Por que todo mundo quer mudar os impostos no Brasil

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O Brasil fez quatro grandes reformas tributárias no século 20, mas o sistema de impostos continua sendo um raro consenso (negativo) na política brasileira, da esquerda à direita. Na Câmara dos Deputados tramitam ao menos 25 projetos sobre o assunto e no Senado são mais 14, de partidos tão distintos como PC do B e PT, DEM e PSL.

Não é por acaso: além de excessivamente complexo – são mais de 60 impostos –, o sistema brasileiro contribui para a desigualdade ao taxar proporcionalmente mais as camadas pobres do que as ricas.

Nas próximas semanas, o governo Bolsonaro deve enviar sua própria proposta de reforma tributária ao Congresso. Discussões sobre o assunto levaram na semana passada à demissão de Marcos Cintra, entusiasta de uma nova CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras), ideia rejeitada pelo presidente.

Em meio a esse debate, Aos Fatos detalha os problemas do atual sistema brasileiro.

1. Impostos sobre consumo dominam

Uma palavra repetida com frequência para descrever o sistema tributário no Brasil é "regressividade". Impostos têm várias funções, que incluem arrecadar dinheiro para financiar o governo, estimular ou desencorajar comportamentos de compra e diminuir as desigualdades. Dizer que um sistema tributário é regressivo significa que ele executa mal esse terceiro papel, ou seja, não ajuda a redistribuir renda.

No Brasil, isso acontece em parte porque a maior parte da arrecadação vem de impostos indiretos, que incidem sobre produtos e serviços. Esse tipo de tributo pesa mais para quem tem menos dinheiro, porque, nas camadas mais pobres, o gasto com consumo tende a representar uma parcela maior da renda do que nas mais ricas.

Enquanto a média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) obtém 31,9% de sua arrecadação com impostos sobre mercadorias e serviços, no Brasil são 42,6%. Já no imposto sobre renda, que é progressivo (ou seja, é maior para quem ganha mais), a média da OCDE é de 33,8%, e a do Brasil apenas 20,8%.

A consequência prática é que os mais pobres comprometem uma proporção maior da sua renda com impostos. O problema é ilustrado pelos últimos dados disponíveis da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares) de 2009, do IBGE, compilados por pesquisadores do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2013:

2. Imposto de Renda baixo e desatualizado

Outra característica que torna o sistema brasileiro regressivo são o número de faixas e as alíquotas do imposto de renda, que são baixos quando comparados a outros países.

No Brasil, há apenas cinco faixas de imposto, e a taxa máxima é de 27,5%, que começa a ser cobrada de quem ganha a partir de R$ 4.664,68.

Em outros países, a alíquota, o número de faixas e o valor da renda mais alta costumam ser maiores. Nos Estados Unidos, por exemplo, são sete faixas distintas, com a taxa mais alta de 37% e que só é aplicada a quem ganha mais do que US$ 500 mil anuais (cerca de R$ 170 mil reais mensais). Na França, a taxa chega a 45%, e só incide sobre os rendimentos anuais acima de 156 mil euros (cerca de R$ 59 mil mensais),

Nem sempre o sistema brasileiro foi assim. De 1965 até 1988, o país tinha dez faixas de imposto, e a alíquota máxima era de 50% como mostra a lei 4.862/65. No ano da promulgação da Constituição, o então presidente José Sarney alterou a tabela, cortando a alíquota máxima pela metade, para 25%.

Os valores das faixas atuais também estão desatualizados, segundo o Sindifisco (Sindicato Nacional de Auditores Fiscais da Receita Federal). A entidade aponta que a tabela acumula uma defasagem de 95% frente à inflação desde 1996. Se tivesse seguido o índice, o limite de cima estaria hoje em R$ 9.169,34. O último ajuste foi em 2015.

3. Alívio para os super-ricos

Um terceiro fator que torna o sistema brasileiro mais regressivo é a diferenciação do imposto de acordo com a fonte de renda. Enquanto o imposto de renda de pessoa física tem taxas de até 27,5%, outras fontes pagam taxas menores, como investimentos financeiros (de 15% a 22,5%), e dividendos para acionistas (isentos).

O economista irlandês Marc Morgan, pesquisador do grupo do francês Thomas Piketty, mostra em um artigo que, em parte por causa dessa diferenciação, o imposto efetivo sobre a renda do 0,01% mais rico do país fica abaixo de 7%.

Isso acontece porque, nessa faixa de renda, é comum que a maior parte do rendimento venha não de salários, que seriam sujeitos ao imposto de renda para pessoa física, mas justamente da distribuição isenta de lucros e de investimentos financeiros.

O fenômeno é ilustrado pelo gráfico abaixo. A linha vermelha representa a taxa efetiva de imposto sobre todas as fontes (salários, investimentos financeiros e lucros distribuídos), por faixa de renda. É possível notar que, mesmo que o imposto sobre salários (faixa azul) seja progressivo, ou seja, onere mais os ricos, o efeito diminui quando entram na conta os investimentos financeiros (linha verde), e piora ainda mais no imposto total.

Em entrevista a Aos Fatos por email, Morgan afirma que o tratamento diferenciado das fontes de renda deixa o sistema mais complicado e menos transparente. "A contribuição das classes mais altas é menor do que poderia ser e isso é em parte ocultado pela complexidade do sistema."

Para os pesquisadores do Ipea Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti, a estrutura também acaba incentivando a "pejotização" da mão de obra ao cobrar taxas mais baixas de pessoas jurídicas e prejudicando a "equidade horizontal" do sistema, ou seja, o princípio segundo o qual contribuintes e setores econômicos devem ter taxados com os mesmos critérios.

Por fim, Morgan ainda avalia que, além de ser regressiva, essas características têm outros efeitos negativos porque acabam desestimulando investimentos, um dos gargalos da economia brasileira.

"Isso pode afetar a eficiência econômica porque encoraja a distribuição de lucros e de retornos do mercado financeiro ao invés do investimento e do treinamento de mão de obra, que aumentam a produtividade do país. [Os negócios] substituem investimento real por investimento financeiro".

4. Profusão de regras

Outro grande problema associado ao sistema tributário brasileiro é sua complexidade, que atinge não só o imposto sobre a renda, mas também sobre consumo. O Banco Mundial estima que uma empresa de médio porte no país gasta, em média, 1.958 horas por ano para calcular e pagar seus impostos, número sem paralelo no mundo.

Uma das causas para isso é o grande número de impostos no país – são pelo menos 63, segundo o IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário).

Só sobre bens e serviços, por exemplo, incidem pelo menos cinco: PIS/Cofins, IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e Cide (Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico, sobre combustíveis), que são federais, ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), estadual, e ISS (Imposto sobre Serviços) municipal.

O IPI tem uma tabela de 443 páginas que determina qual alíquota deve ser aplicada a cada produto. Algumas diferenciações são curiosas: sobre "perfumes (extrato)", por exemplo, incide uma taxa de 42%, já sobre "águas de colônia", de apenas 12%.

Recentemente, uma dessas classificações acabou no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). O órgão precisou decidir se os produtos da marca Crocs eram "sandálias de borracha" ou "calçados impermeáveis". Ganhou a primeira, e a empresa passou a ter que pagar US$ 13 por par como valor antidumping.

Assim, além de aumentar o custo das empresas com contabilidade, a profusão de impostos gera incerteza e disputas judiciais. Segundo o anuário do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), há mais de 31 milhões de processos motivados por disputas tributárias. Segundo o economista Bernard Appy, do Centro de Cidadania Fiscal, o montante disputado chega a R$ 4 trilhões.

Uma das ações, que está no STF (Supremo Tribunal Federal), questiona a fórmula de cobrança do PIS/Cofins. Em 2017, a corte decidiu que o ICMS pago pelas empresas deveria ser excluído da base de cálculo do PIS/Confins, o que não era feito. Agora, falta decidir se a decisão deve ser aplicada retroativamente ou não. Segundo levantamento do jornal O Globo, caso o STF decida usá-la em casos antigos, a ação pode gerar um prejuízo de R$ 229 bilhões para a União.

5. A carga tributária

A carga tributária no Brasil, ou seja, o total de impostos que o país recolhe, equivalia em 2017 a 32,3% do PIB (Produto Interno Bruto), um pouco abaixo dos 34,2% de média dos 34 países da OCDE (Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico), grupo formado, em sua maioria, por nações desenvolvidas.

Apesar disso, o número é alto quando comparado a países em nível similar de desenvolvimento ao Brasil. Turquia, Chile e México, por exemplo, ficam abaixo dos 25% e a média da América Latina é de 22,7%.

No começo da década de 1990, o Brasil estava num patamar similar ao desses países, mas a carga tributária cresceu ao longo dos anos, acompanhando os gastos do governo. Estimativas preliminares dos economistas José Roberto Afonso e Kleber de Castro para 2018 ainda indicam que o número pode ter subido para 35%.

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