A possibilidade de alteração do nome e dos indicadores de gênero em documentos oficiais é um direito garantido pelo Supremo Tribunal Federal desde 2018 a pessoas não cisgênero, cuja identidade de gênero não está alinhada ao atribuído no nascimento. Órgãos e entidades do governo, o Judiciário e serviços de saúde e assistência social são obrigados a respeitar as mudanças nos documentos.
Com base no princípio constitucional da dignidade humana, o STF determinou que não é necessário apresentar autorização judicial, laudo médico ou comprovação de cirurgia de afirmação de gênero para alterar os documentos. O processo é orientado por uma norma do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que estabelece regras para tribunais e cartórios de todo o Brasil.
Para marcar o Dia do Orgulho LGBTQIA+, celebrado nesta sexta-feira (28), Aos Fatos preparou um guia que explica o processo de retificação do registro civil:
- O que é nome social e o que pode ser retificado em documentos oficiais?
- Como funciona o processo?
- O que é necessário para solicitar a retificação?
- O que fazer em caso de recusa?
1. O QUE É O NOME SOCIAL E O QUE PODE SER RETIFICADO EM DOCUMENTOS OFICIAIS?
É o nome pelo qual uma pessoa não cisgênero se reconhece e é reconhecida socialmente. O processo de retificação existe para adequar os registros oficiais à maneira com a qual a pessoa se identifica, e não mais ao nome normalmente atribuído no momento do nascimento.
Uma cartilha do o Ministério do Desenvolvimento Social com orientações sobre o uso do nome social afirma que o respeito à autodeterminação de um indivíduo sobre sua identidade de gênero “se refere à garantia de um direito para pessoas que historicamente vivem violações, o que pode atuar como um importante elemento para o desenvolvimento do acompanhamento socioassistencial”.
No entanto, da mesma forma que terapias hormonais ou modificações corporais — também garantidas pelo poder público à população LGBTQIA+ —, a retificação é um direito que depende apenas da escolha individual.
De acordo com a decisão do STF, podem ser retificados:
- O nome;
- Os agnomes indicativos de gênero (ex: Júnior, Filho, Neto);
- O gênero em certidões de nascimento;
- O gênero em certidões de casamento, desde que haja autorização do cônjuge.
É possível optar pela retificação do nome, do gênero ou de ambos. A adequação não inclui o sobrenome e o nome escolhido não pode ser igual ao de outro membro da família.
O decreto nº 8.727/2016 determina que todos os órgãos e entidades da administração pública federal devem adotar o uso do nome social. O direito se estende a estabelecimentos de saúde vinculados ao SUS (Sistema Único de Saúde) e a centros de assistência social.
No caso de escolas e universidades, a resolução nº 1/2018 do Ministério da Educação determina que maiores de 18 anos podem solicitar o uso do nome social durante a matrícula ou em qualquer outro momento sem a necessidade de mediação. Já para crianças e adolescentes, é necessário autorização dos pais ou responsáveis legais.
A resolução 270/2018, do CNJ, também garante a adoção em registros do Judiciário, como no quadro de funcionários e nos sistemas e documentos de tribunais.
2. COMO FUNCIONA O PROCESSO?
Qualquer pessoa não cisgênero com mais de 18 anos tem o direito de solicitar a retificação em qualquer cartório de registro civil do território nacional — que, por sua vez, deve encaminhar o processo ao cartório que registrou o nascimento.
No site do CNJ, é possível encontrar o endereço e os contatos de todos os cartórios do país selecionando a opção “localização de registradores civis e unidades interligadas” (veja aqui).
Para maiores de 18 anos, não é necessária a participação de advogado ou defensor público. A Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) possui um modelo de requerimento de alteração no registro que pode ser conferido aqui. No caso de menores de idade, a adequação só pode ser feita por via judicial.
Como forma de preservar a privacidade, o processo é feito sob sigilo e não há menção da retificação nos novos documentos.
Após o fim do processo, o CNJ prevê que os cartórios devem notificar os órgãos responsáveis pela expedição do RG, do CPF, do passaporte e do título eleitoral para adequação desses documentos. Outros, como a carteirinha do SUS, a carteira de habilitação e a carteira de trabalho devem ser alterados pela pessoa que requisitou a correção.
Valores. Os valores da retificação do registro e da emissão dos documentos necessários variam de acordo com o estado em que está sendo feito o pedido e são definidos pela Corregedoria-Geral da Justiça de cada estado. O requerente deve entrar em contato com o cartório de sua região para se informar sobre os preços.
Também é possível solicitar a gratuidade em alguns cartórios mediante uma declaração de hipossuficiência — documento em que uma pessoa se diz incapaz de arcar com os custos do processo. Como não há previsão legal para a gratuidade, a declaração pode não ser aceita em todos os cartórios do país. Caso haja negativa, é recomendado que o indivíduo busque auxílio legal.
3. O QUE É NECESSÁRIO PARA SOLICITAR A RETIFICAÇÃO?
De acordo com o CNJ, é necessário apresentar os seguintes documentos ao cartório:
Além disso, é preciso apresentar algumas certidões, sempre dos locais de residência dos últimos cinco anos:
- certidão negativa de ações cíveis (estadual e federal);
- certidão negativa de ações criminais (estadual e federal);
- certidão de execução criminal (estadual e federal);
- certidão dos tabelionatos de protestos;
- certidão da Justiça Eleitoral;
- certidão da Justiça do Trabalho;
- certidão da Justiça Militar, se for o caso.
Não há necessidade de apresentar laudos médicos, parecer psicológico, autorização judicial ou comprovação de cirurgia de afirmação de gênero.
O CNJ também determina que ações trabalhistas ou criminais, assim como dívidas pendentes, não são impedimentos para realização da retificação. Nesses casos, no entanto, a adequação deverá ser comunicada aos juízes ou credores. A notificação poderá ser feita pelo cartório ou pelo requerente, a depender do local do processo. O recomendável é consultar o escrevente do cartório sobre como prosseguir.
4. O QUE FAZER EM CASO DE RECUSA?
A não ser pela falta de documentação, os cartórios de registro civil não podem se recusar a realizar o processo de retificação, que também não podem exigir documentos fora da lista do CNJ.
Em caso de recusa, a pessoa requerente pode fazer uma denúncia aos órgãos responsáveis pela fiscalização das repartições, como a Defensoria Pública, os tribunais de Justiça e a Corregedoria Nacional de Justiça. A Defensoria Pública de Santa Catarina orienta em documento que os requerentes procurem o órgão para solicitar assistência jurídica, que é oferecida gratuitamente.
É possível ainda denunciar comportamentos abusivos de funcionários dos cartórios por meio de um formulário disponibilizado no site da Anoreg (Associação dos Notários e Registradores do Brasil). Alguns tribunais de Justiça também disponibilizam meios de denúncia em seus sites.
Além disso, organizações como a Antra possuem projetos para monitorar a atuação dos cartórios em procedimentos de retificação e aceitam denúncias, reclamações e dúvidas sobre o processo.