Este conteúdo foi atualizado em 12 de junho de 2024.
Em meio às enchentes que mataram ao menos 173 pessoas e desabrigaram 650 mil no Rio Grande do Sul, publicações sobre a colheita, o abastecimento e o preço do arroz têm tomado as redes. Setores ligados ao agronegócio demonstraram preocupação com a safra deste ano, já que o estado é responsável pela maior parte da produção brasileira e a chuva atingiu áreas que cultivam o grão.
Apesar de os arrozeiros gaúchos afirmarem que o desastre climático não prejudicou a colheita a ponto de provocar a falta do produto, um dos mais importantes na mesa dos brasileiros, o governo Lula anunciou que seriam realizados leilões de importação para garantir o abastecimento a preços acessíveis. O primeiro desses eventos, no entanto, ocorrido no dia 6, foi cancelado por suspeita de irregularidades nas empresas vencedoras (veja a explicação detalhada aqui).
A discussão se transformou em uma guerra de versões nas redes: de um lado, usuários acusam o governo de tentar “prejudicar” o agronegócio; do outro, alegam que os produtores estão tentando se aproveitar da tragédia para subir o preço do produto. No meio da disputa, consumidores reclamam dos preços, que subiram 13,9% em comparação com o mês passado.
Aos Fatos explica, em quatro pontos, a discussão em torno do caso:
- Vai faltar arroz por causa das enchentes?
- Produtores gaúchos ‘esconderam’ arroz para tentar aumentar os preços?
- Por que o governo vai importar arroz e quais os motivos que fizeram o leilão ser cancelado?
- O que explica a alta recente do preço do arroz?
1. VAI FALTAR ARROZ POR CAUSA DAS ENCHENTES?
O governo e entidades ligadas ao setor afirmam que não.
De acordo com o último relatório do Irga (Instituto Rio Grandense do Arroz) sobre a safra de 2023/2024, já foram colhidos 758 mil hectares dos 900 mil semeados (cerca de 84,2%). Dos 142 mil restantes, 23 mil estão totalmente perdidos e 17 mil estão submersos. Isso significa que 101 mil ainda podem ser colhidos.
Estima-se, portanto, que a safra deste ano no estado produza 7,1 milhões de toneladas, das quais 6,4 milhões já foram colhidas. Para efeitos de comparação, a safra anterior gaúcha foi de 7,2 milhões de toneladas, o equivalente a 70% da produção total do país.
O governo federal também assegurou que não faltará arroz e que não é necessário estocar o produto, diferentemente do que sugerem diversas publicações nas redes (veja abaixo). O ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, disse em entrevista à CNN Brasil que o governo pretende importar o alimento e auxiliar no transporte da produção gaúcha, que foi prejudicada também pela destruição das estradas.
Por fim, entidades ligadas ao comércio, como a Abras (Associação Brasileira de Supermercados), que monitora o abastecimento dos produtos, também dizem acreditar que não há risco de falta de arroz.
2. PRODUTORES GAÚCHOS ‘ESCONDERAM’ ARROZ PARA TENTAR AUMENTAR OS PREÇOS?
Essa é uma denúncia sem provas, que se originou de uma confusão em torno da importação do arroz anunciada pelo governo federal. Não há indícios de que arrozeiros tenham ocultado parte de seus estoques para inflar os preços do produto.
Entre o final de abril e o início de maio, quando a situação do Rio Grande do Sul se tornou mais crítica, passou a circular a alegação de que a safra de arroz teria sido atingida e que isso poderia causar desabastecimento no Brasil. Reportagens mostraram cenas de plantações completamente inundadas, e o Irga confirmou que a água havia atingido regiões em que o grão ainda não havia sido colhido.
A verdade, no entanto, é que as enchentes não prejudicaram tanto as colheitas, apesar de o Rio Grande do Sul ser o maior produtor de arroz do Brasil.
No início de maio, a consultoria Datagro estimou que as chuvas causariam a perda de 10% a 11% da safra deste ano — previsão que não se comprovou, já que, segundo a Irga, apenas 2,5% da safra foi comprometida. Um dia depois do levantamento da Datagro ser publicizado, o governo Lula anunciou a edição de uma MP (medida provisória) para importar arroz.
O texto, publicado no dia 10, autorizava a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) a comprar até um milhão de toneladas do grão para recompor os estoques, evitar a especulação financeira e estabilizar o preço nos mercados (veja a explicação detalhada no tópico 3).
Os agricultores gaúchos criticaram a decisão:
- A Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul disse que a medida era desnecessária, já que as perdas foram pontuais e 84% das lavouras foram colhidas antes do desastre;
- Já o presidente da Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul, Alexandre Velho, classificou a importação como uma “falta de sensibilidade” e alegou que o foco do governo deveria ser recuperar as estradas para garantir a logística de abastecimento;
- A Irga também afirmou que a safra colhida é suficiente para abastecer o mercado brasileiro. “Mesmo considerando as perdas, temos uma safra praticamente idêntica à anterior, o que nos leva a inferir que não haverá desabastecimento de arroz”, disse o presidente do instituto, Rodrigo Machado, em reunião na Câmara Setorial do Arroz;
- Membros da Comissão de Agricultura da Assembleia Legislativa do RS também criticaram a decisão, que julgaram ser “equivocada”, e alegaram que o necessário era garantir subsídios aos produtores locais.
Além das críticas, surgiram nas redes conteúdos que alegavam, sem provas, que os agricultores teriam escondido arroz para tentar aumentar os preços e depois voltado atrás (veja abaixo).
Nos dias posteriores às enchentes, de fato foram publicadas notícias de que parte da safra teria sido afetada pelas chuvas e que isso acarretaria prejuízo aos produtores. Aos Fatos não encontrou, no entanto, indícios de que agricultores tenham escondido seus estoques ou se mobilizado para vender o arroz a preços mais altos após perdas nas colheitas.
Nas semanas seguintes ao início do desastre, foi noticiado que alguns supermercados brasileiros começaram a restringir a venda de arroz por conta da movimentação de consumidores que tentavam estocar o alimento. A medida foi tomada de forma preventiva para resguardar os estoques em meio à tragédia.
3. POR QUE O GOVERNO VAI IMPORTAR ARROZ e quais os motivos que fizeram o leilão ser cancelado?
Apesar das críticas do setor produtivo, o governo defende a importação como uma forma de garantir a segurança alimentar brasileira a preços acessíveis. Autorizado por medida provisória no dia 10 de maio, o leilão de importação teve sua primeira etapa concluída no último dia 6 de junho. O pregão, no entanto, foi cancelado na última terça (11) por suspeita de irregularidades nas empresas vencedoras.
Segundo revelou reportagem da Folha de S.Paulo, três das quatro companhias que venceram o pregão não atuam diretamente no ramo de venda e importação de arroz. Isso só foi constatado após o resultado, já que o modelo atual de compra não identifica diretamente as empresas participantes, que são representadas por Bolsas de Mercadorias.
O cancelamento do leilão foi seguido pela exoneração do secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, Neri Geller. Há suspeitas de que Geller tenha favorecido a vitória de determinadas empresas que tiveram a venda intermediada pela Bolsa de Mercadorias de Mato Grosso e a Foco Corretora de Grãos, empresas que pertencem ao seu ex-assessor parlamentar, Robson Luiz de Almeida.
Entenda a cronologia do leilão abaixo:
- 7 de maio: o ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro, anuncia que o governo vai importar arroz para “evitar uma possível escalada no preço”;
- 10 de maio: governo publica MP que autoriza a compra de até 1 milhão de toneladas de arroz;
- 15 de maio: Conab informa que o primeiro leilão, com a previsão de compra de 104 mil toneladas, iria ocorrer no dia 21 daquele mesmo mês;
- 20 de maio: União publica portaria que zera o imposto de importação de três tipos do cereal;
- 21 de maio: leilão é adiado por conta da publicação da portaria que zerava os impostos de importação e pela especulação financeira no Mercosul, que elevou em 30% o valor da saca na região;
- 29 de maio: Conab anuncia uma nota data para o leilão — 6 de junho — e informa que serão importados até 300 mil toneladas de arroz;
- 5 de junho: após pedido de parlamentares do Novo, a Justiça Federal decide suspender o leilão por entender que não havia justificativa para importar arroz. No mesmo dia, no entanto, o TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) derruba a liminar e permite a realização do leilão.
- 6 de junho: 263,3 mil toneladas de arroz são arrematadas no pregão realizado pela Conab. No mesmo dia, a companhia anuncia que um novo leilão será realizado no dia 13 para a aquisição do restante previsto inicialmente — cerca de 36 mil toneladas;
- 7 de junho: a Folha de S.Paulo publica uma reportagem que denuncia que uma das empresas vencedoras do leilão seria uma loja de queijos de Macapá e a outra pertenceria a um empresário que já havia confessado pagar propina para conseguir contratos com o governo do Distrito Federal;
- 8 de junho: após as críticas, a Conab convoca as empresas vencedoras para comprovarem a capacidade técnica e financeira;
- 11 de junho: o governo federal anula o resultado ocorrido no dia 6 e cancela o que seria realizado no dia 13. Segundo a União, a decisão se deu por causa de “questionamentos sobre as capacidades técnicas e financeiras” das empresas vencedoras.
Por que o governo quer importar arroz? A reportagem questionou o governo federal sobre qual a motivação da MP e da portaria, mas ainda não recebeu retorno. Posicionamentos oficiais dos ministérios, no entanto, dão conta de que o governo defende a importação como uma forma de garantir a segurança alimentar brasileira a preços acessíveis:
- No dia 10, o ministro Paulo Teixeira assegurou que o governo não pretende concorrer com os produtores nacionais e que devem ser importadas cerca de 200 mil toneladas, e não a cota máxima de 1 milhão. Ainda segundo ele, o arroz importado será repassado apenas a pequenos mercados, para evitar especulação;
- Em nota publicada em 15 de maio, Teixeira também disse que a importação pela Conab garante o arroz ao preço de R$ 4 o quilo. “Esse é o preço que o consumidor vai pagar do arroz que o governo brasileiro está importando para abastecer o mercado nacional. Vai fazer com que diminua o custo de vida, já que o arroz é muito importante na refeição do povo brasileiro”;
- No dia 20, o vice-presidente Geraldo Alckmin, ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, disse que a portaria que zerou impostos de importação “busca evitar problemas de desabastecimento ou de aumento do preço do produto no Brasil, por causa da redução de oferta”.
Além do governo, a Associação Brasileira da Indústria do Arroz importou da Tailândia 75 mil toneladas do grão. De acordo com a entidade, a decisão foi motivada pelas perdas nas lavouras gaúchas e pela dificuldade em transportar os grãos já colhidos.
Identidade visual. Outro ponto criticado nas redes foi a embalagem do arroz importado. Conforme divulgado pela CNN Brasil, o grão será ofertado com logo do governo federal, mensagem que deixa claro que o produto foi adquirido pela União e indicação de preço máximo de R$ 4 o quilo. Usuários alegam que, com isso, o governo estaria “fazendo propaganda” em cima da destruição causada pelas enchentes.
Aos Fatos não encontrou embalagem semelhante em outros tipos de produtos já distribuídos pela Conab e, por isso, questionou a companhia se essa é uma estratégia usual para esse tipo de ação. Até a publicação desta reportagem, no entanto, não houve retorno.
4. O QUE EXPLICA A ALTA RECENTE DO PREÇO DO ARROZ?
Paralelamente à discussão se vai ou não faltar arroz, consumidores têm reclamado da alta do preço do produto neste mês de maio. De acordo com os dados do Cepea-USP (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada), em 28 de março, véspera da crise climática, a saca de 50 kg do alimento com casca custava R$ 99,13. No dia 21 de maio, o valor da mesma saca disparou para R$ 121,57.
Mesmo sem a definição precisa do impacto das enchentes na colheita do arroz, a alta recente do preço tem relação com a crise, avalia Lucilio Rogério Alves, pesquisador do Cepea: “Há maior presença de compradores, que buscam renovar seus estoques rapidamente com a retomada de parte das atividades. Além disso, incertos quanto às perdas registradas no estado do Rio Grande do Sul, vendedores seguem retraídos, o que reforça o movimento de alta dos preços”.
O diretor jurídico da Fedearroz, Anderson Belloli, explica também que o preço do arroz pode ter aumentado pela dificuldade logística para escoar o alimento: além das estradas, que foram destruídas em diversos pontos do Rio Grande do Sul, houve problemas na emissão de notas fiscais no estado no momento mais crítico das enchentes, afirma ele.
Belloli diz que o governo federal tem uma parcela de culpa no aumento dos preços, uma vez que o anúncio de que seria importada 1 milhão de toneladas de arroz acabou dando combustível às alegações de que haveria desabastecimento. "Isso causou uma corrida na compra de arroz dos grandes centros consumidores, por uma projeção de venda que não estava programada. Houve uma demanda muito maior, e o Rio Grande do Sul não conseguia atender o mercado porque nós estávamos debaixo d 'água", afirmou ao Aos Fatos.
O preço do arroz já vinha subindo desde a segunda metade de 2023. Em dezembro do ano passado, a inflação acumulada em 12 meses chegou a 24,54%, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Especialistas ouvidos pela imprensa afirmaram que a alta foi causada pelas fortes chuvas que atingiram o Sul do Brasil também no ano passado, além da baixa do dólar.
No início deste ano, o preço caiu um pouco – mas voltou a subir após as enchentes. Em abril, a inflação acumulada em 12 meses foi de 7,21%.
Em reportagem anterior, Aos Fatos mostrou que a diminuição da área colhida de um produto agrícola é apenas um dos fatores que podem afetar seu preço. Outras questões a se considerar são:
- O aumento da demanda do alimento no exterior;
- A inflação dos itens ligados à logística — como o preço dos combustíveis;
- A alta do dólar, que pressiona as exportações e diminui a oferta no mercado interno.
Esta reportagem foi atualizada às 13h35 do dia 12 de junho de 2024 para acrescentar informações referentes ao leilão ocorrido no dia 6 de junho e, posteriormente, cancelado.