Exaltação à raiva masculina ressoa de subculturas ao mainstream na internet

Compartilhe

Há três semanas, após o card principal do UFC 309 no Madison Square Garden, em Nova York, o campeão dos peso-pesados Jon Jones comemorou seu nocaute com uma dancinha famosa e uma homenagem ao autor da coreografia — o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, que aplaudia à beira do octógono.

Principal competição de MMA (artes marciais mistas), o UFC faz parte do caldo de cultura masculina na internet, e Trump soube aproveitar muito bem a proximidade com os influenciadores, lutadores ou não, que fazem parte desse universo.

A começar por Joe Rogan, que se notabilizou como comentarista da franquia de luta e hoje é um dos podcasters mais ouvidos do mundo, notório desinformador e dono do maior contrato de conteúdo com o Spotify — renovado neste ano sem exclusividade de plataforma.

“Há algo insidiosamente cruel em crescer em uma cultura que nos ensina a valorizar a fúria mas não nos ensina que essa valorização — esse privilégio de uma paixão total — não é democrática”, escreve a professora e crítica literária Ligia Gonçalves Diniz em “O Homem não Existe: Masculinidade, Desejo e Ficção” (Zahar), escolhido livro do ano de não ficção pelos colaboradores da Quatro Cinco Um.

Intitulada “testosterona e outros supertrunfos”, a terceira seção do livro parte de exemplos da literatura para dissecar o tratamento desigual dado a demonstrações de raiva por personagens masculinas ou femininas. E então Diniz extrapola esse raciocínio para o mundo real.

“Já esmurrei a janela do carro de um cara que roubou minha vaga no supermercado (e depois fiquei vermelha ao encontrá-lo no corredor de cereais). Já expulsei uma amiga de casa aos berros porque ela estava roubando no jogo de buraco (ainda acho justo). Já arremessei o aparelho de telefone no lixo, na redação do jornal em que trabalhava, porque liguei para um ex-namorado e uma moça atendeu (mas isso me rendeu um miniaffaire com um colega mais doido que eu, que achou o chilique charmoso)”, ela enumera.

“Paradoxalmente, na maior parte das vezes em que queremos, com nossa raiva, causar medo no interlocutor, somos chamadas jocosamente de psicóticas, enquanto é só quando estamos verdadeiramente em surtos de descontrole que chegamos a assustar alguém. Nunca a intimidação deliberada bem-sucedida; sempre o uso leviano da palavra ‘louca’”, continua.

“E eu, que só queria ser capaz de meter medo em alguém caprichando na postura e elevando o tom da voz! Mais do que o prazer que senti ao extravasar minha raiva nos episódios que contei há pouco, sinto vergonha e uma culpa difusa. Mesmo que hoje já consiga rir também dos meus excessos, a diferença no tratamento da violência me faz sempre questionar a legitimidade de meus próprios ímpetos e gestos, e isso é cruel demais.”

Em resenha sobre o livro na Quatro Cinco Um, Guilherme Pavarin nota muito bem que, na última década, “a expressividade masculina ganhou conotação política mais evidente”.

“Os progressistas reescrevemos a gramática do gênero, muitas vezes de modo culpado e submisso — nada mais deprimente do que o arquétipo do feministo. Já os conservadores, amedrontados, resgatam dogmas retrógrados em nome de uma masculinidade canastrona e agressiva”, ele escreve. “Cada grupo é infeliz à sua maneira.”

Compreender a encarnação atual do ressentimento masculino — esse “espectro pálido, egoísta e com potência baixa” que está “no centro de todas as catástrofes” — passa necessariamente por analisar os espaços que o alimentam e difundem, bem como suas ligações com o mainstream.

“A violência pregada ali não fica restrita aos ambientes online”, afirma Mariana Valente, diretora do InternetLab, no livro “Misoginia na Internet: uma década de disputa por direitos” (Fósforo). “Há registros de espaços masculinistas brasileiros terem sido utilizados para organizar assassinatos em massa no país, como tem ocorrido também em outros lugares”, ela continua, ao listar vários casos no país.

“A onda de atentados no início de 2023, que mostra tendências misóginas, levantou a discussão de como alguns comportamentos e discursos comuns àqueles chans haviam começado a ‘ganhar a superfície’ nas redes sociais nos anos anteriores.”

Nas últimas semanas, um personagem do noticiário ganhou a simpatia da machosfera, como relatou Ryan Broderick na newsletter Garbage Day. Luigi Mangione, preso nesta semana suspeito de assassinar o CEO da seguradora UnitedHealth, recebeu amplo apoio de usuários nas redes, independentemente do posicionamento político.

A exaltação à raiva masculina é mais antiga que “A Ilíada”, como mostra Diniz, e comunidades online são fundamentais para que esse mecanismo continue de vento em popa, mesmo que os resultados nem sempre sejam previsíveis.

Compartilhe

Leia também

falsoVídeo do letreiro de Hollywood em chamas foi gerado por IA

Vídeo do letreiro de Hollywood em chamas foi gerado por IA

falsoÉ falso que Haddad disse que plano do governo Lula é ‘taxar tudo’

É falso que Haddad disse que plano do governo Lula é ‘taxar tudo’

Checagem coíbe fraudes e exploração de tragédias em redes da Meta

Checagem coíbe fraudes e exploração de tragédias em redes da Meta