Uma apresentação da cantora paraense Aymeê Rocha no reality show gospel Dom, no último dia 15, trouxe de volta às redes uma acusação sem provas sobre abuso infantil na Ilha de Marajó (PA), feita pela senadora Damares Alves (Republicanos-DF) durante as eleições de 2022.
Na canção “Evangelho de Fariseus”, composta por ela e apresentada na semifinal do programa, Rocha narra o desaparecimento de uma criança na região. Questionada pelos jurados sobre a letra, a artista disse ter se inspirado na ocorrência de casos de “pedofilia” na região, problema real que já foi identificado por autoridades e é objeto de investigações. Aymeê também fez referência a “tráfico de órgãos”, crime sobre o qual não há registro, segundo o MPF (Ministério Público Federal).
“As famílias de lá [Ilha de Marajó] são muito carentes. As criancinhas de seis, sete anos saem numa canoa e elas se prostituem dentro do barco por R$ 5 ”, disse Aymeê Rocha.
Após o vídeo viralizar — com mais de 11 milhões de visualizações no perfil do reality no Instagram e compartilhamentos de influenciadores como a apresentadora Rafa Kalimann (22 milhões de seguidores no Instagram) e as cantoras Joelma (5 milhões de seguidores) e Juliette (31 milhões de seguidores) —, passaram a circular nas redes peças de desinformação e denúncias sem provas sobre abuso infantil na região do Pará:
- Trechos da performance de Rocha foram mesclados a um discurso de outubro de 2022 em que Damares fala sobre supostas práticas de tortura e mutilação de crianças para exploração sexual no Marajó. Os casos nunca foram comprovados;
- Vídeos com esse teor acumulam mais de 10 milhões de visualizações no Instagram e ao menos 1,2 milhão de visualizações no TikTok. “A senadora Damares sempre teve razão ao denunciar a exploração infantil na Ilha de Marajó”, diz a legenda de um deles;
- Sem fazer referência à denúncia, a própria senadora também compartilhou o vídeo da apresentação de Rocha em seu Instagram. O post foi visualizado cerca de 3 milhões de vezes. Outros cinco portais evangélicos relembraram as denúncias após a apresentação da cantora;
- Também voltaram a circular peças de desinformação que compartilhavam cenas de abuso infantil gravadas em outras localidades como se tivessem sido registradas na Ilha de Marajó e publicações que mentem ao alegar que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teria encerrado programas sociais na região.
Organizações da sociedade civil que atuam na Ilha de Marajó repudiaram as declarações da cantora e da senadora.
“A propaganda que associa o Marajó à exploração e o abuso sexual não é verdadeira: a população marajoara não normaliza violências contra crianças e adolescentes. Insiste nessa narrativa quem quer propagá-la e desonrar o povo marajoara”, publicou o Observatório do Marajó em nota, lembrando que os abusos e violências ocorrem em todas as regiões do país.
DENÚNCIA SEM PROVAS
Em setembro de 2023, o MPF entrou com uma ação civil pública contra Damares, pedindo uma indenização de R$ 5 milhões pela divulgação de “falsas informações sensacionalistas envolvendo abuso sexual e torturas às crianças do Marajó”.
No pedido, os procuradores reconhecem “graves violações de direitos humanos e a ocorrência de crimes graves na região do Marajó, incluindo exploração sexual de crianças e adolescentes”, mas afirmam que isso “não justifica a utilização sensacionalista da vulnerabilidade social daquela população, associada à divulgação de fatos falsos”. A Ilha de Marajó, como afirma o MPF, de fato é um lugar de alta vulnerabilidade social. Dos 16 municípios da região, 14 figuram entre os de pior IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano do Município) na listagem de 5.568 cidades brasileiras.
"Além de não contribuírem em nada, as reiteradas desinformações discriminatórias divulgadas por uma alta autoridade da administração pública federal reforçam estereótipos e estigmas históricos, confundem a sociedade e prejudicam a execução de políticas públicas sérias e comprometidas com a melhoria das condições sociais da população do Marajó", diz a ação, que aguarda julgamento na Justiça Federal.
Procurado pelo Aos Fatos para que comentasse o caso, o MPF reforçou o posicionamento registrado na ação.
Já o MP-PA enviou à reportagem uma nota em que reconhece que o estado do Pará "é constantemente destaque negativo quando se trata de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes", tendo um registro de casos acima da média nacional e que a "violência sexual acaba por ter uma maior projeção no Arquipélago do Marajó".
Segundo os dados enviados, no ano de 2022 foram abertos 550 processos de crimes cometidos contra a criança e o adolescente em todos os municípios do arquipélago do Marajó, sendo o principal deles estupro de vulnerável (407 casos) – não foram registrados crimes relacionados ao tráfico de órgãos.
"O Ministério Público do Estado do Pará busca coibir e prevenir essa violência. As notícias de crimes recebidas nas Promotorias de Justiça são de pronto investigadas com todos os encaminhamentos devidos providenciados junto à rede de proteção", afirmaram.
Entre as ações tomadas o órgão apontou o "fortalecimento da Rede de Proteção" e que "ações preventivas de conscientização e educação sobre o tema".
"Sem dúvida que é urgente um olhar atento para a região de forma responsável para implementação de políticas públicas essenciais para a população. Discussões que enfatizem a violência sexual sem estudos e dados oficiais e, sem propósito de efetivar políticas necessárias ou, pelo menos a apuração de casos concretos, em nada contribuem para mudar a realidade social tão sofrida da população marajoara", conclui a nota.
OUTRO LADO
Questionada pelo Aos Fatos, a assessoria de Damares Alves afirmou que ela não foi citada ou notificada sobre o processo. “As acusações do MPF estão dentro de um contexto eleitoral e de polarização política.”
A assessoria também encaminhou o relatório de uma CPI realizada na Assembleia Legislativa do Pará sobre exploração sexual de crianças e adolescentes. O documento não cita as práticas de tortura e mutilação mencionadas por Alves e nem a ocorrência de tráfico de órgãos mencionada pela cantora na região do Marajó. Há uma denúncia do crime no estado do Rio de Janeiro.
A reportagem procurou a assessoria da cantora Aymeê por email e telefone, mas não obteve resposta. O espaço permanece aberto para manifestação.
Colaborou Milena Mangabeira.