Quando a invasão da Ucrânia pela Rússia começou, em 24 de fevereiro, o influenciador Jhou Santos fez um anúncio para seus 422 mil seguidores: sua página, que publica memes de celebridades, passaria a divulgar apenas notícias sobre o conflito. Em seguida, ele postou uma fotografia de uma suposta vítima, uma criança que chorava em frente a um cadáver. O post viralizou — teve mais de 56 mil curtidas e compartilhamentos — mas a imagem, na verdade, era de uma cena do filme “A Resistência”, de 2010.
O episódio não é um caso isolado. Desde que o conflito teve início, páginas de entretenimento no Facebook, como a de Jhou, acumularam ao menos 188 mil interações em posts que usam imagens falsamente atribuídas à disputa na Ucrânia. O volume representa 46% do engajamento de toda a desinformação sobre a guerra checada pelo Aos Fatos na plataforma.
Para chegar a esses números, o Radar analisou 126 postagens de Facebook que foram objeto de 18 checagens publicadas entre 24 de fevereiro e 10 de março. Páginas de entretenimento e celebridades foram responsáveis por 29 (22%) desses posts, mas conseguiram quase metade do engajamento total. Com menos popularidade, outras publicações desinformativas foram disseminadas por páginas de cunho religioso, perfis de veículos noticiosos locais e usuários comuns.
Todas as publicações foram marcadas como desinformação no Facebook pelo Aos Fatos por meio do programa de verificação de fatos da Meta (saiba mais sobre a parceria).
CELEBRIDADES E GUERRA
Da amostra analisada pelo Radar, a página de Jhou, que dedica grande parte de suas postagens à cobertura do reality show Big Brother Brasil, foi a que conseguiu o maior número de interações com imagens tiradas de contexto. A reportagem tentou contato com o influenciador, mas não teve resposta até a publicação desta reportagem.
Além da foto tirada de um filme, ele publicou outras duas imagens que foram sinalizadas como falsas no Facebook. Uma delas mostra Anastasiia Lenna, eleita Miss Ucrânia em 2015, segurando uma arma e afirma que ela trocou “a coroa por metralhadora em defesa de seu país”. O post teve quase 2.000 interações. A modelo, porém, desmentiu que tenha se juntado às forças armadas ucranianas e disse que empunhava uma arma de airsoft (de uso recreativo).
Voltada à divulgação de informações sobre músicos negros, a página “100% Black”, seguida por 2 milhões de usuários, somou 27,4 mil interações em um post que informava sobre o início dos ataques russos. “Infelizmente começou o bombardeio na Ucrânia”, escreveu. A imagem que acompanhava o texto, no entanto, é de maio de 2021 e exibe um ataque de Israel à Faixa de Gaza.
Outro exemplo é a página “Muito Mais Você”. Habitualmente dedicada a comentários sobre o Big Brother Brasil e a mundo das celebridades, ela já publicou ao menos 24 postagens sobre os ataques russos para seus mais de 213 mil seguidores. Duas traziam imagens falsamente atribuídas ao conflito com a Ucrânia.
Uma delas mostrava um vídeo que na verdade era um ensaio militar ocorrido em 2020 na Rússia. A outra era uma foto antiga do presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, com uniforme do Exército e sustentava que ele estaria na linha de frente da resistência ucraniana — o que não é verdade. Os posts enganosos somaram, respectivamente, 2.700 e 217 interações.
RELIGIOSOS
Páginas de cunho religioso também tiveram participação significativa no impulsionamento de desinformação sobre a guerra — publicaram 23 das 126 publicações checadas como enganosas pelo Aos Fatos e somaram 113,7 mil interações (28% do total analisado).
A publicação mais popular nesse caso, com mais de 80 mil interações, veio da página “Paraclitus”, que se apresenta como um portal católico e tem mais de 3 milhões de seguidores. A peça traz um vídeo com homens ajoelhados orando em uma praça e a legenda “O povo ucraniano rezando o Rosário”. O registro, porém, foi feito em Varsóvia, capital da Polônia, em 5 de março, não na Ucrânia.
Já o pastor Renato Vargens alcançou 7.200 curtidas e compartilhamentos em sua página no Facebook com outra fotografia de pessoas rezando. “Essa foto mostra nossos irmãos em Cristo orando na Ucrânia”, afirmou na postagem que continha uma foto tirada em 2019.
OUTRAS REDES
A mudança de foco de páginas que não costumam abordar temas relacionados à política internacional não se restringiu ao Facebook. Outros perfis dedicados a celebridades entraram na cobertura da guerra na Ucrânia no Twitter e no Instagram, despertando um debate nas redes sociais que foi impulsionado sobretudo pela conta “Choquei” no Twitter. Ela interrompeu suas postagens sobre o BBB para iniciar uma cobertura em tempo real do conflito para 1,4 milhão de seguidores.
No dia 24 de fevereiro, o termo “Choquei” chegou aos assuntos mais comentados do Twitter. Desde então, o perfil postou ao menos três tweets desinformativos a respeito da guerra. Um deles, checado pelo Aos Fatos, atribuía imagens registradas em 2014 à ocupação da usina de Tchernóbil por tropas russas — a postagem não está mais disponível. A Agência Lupa checou, ainda, outras duas publicações falsas disseminadas pelo perfil (aqui e aqui).
No Instagram, perfis similares seguiram a mesma tendência. A página “Vizinha Fofoqueira”, que se apresenta como uma conta de “polêmica e babados”, publicou para seus 5.000 seguidores que Zelenski estava “com uniforme de guerra para combater na linha de frente as tropas russas”. No entanto, as imagens foram registradas antes do início do conflito e não há registros de que ele tenha ido ao campo de batalha durante a guerra.
OUTRO LADO
O Radar entrou em contato com todas as páginas mencionadas. Os administradores do perfil “Vizinha Fofoqueira” afirmaram, pelo WhatsApp, que decidiram publicar conteúdos sobre a guerra, pois ela “afeta a todos”, mas não se pronunciaram sobre a postagem enganosa. Os responsáveis pelas demais contas não responderam às mensagens ou não quiseram se manifestar.
Além disso, as páginas “Vizinha Fofoqueira”, “Muito Mais Você” e do pastor Renato Vargens deletaram as publicações que continham as imagens falsamente atribuídas ao conflito após contato da reportagem.
METODOLOGIA
O Radar reuniu as 126 postagens sobre a invasão russa à Ucrânia que foram marcadas como falsas ou sem contexto pelo Aos Fatos no Facebook, por meio do programa Third-Party Fact-Checking Partners da Meta, e que seguiam no ar até a última sexta-feira (11). Em seguida, a reportagem analisou os perfis dos autores das publicações, considerando a descrição das páginas e o histórico dos posts.