Em meio às altas temperaturas que atingem grande parte do Brasil, um veículo jornalístico afirmou que a sensação térmica poderia alcançar impressionantes 70 ºC em algumas cidades brasileiras, como Porto Alegre e Rio de Janeiro.
Publicações que replicaram a estimativa alcançaram ao menos 10 milhões de visualizações no X (ex-Twitter) e 28 mil curtidas no Instagram até a manhã desta quinta-feira (13). O cálculo, entretanto, está equivocado.

De acordo com especialistas ouvidos por Aos Fatos, foi feita uma interpretação incorreta de ferramentas usadas por meteorologistas para o cálculo da sensação térmica.
Apesar de o número estar errado, as ondas de calor que o país vive são preocupantes e refletem o impacto das mudanças climáticas, que tornam os padrões meteorológicos extremos cada vez mais frequentes.
A seguir, Aos Fatos explica o conceito de sensação térmica, como ele é calculado e por que a estimativa viral é falsa.
- O que é sensação térmica e como ela é calculada?
- É possível chegar à sensação térmica de 70 ºC?
- O que esperar para os próximos anos?
1. O que é sensação térmica e como ela é calculada?
A sensação térmica é a maneira como nossos corpos percebem a temperatura em um determinado momento e local.
A medida pode diferir da temperatura real, já que leva em consideração variáveis que afetam a transferência de calor entre nosso corpo e o ar, como a umidade relativa do ar, o vento, a radiação solar e a própria temperatura real.
Um exemplo: quando saímos de um banho quente, temos a impressão de que a temperatura ambiente está mais fria do que antes. Contudo, ela não mudou, mas as variáveis da transferência de calor sim.

Não existe um modelo universal para o cálculo da sensação térmica, esclarece o doutor em ciências Gustavo Zen de Figueiredo Neves. “Há uma tendência em adaptar e criar, bem entre aspas, uma universalização. Mas ela é equivocada porque a resposta térmica e o equilíbrio térmico da própria fisiologia vai responder de maneira diferente entre indivíduos”, afirma.
A meteorologista Josélia Pegorim explica que, em geral, as fórmulas que calculam a sensação de frio consideram a temperatura real do ar e a velocidade do vento, enquanto a sensação de calor combina temperatura e umidade relativa do ar.
Em ambos os casos, o cálculo deve levar em conta as variáveis no mesmo horário. A temperatura, a umidade relativa do ar e a velocidade do vento variam ao longo do dia e, portanto, a sensação térmica também.
2. É possível chegar à sensação térmica de 70ºC?
Sim, é possível — mas é altamente improvável na situação atmosférica dos próximos dias.
A estimativa divulgada pela imprensa foi feita a partir de um gráfico publicado em 2019 pelo Núcleo de Climatologia Aplicada ao Meio Ambiente da USP.
Gustavo Zen, que integrou o núcleo de 2013 a 2022, explica que o erro do veículo foi selecionar os valores máximos de tendência de temperatura e umidade relativa do ar em diferentes horários e dias distintos.

A partir da mesma tabela utilizada pelas reportagens, Pegorim afirma que, para a sensação térmica chegar a 70 ºC, a temperatura deveria ser de no mínimo 41 °C, e a umidade relativa do ar deveria estar em torno de 80% no mesmo horário do mesmo dia.
No entanto, essa é uma situação que dificilmente ocorreria na prática. Em geral, quanto mais quente está o ar, menor é o nível de umidade — afinal, o aquecimento do ar causa a evaporação da umidade.

É por isso que, em dias de sol, os menores índices de umidade do ar ocorrem próximos às maiores temperaturas observadas no dia. Nestas mesmas datas, os maiores níveis de umidade costumam ser observados durante a noite, ao amanhecer ou em momentos de chuva.
“Se nós tivermos um valor muito elevado de temperatura, diretamente a umidade relativa vai ser reduzida. É um princípio físico e químico que nós da climatologia levamos a rigor”, afirma Zen.
3. O que esperar para os próximos anos?
Mesmo com a sensação térmica não chegando a 70 ºC, a situação é preocupante, como afirma o cientista do clima e professor da Uece (Universidade Estadual do Ceará) Alexandre Costa.
Ele explica que, diferente de outros primatas, os seres humanos utilizam a evaporação do suor para a regulagem da temperatura corporal. Casos de temperaturas acima de 40 ºC, especialmente em condições úmidas, são perigosos para a saúde humana por representarem risco de desidratação aguda e hipertermia.
“As ondas de calor são potencialmente letais, e algumas pessoas estão mais desprotegidas que outras. Trabalhadores e trabalhadoras expostos ao calor, pessoas que realizam atividades físicas ao ar livre, crianças, idosos e pessoas com problemas cardiorrespiratórios são exemplos de indivíduos em condição vulnerável”, diz.

Costa afirma que as projeções atuais mostram que a quantidade de dias por ano em que a temperatura tende a ultrapassar os 35 ºC vai aumentar significativamente ao longo deste século.
A depender do cenário, é possível que algumas regiões do Brasil, especialmente a região norte, o interior do Nordeste e o centro do país, registrem 80 ou mais dias por ano com temperaturas extremas em relação às décadas passadas.
O meteorologista Carlos Nobre explica que, apesar de fenômenos climáticos como ondas de calor existirem há milhões de anos, eles vêm se tornando cada vez mais frequentes devido ao aumento da temperatura da Terra.
“O planeta está mais quente, então ele joga mais energia na atmosfera, principalmente através da evaporação da água. Então, tendo mais energia na atmosfera, todo tipo de evento acontece com mais intensidade. Ondas de calor, chuva extrema, seca extrema, rajadas de vento sempre existiram, mas agora estão batendo recordes”, alerta.
Para Costa, é importante discutir adaptações às novas condições climáticas, como questões arquitetônicas, de planejamento urbano e do mundo do trabalho, mas também é necessário entender que há limites para as adaptações. “A gente precisa falar de redução radical das emissões de gás, de zerar desmatamento, de abandonar combustíveis fósseis como ponto de energia”, afirma.
Além disso, Zen aponta que a divulgação de informações equivocadas causa alarmismo na população, tirando o foco da discussão real sobre o problema. “A gente precisa de mais ciência, mais bom senso e critérios mais rigorosos para as publicações, tendo em vista a repercussão e amplitude que uma informação falsa possui”, concluiu ele.
O caminho da apuração
Aos Fatos consultou especialistas em meteorologia, climatologia e meio ambiente, que explicaram o motivo pelo qual a estimativa divulgada pela imprensa e viral nas redes está equivocada. Também utilizamos a ferramenta disponível no site do Climatempo para criar um gráfico comparativo entre a temperatura e umidade relativa do ar na cidade do Rio de Janeiro.