Antes mesmo de o CNE (Conselho Nacional Eleitoral) da Venezuela anunciar, no último domingo (28), que o ditador Nicolás Maduro venceu a eleição com 51% dos votos, opositores já afirmavam que o pleito estaria sob suspeita de fraude. Entre as denúncias, perseguição a opositores e falta de transparência para divulgar documentos que permitiriam auditar o resultado das urnas.
Em nota conjunta divulgada nesta quinta-feira (1º), Brasil, Colômbia e México pediram a divulgação das atas eleitorais e a solução do impasse na Venezuela país pelas “vias institucionais”.
As dúvidas em relação à eleição se desdobraram em uma avalanche de desinformação. E alimentam tensões diplomáticas: diversos países não reconheceram o resultado da votação, incluindo o Brasil.
Enquanto isso, o presidente Lula tem sido criticado por uma declaração feita em entrevista na última terça-feira (30):
Não tem nada de grave, não tem nada de assustador […]. Não tem nada de anormal. Teve uma eleição. Teve uma pessoa que disse que tem 51%, tem outra pessoa que teve 40 e pouco por cento. Um concorda o outro não, entra na Justiça e a Justiça faz.
Embora, em outro trecho da entrevista, Lula tenha alertado sobre a necessidade de divulgar as atas de votação, a declaração sobre a “normalidade” da situação faz vista grossa para as denúncias feitas não só pela oposição ao regime de Maduro, mas também por observadores internacionais e organizações que lutam por direitos humanos e eleitorais.
Veja abaixo o que pesa para levantar suspeitas sobre o resultado eleitoral da Venezuela:
1. Antes da eleição
A oposição critica a decisão do TSJ (Tribunal Supremo de Justiça) que, em janeiro, considerou inelegíveis os candidatos Henrique Capriles e María Corina Machado.
Em abril deste ano, a ONU denunciou o aumento de desaparecimentos de membros da oposição e das Forças Armadas: “Desaparecimentos forçados podem ter um efeito inibidor e impedir o direito da população de votar livremente”.
A imprensa internacional também afirma que venezuelanos que moram no exterior encontraram dificuldades em se inscrever para votar: alguns consulados estavam fechados e problemas envolvendo documentação impediram a participação da maior parte dessa população. A estimativa é que, dos 8 milhões de venezuelanos migrantes, apenas 68 mil puderam votar.
Na última segunda-feira antes do pleito (22), também foi noticiado que sites de ONGs e veículos jornalísticos críticos ao regime foram censurados no país.
Além dos problemas relatados acima, Carolina Silva Pedroso, professora de Relações Internacionais da Unifesp, aponta ainda que a declaração de Lula ignora ainda a situação política e jurídica da Venezuela:
“Há de se considerar também a nebulosa situação da separação entre os poderes na Venezuela, o que poderia gerar questionamentos quanto à possibilidade real de que a Justiça seja, efetivamente, um meio idôneo para resolver a contenda sobre os resultados", explicou.
Conforme relatório da Missão Internacional Independente da ONU, o Judiciário venezuelano carece de “independência e imparcialidade” e aponta que ele estaria subordinado ao regime de Maduro.
2. Durante a eleição
Na Venezuela, as eleições são feitas por meio de uma urna eletrônica que imprime os votos. Os resultados são transferidos para o CNE, que totaliza e divulga o resultado da votação.
O Carter Center, organização convidada pelo governo venezuelano para ser observadora do pleito, publicou um comunicado no dia 30 afirmando que a eleição “não pode ser considerada democrática”.
Além dos problemas das atas (veja tópico abaixo) e a desqualificação de candidatos da oposição, a instituição aponta que houve desequilíbrio de recursos, com clara vantagem de Maduro.
No dia da eleição, de acordo com o CNE, houve também uma tentativa de invasão hacker ao sistema de transmissão de votos. O governo de Maduro acusou, sem apresentar provas, os opositores pela tentativa de ataque cibernético. O MP venezuelano abriu uma investigação para apurar o ocorrido.
3. Pós-eleição
O principal problema, apontado por observadores internacionais, opositores e pelo próprio governo brasileiro ocorreu depois do processo eleitoral: não houve transparência com as chamadas “atas de escrutínio”, documentos semelhantes aos boletins de urna brasileiros. Trata-se de atas impressas pela urna ao final da votação e que indicam quanto cada candidato recebeu naquela seção.
Teoricamente, são impressas cópias das atas que são distribuídas para permitir auditoria. O problema, no entanto, é que há denúncias de que algumas seções não disponibilizaram esses documentos.
No dia 30 de julho, foi publicada uma nota conjunta de nove organizações internacionais, como a Human Rights Watch, dizendo que as eleições venezuelanas não foram transparentes. O documento acusa o pleito de ter ido contra a própria Lei Eleitoral:
“[A Venezuela deveria imediatamente] concluir os processos de auditoria eleitoral e de verificação cidadã exigidos por lei, de forma a conciliar os recibos de voto com os dados registrados na Ata de Escrutínio emitida por cada centro de votação. A auditoria deve ser pública e o processo verificável., diz o texto.
Denúncia semelhante aparece em nota do OEV (Observatório Eleitoral Venezuelano), ONG venezuelana que avalia os processos eleitorais no país. A organização alega que houve relatos de que cidadãos não conseguiram fazer a auditoria conhecida como “escrutínio”. Nesse processo, o resultado emitido pela urna é comparado com os comprovantes de votação impressos.
Versões digitais das atas também deveriam estar disponíveis no site do CNE (Conselho Nacional Eleitoral), mas desde a eleição, o portal está fora do ar.
O próprio presidente Lula, em momento posterior da entrevista, disse que conversou com Maduro e aguarda a divulgação das atas para tomar uma posição oficial pelo governo: “Eu, na hora em que estiveram apresentadas as atas, e for consagrado que as atas são verdadeiras, todos nós temos a obrigação de reconhecer o resultado eleitoral na Venezuela”.
O CNE também não cumpriu o prazo determinado pelo próprio conselho: o de que, após a divulgação do resultado, o total de votos do pleito deve ser divulgado em até 72 horas. Na eleição de 2018, esses números foram divulgados no dia posterior ao pleito.
Denúncias da oposição. As atas são o principal ponto da argumentação da oposição para afirmar que houve fraude eleitoral. Segundo os oposicionistas, as atas provariam que Maduro não teria recebido os votos declarados pelo CNE e teria perdido a eleição. Há diversos sites criados pelos opositores que alegam mostrar algumas atas coletadas nos locais de votação.
Como não houve divulgação das atas oficiais pelo CNE, no entanto, não é possível dizer se os documentos apresentados por esses sites são, de fato, verdadeiros.
Outra alegação da oposição é sobre a “irreversibilidade” do resultado divulgado pelo CNE. O presidente do comitê divulgou o resultado quando ainda não haviam sido totalizados os dados de todas as urnas.
O caminho da apuração
Aos Fatos buscou por notas divulgadas por observadores internacionais da eleição venezuelana e organizações relacionadas aos direitos humanos e eleitorais. A legislação eleitoral venezuelana também foi consultada e houve tentativas de acessar os dados do CNE nos últimos três dias, sem sucesso. Na imprensa em língua portuguesa e espanhola, também foram buscadas denúncias de irregularidades.
Em paralelo, Aos Fatos monitorou os posicionamentos do presidente Lula e do Itamaraty sobre a situação na Venezuela.