Quem é responsável por fiscalizar e regular o serviço da Enel em São Paulo

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O segundo apagão em menos de um ano na cidade de São Paulo gerou uma série de críticas ao serviço da Enel, detentora da concessão, e motivou uma disputa política que envolve todas as esferas do Poder Executivo.

Atual prefeito e candidato à reeleição, Ricardo Nunes (MDB) tem reiterado que a responsabilidade é da União e que não cabe à gestão municipal fiscalizar os serviços.

Já o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL), que também disputa o segundo turno, culpa a gestão do adversário por não ter tomado medidas preventivas após o apagão de novembro do ano passado. Os dois candidatos defendem o fim do contrato com a Enel.

Na esfera federal, o governo Lula notificou a empresa e propôs à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) uma intervenção administrativa na concessionária. O Executivo federal alegou que o problema também foi causado por falhas na fiscalização, papel que cabe tanto à Aneel como a um órgão do governo de São Paulo.

A seguir, Aos Fatos explica o que é verdadeiro nessa briga de versões sobre o apagão e quais são algumas das soluções possíveis para o problema da capital paulista.

  1. Quem é responsável pela regulação da concessão de energia?
  2. Quem é responsável pela fiscalização?
  3. Qual o papel da prefeitura?
  4. Quem foi responsável pelo contrato com a Enel?
  5. Quais as possíveis soluções?

1. Quem é responsável pela regulação da concessão de energia?

A regulação do setor energético é de responsabilidade da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), autarquia independente ligada ao MME (Ministério de Minas e Energia).

De acordo com a lei 9.427, de 1996, é dever do órgão “regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal”.

As regras para supervisão variam de acordo com o serviço prestado pela concessionária de energia:

  • Geração de energia: estipula os custos operacionais considerados nas tarifas, estabelece formas de garantir investimentos e padroniza os serviços e instalações usados para produzir eletricidade;
  • Transmissão de energia: organiza concessões de serviço público decorrentes de leilões, a prorrogação de contratos e instalações destinadas a interligações institucionais, além de padronizar serviços, equipamentos e instalações;
  • Distribuição de energia: cria regras e procedimentos para disciplinar a prestação do serviço público de distribuição, estabelece indicadores de qualidade, acompanha o processo de universalização do acesso à energia, implementa e aplica a tarifa social e regula os preços das contas de luz.

Em São Paulo, a Enel desempenha o papel de distribuidora de energia. Em sua página institucional, a empresa italiana diz ser responsável por fornecer eletricidade para 7,5 milhões de unidades consumidoras em 24 municípios da região metropolitana.

Infográfico explica quem é responsável pela manutenção, fiscalização e poda de árvores em São Paulo

2. Quem é responsável pela fiscalização?

A fiscalização dos serviços da Enel e de outras distribuidoras também é papel da Aneel. O processo está dividido em quatro etapas:

  1. Monitoramento da qualidade dos serviços prestados, levando em consideração, por exemplo, a percepção do consumidor e os indicadores de desempenho;
  2. Análise dos dados para identificação de problemas;
  3. Acompanhamento dos planos de regularização e correção de eventuais irregularidades;
  4. E ação fiscalizadora, que envolve punir eventuais falhas que não foram corrigidas.

Em 2023, a Aneel multou a Enel em R$ 165 milhões por conta da atuação da empresa no apagão ocorrido em novembro daquele ano. A punição, no entanto, foi suspensa por liminar concedida pela Justiça Federal.

Reportagem do g1 mostrou que, desde 2018, a autarquia já determinou que a Enel pague R$ 320,8 milhões em penalidades, dos quais apenas R$ 59,1 milhões foram efetivamente pagos. Os outros casos aguardam decisão judicial.

Desde 1996 a Aneel repassa parte de suas atividades de fiscalização para agências reguladoras estaduais. No caso de São Paulo, há a Arsesp (Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo), vinculada ao governo do estado.

Chamadas de “atividades descentralizadas”, as responsabilidades das agências estaduais estão listadas na Resolução nº 914/2001 da Aneel. Entre elas, está a fiscalização de serviços e instalações de energia elétrica que, segundo o próprio documento: “visam, primordialmente, à orientação dos agentes do setor elétrico e à prevenção, identificação e realização de ações corretivas relacionadas a condutas que contrariem as normas legais, os regulamentos e os dispositivos contratuais”.

Por meio do acordo de cooperação com a autarquia federal, a Arsesp pode, inclusive, aplicar multas à Enel — como ocorreu em 2019. Nesses casos, a concessionária de energia pode recorrer à Aneel para solicitar a revisão da penalidade.

A Arsesp, em junho deste ano, pediu mais dinheiro do que foi acordado inicialmente devido ao aumento na frequência de eventos climáticos emergenciais e às “crescentes demandas externas associadas a temas de melhoria da qualidade dos serviços prestados pelas distribuidoras”. A Aneel, no entanto, negou repasse por causa do contingenciamento de recursos feito pelo governo federal.

Dados do Ministério do Planejamento e Orçamento mostram que o valor previsto para que a autarquia federal realize ações de fiscalização caiu entre 2023 e 2024 (veja abaixo):

Segundo um documento encaminhado ao TCU (Tribunal de Contas da União) pela própria Aneel, a superintendência responsável pela fiscalização estava operando com metade da verba (R$ 16,5 milhões) do que informou precisar para realizar o serviço em 2024 (R$ 33,6 milhões).

Em nota enviada ao Aos Fatos, a Aneel confirmou que teve que realizar cortes por causa de contingenciamentos, mas que “mesmo diante desse cenário de restrição financeira, foram mantidos os esforços necessários para que as ações de fiscalização continuassem nos estados”.

De acordo com o advogado especializado em energia e infraestrutura e ex-superintendente da Arsesp Renato Fernandes de Castro, tem ocorrido há anos “um movimento de diminuição cada vez maior do escopo da atividade desenvolvida pela Arsesp na fiscalização do serviço das distribuidoras, porque a Aneel dispõe de menos dinheiro para pagar. Então, eu acredito que é uma questão sistêmica”.

3. Qual o papel da prefeitura?

A legislação em vigor determina que não é responsabilidade das prefeituras fiscalizar os serviços prestados pelas distribuidoras de energia.

As gestões municipais devem, no entanto, cuidar da zeladoria da cidade, o que engloba a poda de árvores, que podem causar danos à fiação e comprometer a distribuição de energia.

A Prefeitura de São Paulo, especificamente, tem um convênio com a Enel para o manejo das árvores da capital. Esse documento prevê que a concessionária realize a poda da vegetação “que está em contato com a rede elétrica energizada ou próxima à zona controlada e de risco de instalações elétricas”. A empresa também deve indicar à prefeitura quais árvores representam riscos ao sistema.

Para garantir a qualidade dos serviços, a concessionária também deve aumentar a resiliência da rede de fios, identificando e substituindo trechos incapazes de resistir a rajadas de vento e elaborar planos de recuperação em situações extremas.

Já a gestão municipal é responsável pela zeladoria de forma geral e por lidar com a poda de árvores localizadas fora da zona de risco, além de articular com a Enel o planejamento de obras de urbanização e reordenar o trânsito, quando necessário, para garantir que a empresa consiga realizar mudanças de infraestrutura.

Os estragos causados pela queda de árvores foram apontados como uma das principais causas do apagão ocorrido na região metropolitana. A prefeitura contabilizou a queda de 386 delas durante a tempestade de sexta-feira (11) e alegou que a Enel é culpada por parte dos casos, devido aos atrasos no manejo das podas.

Levantamento do g1 mostrou que São Paulo possuía cerca de 13 mil pedidos de poda ou remoção de árvores pendentes no primeiro semestre de 2024. Não há dados mais recentes.

4. Quem foi responsável pelo contrato com a Enel?

A concessão — uma forma de privatização — da distribuição de energia elétrica na região metropolitana de São Paulo aconteceu em 1998, durante o governo Mário Covas. O setor energético era até então responsabilidade da Eletropaulo, estatal criada em 1981.

Em 1998, a Eletropaulo foi dividida, e o setor responsável pela distribuição foi concedido ao consórcio Lightgás, formado pelas empresas americanas AES Corporation e Houston Industries Energy, pela francesa Electricité de France e pela brasileira Companhia Siderúrgica Nacional. O acordo de concessão tem duração de 30 anos.

Em 2018, houve novo leilão, e a Enel adquiriu o controle societário da Eletropaulo. Como não houve mudança no contrato, apenas na direção da empresa, os termos acordados em 1998 se mantiveram, e o prazo para a concessão segue sendo até 2028.

5. Quais as possíveis soluções?

Da mesma forma que cada um dos entes federativos tenta responsabilizar o outro pelo apagão, também está havendo um “empurra-empurra” na discussão sobre quem poderia solucionar a questão.

O prefeito Ricardo Nunes, por exemplo, pressiona o governo federal a realizar uma intervenção na Enel, enquanto o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), cobra providências da Aneel, que ele já chamou de “bolsonarista”. Nenhuma das soluções sugeridas, no entanto, é de curto prazo.

Em entrevista ao Aos Fatos, o ex-diretor geral da Aneel e ex-presidente da Light Jerson Kelman afirmou que a melhor contribuição que pode ser feita pelas entidades no momento é não atrapalhar os esforços de recuperação da rede. “Depois que o atendimento a toda a população tiver sido restabelecido, aí, sim, deve ser realizada uma cuidadosa investigação do ocorrido pela Aneel, que tem mandato para assim proceder”, afirmou.

O especialista ressaltou que a investigação posterior sobre o caso é que deve averiguar se a Enel executou investimentos e melhorias após o apagão do ano passado ou se “nada fez de substantivo para evitar ser surpreendida novamente numa emergência causada por extremo climático, o que deveria ensejar pesada punição (talvez até mesmo a caducidade da concessão)”.

Intervenção. O contrato de concessão da Enel estabelece que a União pode promover uma intervenção administrativa por meio de um decreto do presidente da República. A Lei das Concessões determina que a Aneel também pode decretar intervenção na Enel.

Esse processo, no entanto, tem prazo definido: após intervir, a autarquia tem 30 dias para instaurar um procedimento administrativo e 180 para concluí-lo.

Passado esse período, a Aneel pode pedir o fim do contrato. Enquanto a ação tramita na Justiça, no entanto, a concessionária tem o direito de seguir operando.

Quebra de contrato. A rescisão contratual, no entanto, é responsabilidade da Aneel. Mesmo que o governo federal defenda uma solução similar em algum momento, é a agência reguladora que tem o poder de decisão.

Nesse caso, a Aneel envia uma recomendação ao Ministério de Minas e Energia com argumentos baseados em critérios técnicos — apontando, por exemplo, se a concessionária tem ou não condições operacionais para realizar o serviço contratado.

Caso o ministério acate a recomendação, é aberto um processo que pode durar meses e até anos, uma vez que deve ser assegurado o direito de ampla defesa da concessionária.

“A concessionária tem o direito de se defender negativamente contra a intervenção e a rescisão. Então, não pode ter esse atropelo. Têm que ser observadas essas regras”, aponta Castro.

Aterramento. Uma das principais soluções apontadas para que apagões iguais ao que ocorreu na última sexta não voltem a acontecer é o aterramento da fiação. Hoje, apenas 6% dos fios elétricos da capital estão abaixo do solo.

Foto mostra Avenida Paulista sem fiação aérea
A avenida Paulista é um dos locais da capital com fiação subterrânea (Heitor Carvalho Jorge/Wikicommons)

A possibilidade de mudança da fiação aérea para a subterrânea foi discutida por diversas gestões paulistanas, mas nunca foi à frente por conta de entraves econômicos e jurídicos:

  • Em 2005, José Serra (PSDB) chegou a sancionar uma lei para determinar o aterramento dos fios;
  • O programa, que só se iniciou na gestão de Fernando Haddad (PT), acabou contestado na Justiça pela empresa responsável à época;
  • João Doria (PSDB) prometeu aterrar 52 quilômetros de fios em sua gestão, mas foi o prefeito Ricardo Nunes quem assumiu o plano. Até o momento, consta no plano de metas que foram enterrados 40 quilômetros.

A iniciativa de alterar a infraestrutura poderia vir das próprias concessionárias. No entanto, o alto custo e a perda de receita com o aluguel de postes para outras empresas tornam a medida economicamente desvantajosa.

O caminho da apuração

Aos Fatos entrou em contato com advogados especializados no setor elétrico, que apresentaram um panorama sobre a regulação da área e apontaram quais normas legais explicam as responsabilidades de cada órgão público. A reportagem consultou a legislação sobre o tema e organizou um fluxograma para visualizar de forma mais clara as funções de cada ente.

Recuperamos os acontecimentos políticos que envolvem o apagão e procuramos os envolvidos no caso — Aneel, Arsesp, Prefeitura de São Paulo e Enel.

Referências

  1. CNN Brasil (1 e 2)
  2. UOL
  3. g1 (1, 2 e 3)
  4. Planalto (1 e 2)
  5. Aneel (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8)
  6. Enel
  7. Arsesp
  8. Folha de S.Paulo (1, 2, 3, 4 e 5)
  9. Canal Energia
  10. Prefeitura de São Paulo (1 e 2)
  11. Memoria da Eletricidade
  12. BBC Brasil
  13. O Globo

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