Meta encerra checagem de fatos nos EUA e especialistas veem retrocesso

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Em vídeo publicado nesta terça-feira (7), Mark Zuckerberg, cofundador e CEO da Meta — dona de Instagram, WhatsApp, Facebook e Threads —, anunciou o fim do programa de checagem de fatos nos Estados Unidos como parte das mudanças adotadas pela plataforma em sua política de moderação.

A decisão explicita o alinhamento da empresa com a gestão de Donald Trump, que toma posse em 20 de janeiro. As medidas começam a ser implementadas nos Estados Unidos e podem se estender a outros países.

Entre as mudanças estão:

  • Fim da parceria em que checadores de fatos independentes parceiros sinalizavam publicações enganosas na plataforma, da qual Aos Fatos faz parte;
  • Implementação de sistema de notas de comunidade, aos moldes do X — no qual usuários ficarão responsáveis por acrescentar contexto ou apontar erros em posts;
  • Volta das recomendações de conteúdos políticos no feed;
  • Eliminação de restrições sobre conteúdos relacionados a imigração e identidade de gênero;
  • Realocação das equipes de moderação de conteúdo da Califórnia, estado democrata, para o Texas, estado republicano.

Segundo a Meta, o objetivo é reduzir erros na moderação de conteúdo e promover a liberdade de expressão. Especialistas em direito digital ouvidos pelo Aos Fatos contestam essa versão.

“A constatação de que [a moderação] tem falhas prejudiciais para a liberdade de expressão é verdadeira, mas é usada como completa cambalhota para justificar medidas que não fazem sentido e que não vão ajudar a moderação de conteúdo a melhorar, pelo contrário”, argumentou Yasmin Curzi, pesquisadora do Karsh Institute of Democracy da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos.

Ela defende que a medida oposta deveria ser tomada para atingir o objetivo declarado — ou seja, expandir as parcerias com checadores. “Isso, sim, faria conteúdos legítimos não serem removidos.”

Bruna Santos, da Coalizão Direitos na Rede, apontou que Zuckerberg “descarta a importância dos checadores de fatos para a moderação de conteúdo”, desconsiderando “medidas e ferramentas que têm sido grandes aliadas para remediar problemas na moderação de conteúdo e na disseminação de conteúdos falsos”.

Além disso, ao optar por notas de comunidade, a plataforma estaria incentivando “fontes não confiáveis”. “As notas da comunidade podem ser feitas por qualquer usuário daquela plataforma, e a gente não tem uma adequação, nem uma análise de veracidade da informação que está sendo colocada ali. Então, ao longo dos últimos anos, a gente tem visto um pouco a utilização de notas de comunidade como uma ferramenta para tentar disputar posicionamentos”, ela disse.

“No Brasil a experiência de notas de comunidade no Twitter não dá certo”, analisou Yasmin Curzi. “Tem desinformação circulando dentro das notas da comunidade. Então, o primeiro impacto dessa medida em si é o aumento da desinformação na plataforma.”

A advogada Taís Gasparian, especialista em defesa da liberdade de expressão, considerou o anúncio “um oportunismo escancarado”.

“De tudo o que foi anunciado, o que mais assusta é o trator que pretendem passar nas empresas de fact-checking. Sem elas, a desinformação teria feito muito mais estrago”, disse em entrevista ao Aos Fatos.

“Nossas instituições e a Constituição Federal nos dão os meios de combater os nefastos efeitos do que foi anunciado.”

João Brant, secretário de políticas digitais da Secom do governo Lula, afirmou em suas redes que o anúncio antecipa o início do governo Trump e estimula o ativismo da extrema direita.

“Explicita aliança da Meta com o governo dos Estados Unidos para enfrentar União Europeia, Brasil e outros países que buscam proteger direitos no ambiente online (na visão dele, os que ‘promovem censura’”, escreveu.

O secretário destacou a relevância de esforços internacionais no âmbito de entidades como ONU, Unesco e G20 para reforçar a agenda de promoção da integridade da informação.

“Há uma dimensão econômica e política para a empresa retroceder nas medidas que ela vinha adotando, que eram elogiadas, de flagagem de conteúdo, de parceria com agência de verificação de fatos, e retroceder para ausência de monitoramento efetivo. E isso pode gerar um ambiente de desinformação generalizada”, analisa Filipe Medon, professor da FGV Direito.

Alinhamento . As mudanças ocorrem em um contexto de aproximação de big techs ao novo governo de Trump. O republicano é um crítico das estratégias de verificação de fatos e combate à desinformação.

Nesse período de transição, Zuckerberg fez vários acenos ao presidente:

  • O CEO da Meta já havia ligado para Trump durante a campanha, após a tentativa de assassinato da qual o então candidato escapou;
  • Após a eleição, no fim de novembro, Zuckerberg foi a Mar-a-Lago — resort de Trump em Miami que serve de base para o governo de transição — e teve uma reunião fechada com o republicano;
  • Em dezembro, a empresa doou US$ 1 milhão para a cerimônia de posse do presidente eleito;
  • Recentemente, a Meta anunciou dois simpatizantes de Trump para cargos de liderança na empresa.

“Vamos trabalhar com o presidente Trump para combater governos ao redor do mundo que estão atacando empresas americanas e incentivando a censura”, afirmou Zuckerberg, ao anunciar as mudanças na moderação de conteúdo.

Print de publicado por Mark Zuckerberg anunciando mudanças na moderação de conteúdo da empresa
Vídeo publicado por Mark Zuckerberg anunciando mudanças na moderação de conteúdo da empresa (Reprodução/Meta)

Para Bruna Santos, a decisão é “muito mais um aceno da própria plataforma ao governo americano do que uma dita análise de mecanismos de transparência”.

“É um interesse econômico que se materializa em um flerte ideológico”, disse Curzi.

A decisão vai na contramão da postura que havia sido adotada pela empresa no primeiro governo de Trump — que começou com a implementação do programa de fact-checking em dezembro de 2016 e terminou com o banimento do então ex-presidente da rede social em janeiro de 2020.

Porém, dá continuidade a uma série de medidas contra transparência na plataforma dos últimos anos, como o encerramento do CrowdTangle. “Esse desmonte da moderação de conteúdo está ocorrendo faz tempo”, constata Curzi.

Soberania. A princípio, as mudanças estão restritas aos Estados Unidos, mas podem ser estendidas a outras localidades. “Como não existe muita nuance em termos dos anúncios de políticas da própria plataforma entre os Estados Unidos e o resto do mundo, eu não me surpreenderia caso esse parâmetro se torne global a partir de agora”, avalia Santos.

Porém, para a pesquisadora, países com normas e regulações de plataformas digitais, como membros da União Europeia e Austrália, poderão advogar pela manutenção dos mecanismos de moderação de conteúdo anteriores. “Eu diria que a gente ainda vai ver uma queda de braço nos próximos meses entre as autoridades que são atuantes e a plataforma”, prevê.

Sem uma norma de regulação de plataformas, no Brasil as mudanças podem ser confrontadas pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) — no caso da moderação de conteúdo relacionado a eleições — ou pelo STF, que analisa a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet.

O julgamento é visto por Medon como “um dos mais relevantes da história”. “Se o Marco Civil for reinterpretado, as regras do jogo recrudescem e pode fazer com que as plataformas tenham que ter uma postura mais combativa [de moderação de conteúdo]. Aí muda um pouco o cenário”, diz.

Para Santos, a disputa tem a ver com soberania. “Quando Zuckerberg fala dessa dita dicotomia entre os valores de liberdade de expressão nos Estados Unidos e cortes secretas ao redor do mundo, ele deixa muito claro que a partir de agora o que vai liderar a plataforma são valores americanos”, diz.

“Essas mudanças colocam o Sul Global num lugar ainda mais preocupante por a gente ser mais afetado de maneira geral por conteúdos danosos e conteúdos problemáticos online. Esse discurso do Zuckerberg mostra que ele não tem apreço por democracia, não tem apreço por soberania dos países. Ele tem apreço pelo modelo de negócios dele — e é disso que ele vai atrás.”

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