril do ano passado, essa discussão ocorria no PL 2.630/2020, o “PL das Fake News”, que foi enterrado por falta de consenso.

A avaliação de analistas ouvidos pelo Aos Fatos é que a ação ostensiva das big techs contra a regulação pode se voltar contra elas a depender do rigor da decisão do STF no julgamento do artigo 19.

“Elas [big techs] dificultaram ao máximo o trâmite do PL 2.630, que era muito mais equilibrado que a proposta dos relatores no STF e, quando viram que a situação apertou, se propuseram a adotar várias medidas mitigatórias”, afirma Pedro Lana, integrante da CDR (Coalizão Direitos na Rede).

A retomada da discussão no Congresso não está descartada mesmo se o STF optar por uma decisão mais branda. O próprio ministro Barroso, em seu voto, faz um apelo direto ao legislador para que “regule as medidas necessárias” para a aplicação do seu entendimento.

Estabelecer diretrizes para a elaboração de relatórios de transparência e auditorias, definir sanções para plataformas que falharem no cumprimento do “dever de cuidado” e criar um órgão regulador autônomo para monitorar a atuação das empresas são alguns dos pontos condicionados à atuação de parlamentares.

Na falta de uma nova lei, porém, Barroso propôs soluções provisórias, prevendo que as big techs produzam relatórios de transparência nos moldes dos que são obrigadas a apresentar na União Europeia e deixando a fiscalização a cargo do Ministério Público e do Judiciário. O “jeitinho”, porém, reduz a urgência de se aprovar uma lei, o que poderia empurrar o debate.

“Acho que o PL 2.630/2020 tem muita dificuldade de avançar. Se for ter alguma mudança, vai ser no segundo semestre e por causa da decisão do STF”, avalia Lucas Marcon, advogado do Idec (Instituto de Defesa de Consumidores).

Ilustração mostra cartas similares às de um baralho, mas cores amarelo e azul.

Inteligência artificial

Em 10 de dezembro, o Senado aprovou o PL 2.338/2023, que cria um marco regulatório para a inteligência artificial no Brasil. A discussão se estendeu por mais de 500 dias, sob pressão da indústria e das plataformas, que agiram para atenuar as responsabilidades atribuídas a elas pelo projeto.

Com a aprovação pelos senadores, o debate vai continuar na Câmara, onde o cenário é mais hostil ao avanço da agenda digital.

“Na Câmara dos Deputados, há um grande lobby do setor privado que caminha em conjunto com a extrema direita”, afirma Paula Guedes, coordenadora de IA da CDR. A porta-voz da entidade acredita que a aliança das big techs com parlamentares conservadores deverá “vir ainda mais forte para tentar ao máximo desidratar o projeto”.

Ainda segundo Guedes, os deputados estão menos preparados tecnicamente para a discussão do que os senadores, que tiveram mais tempo para amadurecer suas posições.

Por isso, avalia, a escolha do relator deve ter papel crucial para o avanço da pauta na Câmara. Outro fator é a definição da forma de tramitação, já que a criação de uma comissão especial reduziria o caminho a ser percorrido pelo texto até a votação.

Ilustração mostra cartas similares às de um baralho, mas cores amarelo e azul.

Direitos autorais

A remuneração dos direitos autorais de artistas e jornalistas está parcialmente contemplado na regulação da IA e chegou a constar em uma das versões do “PL das Fake News”, de onde foi extraído para ganhar proposta própria.

O debate é fruto de um movimento que entende que as grandes plataformas lucram com o trabalho de artistas e com jornalismo profissional — cujas criações movimentam as redes e treinam modelos de IA —, mas não oferecem retorno financeiro.

Apesar das dificuldades em se chegar a consenso, o tema deve permanecer quente em 2025 por ter o contraponto de atores de peso, como associações de artistas e titulares de direitos autorais e, pelo lado do jornalismo, de grandes conglomerados midiáticos e suas associações.

Com impasses na tramitação do PL 2.630/2020 e do PL 2.370/2019, a arena mais provável para essa briga é a regulação da IA. A versão aprovada no Senado representou uma vitória para a classe artística, já que prevê a remuneração pelo uso de obras e a possibilidade de retirada delas dos sistemas de IA. Já na Câmara, avalia Paula Guedes, o tema pode ser alvo de pressões.

Apesar dos temores de que haja retrocesso no projeto, Pedro Lana avalia que alguns ajustes poderiam ser benéficos, como a redução nas restrições de usos de obras protegidas para IA com fins culturais e de pesquisa e a priorização dos interesses dos criadores intelectuais em vez dos grandes detentores de direitos autorais.

Ilustração mostra cartas similares às de um baralho, mas cores amarelo e azul.

Proteção de crianças e adolescentes

A Comissão de Comunicação e Direito Digital do Senado aprovou, no final de novembro, o PL 2.628/2022, que trata da proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais. O texto segue agora para a Câmara onde, ao contrário das outras matérias relacionadas à agenda regulatória digital, é esperada uma tramitação sem grandes sobressaltos.

O texto aprovado pelos senadores prevê:

  • A proibição do perfilamento comportamental e da análise emocional de crianças e adolescentes para direcionar publicidade;
  • A responsabilização das empresas e a obrigação de criar meios para reduzir os riscos de produtos e serviços digitais para as crianças, incluindo interfaces e sistemas de IA;
  • A obrigação de fornecer mecanismos de controles parentais acessíveis e simples;
  • A obrigação de remoção de conteúdos violadores aos direitos de crianças e adolescentes, a partir do conhecimento de sua existência;
  • A adoção de princípios para permitir o uso pleno dos produtos e serviços digitais por crianças e adolescentes com deficiência.

Maria Mello, líder do Eixo Digital do Instituto Alana, ressalta que o projeto tem recebido elogios de especialistas e pode colocar o país na dianteira da proteção dos direitos da criança no ambiente digital.

Apesar do consenso criado em torno da pauta, alguns interesses do setor privado seguem mobilizando o lobby em Brasília. É o caso das plataformas de streaming que, segundo Mello, tentam ser excluídas do escopo do projeto, que também levanta preocupações em serviços voltados exclusivamente para o público infantil, como o YouTube Kids.

As big techs, porém, têm demonstrado boa vontade em relação à essência do texto, após uma resistência inicial à vedação do perfilamento para fins de publicidade.

Ilustração mostra cartas similares às de um baralho, mas cores amarelo e azul.

Regulação econômica

Presente nos Estados Unidos e na Europa, o combate à concorrência predatória das grandes empresas de tecnologia deve ganhar força no Brasil em 2025, após a publicação, em outubro, de um estudo pela Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda.

Devido às preocupações com a concentração do mercado, o governo federal já orientou o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) para que olhe com mais atenção para a compra de startups pelas big techs — movimento que dificulta o surgimento de novos atores.

Além da concorrência no setor da tecnologia, a discussão também envolve o poder das big techs sobre outros segmentos econômicos, já que essas empresas detêm o controle da visibilidade das marcas, podendo condicionar o seu acesso aos consumidores de forma injusta.

Para 2025, a expectativa é que essa discussão chegue ao Congresso. Na Câmara, o tema já é alvo do PL 2.768/2022, de autoria do deputado federal João Maia (PL-RN).

Archegas, do ITS Rio, acredita que o governo deve querer apresentar seu próprio texto, inspirado na legislação da União Europeia. Ele também diz esperar que a discussão dos mercados digitais no Brasil seja menos polarizada do que a do “PL das Fake News”, por ser mais difícil associar o projeto a qualquer ingerência sobre os conteúdos que circulam nas redes.

Marcon, por sua vez, projeto um cenário mais pessimista, dado o impacto econômico que a discussão tem sobre os modelos de negócios das big techs.

O caminho da apuração

Aos Fatos procurou entidades da sociedade civil que atuam na defesa dos direitos digitais e perguntou quais tendências elas identificavam para 2025 nas suas áreas de atuação.

A reportagem foi complementada com o acompanhamento das sessões de julgamento do STF, consultas aos projetos de lei e outras reportagens.

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