Qual é o poder do Ministério da Defesa e o que as Forças Armadas têm legitimidade para fazer

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Constantes trocas de comando e a expectativa permanente por um golpe militar, incentivada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) e pelos apoiadores dele, levaram as Forças Armadas e o Ministério da Defesa a desempenharem protagonismo inédito na política brasileira desde a redemocratização.

Com número recorde de ministros vindos da caserna e milhares de militares indicados a cargos civis no governo e em estatais, Bolsonaro diversas vezes se referiu ao Exército como “meu” e atuou para politizar os militares, espalhando desinformação sobre as atribuições constitucionais da tropa.

A partir de 1995, o Estado-Maior das Forças Armadas pesquisou durante dois anos os modelos adotados em 120 países para planejar a criação do Ministério da Defesa, que foi anunciada em 1998 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e concluída no ano seguinte, após aprovação de emenda constitucional pelo Congresso.

O objetivo declarado era unificar e melhor direcionar a atuação das três Forças Armadas — Exército, Marinha e Aeronáutica —, além de reforçar a separação, já prevista em lei, entre os militares e a política.

Peças de desinformação checadas por Aos Fatos enganam ao afirmar que o Ministério da Defesa e as Forças Armadas, munidos de poderes que extrapolam a Constituição, teriam legitimidade para determinar a prisão de políticos e membros do Judiciário, marchar sobre territórios a fim de intimidar instituições e adotar uma leitura falsa do artigo 142 da Constituição, que não confere poderes especiais ao presidente ou às corporações.

Para explicar quais são as reais atribuições do Ministério da Defesa, das Forças Armadas e da Justiça Militar, Aos Fatos consultou a legislação vigente e entrevistou:

  • Fabio Sobreira, professor de Direito Constitucional da Rede LFG;
  • Mariana Kalil, professora da ESG (Escola Superior de Guerra), instituição ligada às Forças Armadas; e
  • Vinicius de Carvalho, diretor do Brazil Institute do King’s College, em Londres.
  1. Quando foi criado e quais são as atribuições do Ministério da Defesa?
  2. Como são escolhidos o Ministro da Defesa e os comandantes das Forças Armadas?
  3. O Ministro da Defesa interfere no funcionamento das Forças Armadas?
  4. Como funciona o sistema de promoção das Forças Armadas?
  5. Qual é a relação das Forças Armadas com os órgãos de segurança pública?
  6. Quais são as atribuições da Justiça Militar?
  7. O que diz a lei sobre possibilidades de atuação das Forças Armadas?

1) QUANDO FOI CRIADO E QUAIS SÃO AS ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO DA DEFESA?

Criado em 10 de junho de 1999, durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o Ministério da Defesa substituiu os ministérios da Marinha, do Exército e da Aeronáutica e incorporou o Estado-Maior das Forças Armadas, que tinha status de ministério.

A discussão sobre a unificação das pastas militares vem ao menos desde a Segunda Guerra Mundial e era sugerida na Constituição de 1946. Mais do que apenas fundir os ministérios, o objetivo era ampliar e homogeneizar o conceito de defesa nacional, melhorando a coordenação no preparo e no emprego das tropas.

Essa nova configuração refletia ainda uma mudança no paradigma da defesa no mundo, que previa uma separação maior entre as Forças Armadas e a política, o que foi levado em consideração durante os estudos. Para concretizar o conceito, foi decidido que a cadeira seria ocupada por um ministro civil. O primeiro escolhido foi Élcio Álvares, ex-líder do governo no Senado.

De acordo com a lei, são funções do Ministério da Defesa coordenar os esforços integrados de defesa nacional, fortalecer a base industrial ligada à área, garantir a fiscalização das fronteiras e trabalhar na cooperação com o desenvolvimento nacional e a defesa civil.

2) COMO SÃO ESCOLHIDOS O MINISTRO DA DEFESA E OS COMANDANTES DAS FORÇAS ARMADAS?

Cabe ao presidente da República escolher o ministro da Defesa, assim como todos os demais ministros de Estado. A lei não obriga que o chefe da pasta seja militar. Até 2018, o cargo foi ocupado exclusivamente por civis.

Essa tradição foi quebrada no governo de Michel Temer (MDB), que indicou o general da reserva Joaquim Silva e Luna para a pasta. Ligado às Forças Armadas, Bolsonaro manteve o mesmo caminho: indicou três generais:

  • Fernando Azevedo e Silva (jan.2019–mar.2021);
  • Walter Braga Netto (mar.2022–mar.2022);
  • e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira (desde mar.2022).

Os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica também são escolhidos pelo presidente da República. O alto comando de cada uma das forças envia ao uma lista tríplice, em geral composta por oficiais de quatro estrelas (patente mais alta) mais antigos no posto, mas essa lista não necessariamente precisa ser obedecida. Em 2021, Bolsonaro não seguiu o critério de antiguidade ao nomear novos comandantes.

O chefe do Executivo não é obrigado a indicar um dos nomes da lista. Porém, ele precisa escolher entre os generais da mais alta patente, segundo a lei.

3) O MINISTRO DA DEFESA INTERFERE NO FUNCIONAMENTO DAS FORÇAS ARMADAS?

A legislação brasileira prevê que o Ministério da Defesa é responsável por exercer o comando político-estratégico das Forças Armadas e coordenar a política de defesa nacional. Isso não significa, no entanto, que a pasta exerça controle total sobre as tropas.

Cabe aos comandantes de cada uma das forças funções como emprego do orçamento, elaboração de planos de transformação e desenvolvimento de doutrinas próprias. As tropas também têm autonomia para elaborar as listas de promoção de oficiais-generais, que são posteriormente submetidas à aprovação do presidente da República.

4) COMO FUNCIONA O SISTEMA DE PROMOÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS?

As promoções ao longo da carreira militar são determinadas por critérios como antiguidade, mérito, escolha específica, além de bravura, em tempos de guerra. No caso do Exército, por exemplo, apenas cerca de 1% dos cadetes formados anualmente chegam ao posto máximo de general de Exército.

5) QUAL É A RELAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS COM OS ÓRGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA?

De acordo com a Constituição, as forças de segurança pública — as polícias civis e militares — são de responsabilidade dos estados, diferente das Forças Armadas, submetidas à autoridade do Executivo federal.

Policiais e bombeiros militares são forças auxiliares das Forças Armadas, o que os torna reserva imediata em casos de convocação ou mobilização de tropas. Por isso, ainda que não componham diretamente a hierarquia militar, essas duas categorias são supervisionadas pela IGPM (Inspetoria-Geral das Polícias Militares), órgão do Exército Brasileiro.

Estão entre as principais funções da IGPM a inspeção das polícias e dos bombeiros militares no exercício de suas funções, o controle dos efetivos e do material bélico e a fiscalização da instrução militar.

6) QUAIS SÃO AS ATRIBUIÇÕES DA JUSTIÇA MILITAR?

A Justiça Militar é o ramo do Poder Judiciário responsável por processar e julgar crimes militares. Esses crimes podem ter sido cometidos tanto por integrantes das Forças Armadas — que seguem um regimento disciplinar próprio e, portanto, são julgados dentro dessa lógica — como por civis. Caso uma pessoa que não pertence às tropas cometa um crime dentro de uma instituição militar federal, por exemplo, o crime é considerado de competência da Justiça Militar.

Os crimes militares estão especificados no Código Penal Militar. Se o membro das Forças Armadas cometer um crime previsto no Código Penal durante o exercício da sua função — como homicídio, por exemplo — ele pode ser julgado pela Justiça Militar. Caso não esteja, o julgamento deve ser remetido para a Justiça comum. Os tribunais militares estaduais também julgam eventuais crimes cometidos por policiais e bombeiros.

Dentro da estrutura Judiciária militar, há ainda conselhos específicos para julgar casos que envolvem oficiais — membros que cuidam da direção e da chefia das forças — e não oficiais. Quando o delito envolve generais, é analisado diretamente pela última instância, o STM (Superior Tribunal Militar), que é composto por 15 ministros vitalícios, entre oficiais-generais da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, e cinco magistrados civis, nomeados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado.

A Justiça Militar não pode tomar quaisquer decisões que interfiram na vida civil em tempos de paz. Qualquer delito civil que não seja considerado um crime militar não pode ser analisado por tribunais ligados às Forças Armadas.

7) O QUE DIZ A LEI SOBRE POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS?

A Lei Complementar 136/2010, garante poder de polícia às Forças Armadas nas faixas de fronteira e nas águas jurisdicionais brasileiras. Podem ser realizadas nessas regiões ações de patrulhamento e revista e mesmo prisões em flagrante.

Também é possível acionar as tropas para atuação em operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem). Essas ações ocorrem “em graves situações de perturbação da ordem”, quando há esgotamento das forças de segurança pública do estado. A solicitação deve ser feita pelo governador e autorizada pelo presidente da República, com espaço e tempo restritos e uma função específica — resposta a uma catástrofe, por exemplo.

Artigo 142. Desde o início do governo Bolsonaro, manifestantes também têm citado o artigo 142 da Constituição — que afirma que as Forças Armadas, sob autoridade do presidente da República, são responsáveis pela garantia da lei e da ordem — para pedir um golpe militar. Como Aos Fatos já explicou em reportagem anterior, no entanto, esse raciocínio não tem lastro na realidade.

Segundo especialistas em Direito Constitucional ouvidos por Aos Fatos, a Constituição não prevê possibilidade de intervenção nos poderes. Isso significa que qualquer tentativa das Forças Armadas de acabar com os poderes Legislativo e Judiciário, ainda que sob ordem do presidente da República, seria um golpe de Estado.

A lei determina algumas possibilidades de intervenção federal em estados e municípios, previstas no artigo 34 da Constituição. Nem todas elas exigem a atuação das Forças Armadas. Para que essas intervenções ocorram, no entanto, são necessárias, além da decisão presidencial, o aval do Congresso Nacional e da Assembleia Legislativa local, que devem se posicionar em até 24 horas.

Referências

  1. JOTA
  2. Folha de S.Paulo (1 e 2)
  3. Valor Econômico
  4. O Estado de S. Paulo (1 e 2)
  5. Senado
  6. Aos Fatos (1, 2, 3 e 4)
  7. LFG
  8. Governo federal (1, 2, 3 e 4)
  9. King’s College
  10. Câmara dos Deputados (1 e 2)
  11. Palácio do Planalto
  12. Arquivo Público do Espírito Santo
  13. STF
  14. G1 (1 e 2)
  15. Exército
  16. PUC-SP
  17. JusBrasil
  18. UOL

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