A CDR (Coalizão Direitos na Rede) manifestou “receio” em torno da visita de um grupo de parlamentares brasileiros à sede do Google nos Estados Unidos nesta semana que abordou o uso da inteligência artificial no campo da saúde. Entre os membros da comitiva estava a deputada Luísa Canziani (PSD-PR), indicada para presidir a comissão que vai discutir a regulação da IA na Câmara dos Deputados.
A viagem à Califórnia durou três dias e foi paga pela Anahp (Associação Nacional de Hospitais Privados). Além de Canziani, pelo menos outros sete parlamentares estiveram presentes: os senadores Dr. Hiran (PP-RR), Esperidião Amin (PP-SC), Humberto Costa (PT-PE) e Efraim Filho (União Brasil-PB) e os deputados Lucas Redecker (PSDB-RS), Geraldo Resende (PSDB-MS) e Reginaldo Lopes (PT-MG).
A comissão especial para analisar o projeto de lei 2.338/2023, que estabelece um marco legal do uso da IA no Brasil, foi criada no último dia 7 pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB). Ela será formada por 34 deputados indicados pelas lideranças e vai discutir o texto aprovado no ano passado pelo Senado.
“O GT IA da CDR encara com receio, mas espera que tal viagem não influencie o curso do processo legislativo na Comissão de IA na Câmara dos Deputados, pois isso poderia configurar conflito de interesses, ainda mais considerando o papel que o Google desempenhou no andamento do PL 2.630”, disse a entidade, em nota enviada ao Aos Fatos.
O comunicado se refere à atuação da plataforma durante a tramitação do chamado “PL das Fake News” (PL 2.630/2020), em 2023. Na época, a empresa colocou um link crítico ao projeto na página inicial de seu buscador, sem sinalizar que se tratava de publicidade.
A investigação da Polícia Federal sobre o caso apontou indícios de abuso de poder econômico na conduta, mas o inquérito foi arquivado pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes.

A inteligência artificial foi um dos principais temas da agenda dos parlamentares nos Estados Unidos, que incluiu também visita à Universidade de Stanford. Na sede do Google, os políticos brasileiros assistiram a apresentações de executivos da empresa, que falaram sobre serviços como o Google Cloud e o Google Health.
No ano passado, Canziani — que já foi presidente da Frente Digital, bancada que era ligada às big techs — havia participado de outra missão aos Estados Unidos focada na IA. Na época, parlamentares brasileiros visitaram empresas de tecnologia, think tanks e órgãos do governo americano.
Como o Aos Fatos mostrou, dois integrantes da missão do ano passado atuaram no Senado para tentar alinhar o texto do PL 2.338/2023 ao interesse das empresas de tecnologia, reduzindo a responsabilização e a fiscalização sobre desenvolvedores e aplicadores de IA.
Baseado no modelo da União Europeia, o projeto aprovado no Senado estabelece uma regulação para a IA baseada nos riscos da tecnologia e prevê a criação de uma autoridade para fiscalização e implementação da lei.
A versão aprovada no Senado considera de “alto risco” — e, portanto, sujeitas a regras mais rigorosas — as aplicações de IA na área da saúde que tenham como objetivo “auxiliar diagnósticos e procedimentos médicos, quando houver risco relevante à integridade física e mental das pessoas”.
#publi
Como ocorreu na viagem do ano passado, alguns dos parlamentares que estiveram nos Estados Unidos nesta semana também usaram suas redes para tecer comentários elogiosos sobre a atuação do Google.
Em vídeo publicado em seus stories, Canziani diz que a comitiva iria conhecer “algumas soluções que o Google tem para melhorar a vida das pessoas” e chega a abraçar a gerente de Relações Governamentais e de Políticas Públicas da empresa, Roberta Rios, a quem chama de “amiga”.
Já o senador Dr. Hiran destacou a trajetória da big tech e afirmou que a tecnologia do Google Health está “mudando a forma de diagnosticar, tratar e cuidar de milhões de pessoas”. “Eles já pensam em tudo: desde o prontuário que se atualiza sozinho até a IA que detecta doenças antes mesmo dos sintomas aparecerem. É como se o Google tivesse virado médico... e um bem inteligente, diga-se de passagem!”, exaltou.
O deputado Geraldo Resende, por sua vez, usou suas redes para afirmar que o Google Cloud poderia “ajudar no aperfeiçoamento” do SUS (Sistema Único de Saúde), listando supostos benefícios do serviço.
Procurada, a Anahp disse que “cabe aos parlamentares avaliar se existe conflito de interesses” na participação na viagem aos Estados Unidos. O Google e os políticos integrantes da comitiva também foram procurados pelo Aos Fatos, mas não responderam o pedido de posicionamento até a publicação deste texto.
O caminho da apuração
Aos Fatos recolheu informações sobre a missão nas redes sociais dos parlamentares e pediu para a CDR avaliar o conteúdo das publicações.
A reportagem também enviou email para os gabinetes dos deputados e senadores e para as assessorias de imprensa do Google e da Anahp, pedindo posicionamento.