Política do governo Lula sobre data centers sustentáveis omite impactos socioambientais

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Em discurso na Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) no fim de setembro, o presidente Lula (PT) afirmou que a MP 1318/2025, que institui uma política para os data centers em território nacional, vai incentivar a instalação de estruturas “sustentáveis".

Questionada sobre a fala do petista, uma vez que há um debate sobre o quão sustentáveis podem ser as instalações de armazenamento de dados voltadas para a IA, a Secom (Secretaria de Comunicação Social) da Presidência alegou que a medida provisória “prevê a sustentabilidade como regra, exige energia 100% renovável ou limpa, baixo consumo de água e carbono zero desde o início, com metas e comprovação”.

O posicionamento do governo vai de encontro à opinião de especialistas, que consideraram que a Medida Provisória é vaga em seus critérios e omite diversas questões relacionadas aos impactos socioambientais dos data centers.

As declarações de autoridades brasileiras também ignoram experiências ocorridas em outros países, que mostram que as metas apresentadas pela MP — conhecida como Redata (Regime Especial de Tributação para Serviços de Data Center no Brasil) — são, na verdade, bem difíceis de serem cumpridas.

Aos Fatos explica, abaixo, o que o governo tem deixado de lado na discussão sobre sustentabilidade de data centers.

O que é um data center e como ele funciona?

Data center é o nome dado às estruturas físicas que armazenam e processam dados. Existem diversos tipos de centros, mas a discussão atual gira em torno dos modelos que prestam serviços para empresas de inteligência artificial, chamados de data centers de hiperescala.

Atualmente, o Brasil possui 192 data centers, a grande maioria sem relação direta com a IA. Já foram divulgados, no entanto, projetos de instalações de complexos de centros de inteligência artificial em estados como Ceará, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Esse tipo de data center consome muita energia, porque precisa usar chips de processamento poderosos e funcionar 24 horas por dia. Os equipamentos também acabam superaquecendo e, por isso, é necessário que se use algum tipo de sistema de resfriamento — em geral à base de água.

Quanta energia consome um data center?

A medida provisória apresentada pelo governo Lula determina que os data centers devem usar fontes limpas ou renováveis — como energia eólica, solar ou oriunda de hidrelétricas — para “atender à totalidade da sua demanda de energia elétrica”.

Para Luís Tossi, vice-presidente da ABDC (Associação Brasileira de Data Centers), a quantidade de energia consumida não será um problema, já que o Brasil gera atualmente mais energia do que consome.

Ele lembra, inclusive, que há anos vem ocorrendo o chamado curtailment no sistema energético brasileiro — quando a produção de energia limpa é desperdiçada porque o sistema não consegue absorvê-la.

“Quando a gente fala ‘ah, mas o data center consome muita energia’, isso é um problema para os Estados Unidos, que não têm energia, mas para o Brasil isso é uma solução, porque aqui eu vou movimentar uma indústria de energia renovável que está parada por falta de consumo”, afirmou Tossi em entrevista ao Aos Fatos.

Críticos à medida apontam, no entanto, que as fontes classificadas como “limpas e renováveis” podem causar danos socioambientais. Hidrelétricas, por exemplo, que são a maior fonte de energia do Brasil, podem emitir gases que causam o efeito estufa. Elas também precisam desmatar e alagar áreas para serem instaladas.

Um estudo da UFC (Universidade Federal do Ceará) publicado em 2019 também apontou que a energia eólica pode impactar negativamente na fauna e na topografia de uma região, além de causar poluição sonora.

A imagem mostra uma casa simples de alvenaria, com paredes brancas e telhado de barro, situada em uma área rural de vegetação rasteira e solo avermelhado. Ao fundo, há três aerogeradores brancos de grande porte, com torres altas e pás giratórias, contrastando com o céu parcialmente nublado e a luz dourada do fim de tarde.
Poluição sonora e visual são exemplos de impactos nas comunidades próximas à campos de energia eólica (Camilo Lobo/Diálogo Chino)

Por motivos de segurança e para garantir o funcionamento ininterrupto, os data centers não conseguem operar apenas com energia renovável, já que esse tipo de recurso sofre com intermitências. A energia solar, por exemplo, depende da presença do sol; a eólica é obtida apenas quando o vento faz suas hélices girarem; e a hídrica depende do nível de água de seus reservatórios.

Para garantir que seus sistemas operem sem interrupções, portanto, os data centers recorrem também a combustíveis fósseis, como geradores a diesel. A queima desse combustível, que também é usado em veículos automotores, não só polui o ar como também pode causar danos à saúde humana, caso seus gases sejam inalados.

Para Daniel Cordeiro, doutor em matemática e computação e professor da EACH-USP (Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo), uma maneira de contornar a intermitência das fontes renováveis seria o uso de baterias de lítio. “Mas temos que levar em consideração que a construção dessas baterias também gera gás carbônico e elas têm uma vida útil”, lembra.

Qual o consumo de água de um data center?

O texto enviado pelo Executivo também determina que os data centers apresentem WUE (sigla para Índice de Eficiência Hídrica, em inglês) igual ou inferior a 0,05 litros por quilowatt-hora.

Para Tossi, esse critério só será atendido caso os data centers usem um modelo de refrigeração de condensação de ar em sistema fechado, que, apesar de gastar mais energia, não precisa repor continuamente a água.

Um levantamento da Brasscom (Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais) estima que esse sistema perde 10% da água por ano por causa de manutenções e vazamentos mínimos.

Mesmo que se confirme a previsão e os data centers adotem esse modelo, especialistas apontam que o abastecimento inicial requer muita água. A Brasscom estima que esse tipo de sistema precisa de 23 mil litros por MW de produção (veja cálculo abaixo).

A imagem apresenta dois blocos informativos sobre consumo de recursos em data centers. O primeiro, intitulado 'Energia', mostra o cálculo do gasto energético por meio da multiplicação entre potência instalada, PUE e tempo, resultando em MWh. O segundo, intitulado 'Água', descreve dois tipos de cálculos: o de consumo de água em sistemas de refrigeração a água, baseado no uso de torres de evaporação e reposições, e o de abastecimento único em sistemas de refrigeração a ar, com referência a um reservatório e taxas de perda anual. O rodapé indica as fontes ABDC e Associação Brasscom, com análise da Brasscom.

Para se ter uma ideia, um dos projetos de hiperescala já apresentados, o Scala AI City, em Eldorado do Sul (RS), terá capacidade inicial de 54 MW, mas alega que tem potencial de expansão para até 4.750 MW. De acordo com o cálculo da Brasscom, caso o projeto atinja todo seu potencial, ele precisará de 109,2 milhões de litros em seu reservatório.

Outra crítica feita por especialistas à redação atual do Redata é que o texto não veda a instalação de data centers em áreas de risco hídrico.

Impactos omitidos pelo governo

A redação atual do Redata também omite outros impactos socioambientais causados pelos data centers voltados à inteligência artificial:

  • André Fernandes, diretor do IP.Rec (Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife), por exemplo, lembra que o aparato industrial dessas estruturas precisa de minérios, como lítio, cobre e cobalto, muitas vezes obtidos por meio de mineração predatória;
  • Também não há especificação sobre o destino do lixo eletrônico gerado por esses data centers. José Renato Laranjeira, co-fundador do Instituto Lapin e pesquisador dos impactos socioambientais da IA, lembra que os equipamentos, como servidores e baterias, têm vida útil e eventualmente devem ser descartados e substituídos;
  • Os data centers são estruturas enormes que ocupam grandes áreas, o que eventualmente pode levar ao desmatamento e à inviabilização do solo;
  • A própria construção dos centros com cimento ou concreto também geram CO2;
A imagem mostra uma ilustração aérea de um grande complexo industrial planejado, composto por diversos galpões retangulares organizados em quadras simétricas e conectados por vias pavimentadas. A área é cercada por vegetação e cortada por um canal de água em primeiro plano. Ao fundo, há um lago e outras estruturas semelhantes, indicando expansão do complexo em meio a uma paisagem verde.
Projeto do Scala AI City, planejado para ser instalado em Eldorado do Sul (RS), terá área total de 7 milhões de m² (Reprodução)
  • Uma das estruturas — o data center projetado pela Casa dos Ventos em parceria com o TikTok em Caucaia (CE) —, inclusive, está sendo alvo de ação no MPF (Ministério Público Federal). O povo indígena Anacé argumenta que a estrutura ocupa seu território, será colocada próxima ao aquífero que abastece a região e viola acordos internacionais;
  • De forma geral, os data centers também causam poluição sonora (por causa do barulho dos equipamentos) e de lúmens (por conta da luminosidade excessiva);
  • O livro “Empire of AI” (ainda não lançado no Brasil), da jornalista Karen Hao, revela ainda que, em outros países, a promessa de geração de empregos não foi cumprida;
  • Esse, inclusive, é um dos questionamentos feitos pela UFU (Universidade Federal de Uberlândia) em relação ao data center que será instalado na cidade: a construção pode gerar empregos temporários, mas, para funcionar, precisaria de apenas um funcionário por MW gerado, segundo estimativas.

Pesquisadores criticam ainda a falta de transparência na confecção do Redata e denunciam que o texto não foi debatido pela comunidade científica brasileira ou sequer apresentado antes de ser publicado pelo Executivo. André Fernandes, diretor do IP.Rec, ressalta, no entanto, que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), levou o projeto às big techs em maio deste ano.

Artes por Méuri Elle.

Outro lado

Contatada pelo Aos Fatos, a Secom reafirmou que o Redata impõe padrões ambientais “entre os mais rigorosos do mundo” e que não altera nem flexibiliza nenhuma norma de licenciamento ou controle ambiental vigente.

Confira a nota completa

Elaborada por grupo técnico interministerial sob coordenação da Casa Civil, a Medida Provisória nº 1.318/2025, que instituiu o Regime Especial de Tributação para Serviços de Datacenter (Redata), tem a sustentabilidade como um de seus pilares centrais.

O Redata impõe padrões ambientais entre os mais rigorosos do mundo: uso de energia 100% renovável ou limpa, neutralidade de carbono desde o início e elevada eficiência hídrica. As tecnologias atualmente disponíveis já permitem operar datacenters em circuito fechado, praticamente eliminando o consumo de água. O programa adota como referência a métrica WUE (Water Usage Efficiency) de 0,05 L/kWh, que, na prática, exige o uso desses sistemas avançados.

Em relação à energia, os datacenters participantes do Redata deverão manter contrato de 100% de energia limpa, podendo utilizar a rede elétrica nacional como fonte principal, matriz que já é composta por cerca de 92% de fontes renováveis. Caso utilizem geradores de backup em situações excepcionais, eventuais emissões deverão ser compensadas integralmente com créditos de carbono, garantindo a manutenção da neutralidade de carbono exigida pelo regime.

A Medida Provisória não altera nem flexibiliza nenhuma norma de licenciamento ou controle ambiental vigente. A pedido do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), o Redata foi desenhado para atuar dentro do arcabouço regulatório já existente, sem dispensas nem simplificações. Assim, permanecem plenamente válidas as regras nacionais sobre uso e ocupação do solo, gestão de resíduos eletrônicos, emissões sonoras e luminosas, e extração de insumos minerais utilizados na infraestrutura de datacenters.

A política tem como objetivo atrair investimentos produtivos e gerar empregos qualificados, consolidando o Brasil como referência global em datacenters sustentáveis, aproveitando sua matriz elétrica majoritariamente renovável e seu sistema ambiental robusto.

O Redata integra a estratégia nacional de transição para uma economia de baixo carbono, em que o país busca transformar sua vantagem energética em desenvolvimento econômico sustentável. Mesmo comparadas a outras indústrias limpas, como o hidrogênio, o alumínio e o aço verdes, as operações de datacenter apresentam uma eficiência econômica superior, podendo gerar até 10 a 20 vezes mais receita por quilowatt consumido, o que reforça seu papel estratégico na nova economia digital e sustentável brasileira.


O caminho da apuração

Aos Fatos verificou a íntegra da MP publicada pelo Executivo e consultou pesquisas e reportagens sobre a sustentabilidade de data centers de IA no Brasil e no mundo. Também entrevistamos André Fernandes (IP.Rec), Daniel Cordeiro (EACH-USP), José Renato Laranjeiras (Lapin) e Luís Tossi (ABDC) para falar sobre o assunto.

Por fim, entramos em contato com a Secom para abrir espaço para comentários.

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