Desde o assassinato de Marielle Franco, em 14 de março de 2018, publicações nas redes usam mentiras para dar a entender que políticos de esquerda e aliados da vereadora seriam responsáveis pelo crime — versão falsa, que não condiz com a investigação da Polícia Federal.
Uma peça fundamental na estratégia de usar desinformação para culpar a esquerda pela morte de Marielle é o envolvimento de Domingos Brazão, preso no último domingo (24) e acusado de ser um dos mandantes do crime.
Durante sua carreira política, o ex-deputado estadual pelo MDB e conselheiro do TCE-RJ (Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro) realizou campanhas eleitorais tanto ao lado de políticos do PT, como Lula e Dilma, como, mais recentemente, com a família de Jair Bolsonaro (PL).
Fotos e vídeos antigos — registrados antes de membros da família Brazão serem envolvidos na apuração do crime — circulam nas redes ao menos desde 2019 com o objetivo de insinuar que políticos do PT e de outros partidos de esquerda teriam ligação com o crime. Conteúdos do tipo voltaram a viralizar nos últimos dias, após a prisão do conselheiro do TCE-RJ e de seu irmão, o deputado federal Chiquinho Brazão (União Brasil-RJ).
A tática se tornou comum a partir de outubro de 2019, quando um porteiro do condomínio Vivendas da Barra, onde Bolsonaro morava antes de ser eleito presidente, disse em depoimento que um dos envolvidos no assassinato de Marielle havia procurado por “seu Jair” no dia do crime.
Dias depois, o funcionário, em novo depoimento, voltou atrás e disse que havia se enganado. No entanto, a partir daquele momento, políticos de esquerda passaram a usar as redes para insinuar um suposto envolvimento de Bolsonaro com o crime – algo que jamais se comprovou. À época, por exemplo, uma das frases usadas era “quem mandou o vizinho do presidente matar a Marielle”.
Em contrapartida, bolsonaristas passaram a sugerir que a esquerda estaria envolvida no crime. Para isso, usavam o nome de Domingos Brazão.
Entenda como o nome do conselheiro do TCE-RJ surgiu na investigação:
- 15.mar.2018: o chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Rivaldo Barbosa — também preso no domingo (24) por ter relação com o crime —, nomeia o delegado Giniton Lages, da Delegacia de Homicídios, para apurar o caso;
- 25.set.2018: acusado pelo ex-policial militar Rodrigo Ferreira de ter tramado o crime junto com o então vereador Marcello Siciliano (PP), o miliciano Orlando Curicica dá depoimento no presídio federal de Mossoró (RN) em que diz sofrer pressão da Delegacia de Homicídios para assumir a autoria;
- 1º.nov.2018: a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, determina que a Polícia Federal investigue se agentes da Polícia Civil do Rio de Janeiro estão obstruindo as investigações;
- 22.jan.2019: a PF realiza a Operação Intocáveis contra 13 suspeitos de integrar a milícia de Rio das Pedras, área eleitoral da família Brazão;
- 21.fev.2019: Domingos Brazão é alvo de operação da Polícia Federal;
- 22.fev.2019: o ex-PM Rodrigo Ferreira admite que mentiu ao tentar envolver Orlando Curicica e Marcello Siciliano no assassinato de Marielle;
- 12.mar.2019: o atirador Ronnie Lessa e o motorista Élcio Queiroz são presos após telefonema anônimo;
- 20.mar.2019: relatório da PF cita Domingos Brazão como um dos “possíveis mandantes” do crime contra Marielle;
- 7.out.2019: um porteiro do condomínio Vivendas da Barra, onde Bolsonaro morava antes de ser eleito presidente, diz em depoimento que Élcio Queiroz teria procurado “seu Jair” no dia do crime;
- 19.out.2019: o funcionário presta outro depoimento, volta atrás e diz que errou ao citar “seu Jair”;
- 22.fev.2023: após ter passado pelo comando de cinco delegados, a investigação do assassinato de Marielle e Anderson Gomes se torna objeto de inquérito da Polícia Federal. Até este momento, a PF havia feito apenas a “investigação da investigação”, ou seja, apurado se agentes da lei haviam atuado contra a apuração do crime;
- 14.jun.2023: Élcio Queiroz assina acordo de delação premiada;
- 21.jan.2024: Imprensa noticia que Ronnie Lessa assinou acordo de delação premiada;
- 24.mar.2024: Polícia Federal prende o deputado Chiquinho Brazão (União Brasil-RJ), Domingos Brazão e Rivaldo Barbosa. A PF também acusa o delegado Giniton Lages, que comandou a Delegacia de Homicídios, de atrapalhar a investigação.
Entre os conteúdos mais compartilhados está uma foto em que Brazão aparece ao lado do ex-deputado Eduardo Cunha, em campanha para a então candidata Dilma Rousseff (PT), que começou a circular já no final de 2019 a fim de apontar que Brazão seria ligado a petistas. Usuários e parlamentares bolsonaristas também acusaram a esquerda de ignorar as denúncias contra o deputado (veja abaixo).
Em uma publicação viral que circulou em novembro daquele ano, por exemplo, uma mulher que era falsamente identificada como a mãe da vereadora dizia que o PSOL ajudou a eleger Domingos Brazão para o cargo de conselheiro do TCE-RJ, o que não é verdade.
Em 2019, Brazão foi investigado sob suspeita de forjar uma testemunha e atrapalhar o inquérito. A PGR (Procuradoria Geral da República) o denunciou ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), mas em junho do ano seguinte a denúncia foi rejeitada pelo tribunal, que entendeu que o caso deveria correr no Rio de Janeiro. Em 2021, a Justiça do Rio também rejeitou a denúncia.
Mesmo sem Brazão ter sido acusado formalmente, no entanto, seu nome continuou a aparecer em peças de desinformação para culpar a esquerda pelo assassinato de Marielle e, ao mesmo tempo, defender Bolsonaro.
Em 2020, por exemplo, circulou nas redes que a polícia teria concluído que Brazão seria o mandante do crime (veja abaixo). O deputado era apontado nas peças como “ligado ao PT” e ao crime organizado — linha desinformativa que ronda o caso desde o dia do assassinato e que foi responsável pela matéria mais lida da história do Aos Fatos, com mais de 1 milhão de acessos.
Em julho de 2023, o nome do deputado volta a ser citado na delação de Élcio Queiroz, preso sob acusação de ser um dos assassinos de Marielle, o que fez o caso ser remetido ao STJ. Em janeiro de 2024, foi a vez do outro preso acusado como um dos autores do crime, Ronnie Lessa, apontar Brazão como mandante.
Logo após a divulgação da delação de Lessa, passou a circular nas redes uma montagem que mostraria Brazão ao lado do presidente Lula e de outros políticos, como o ex-governador Luiz Fernando Pezão (MDB) e o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD).
Também viralizou um vídeo descontextualizado em que manifestantes vestidos com camisetas vermelhas gritam que o assassino de Marielle seria “amigo do presidente”. As peças enganosas inseriram uma foto de Brazão junto de Lula para sugerir que o vídeo se referia ao deputado, quando, na verdade, as imagens haviam sido registradas em 2019 e mostravam pessoas que acusavam Bolsonaro de ser amigo de Lessa.
A última atualização da investigação ocorreu no último domingo (24): a PF prendeu os dois irmãos Brazão, suspeitos de serem os mandantes do crime, e o ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Rivaldo Barbosa, apontado como um dos responsáveis por planejar o assassinato.
No relatório (que pode ser acessado aqui), a polícia conclui que os irmãos ordenaram o assassinato da vereadora por causa de “colisão de interesses no tocante a questões fundiárias ligada ao direito à moradia”, uma vez que Marielle atuava para impedir exploração e loteamento ilegais de terras em comunidades dominadas pelas milícias.
Pouco tempo depois da prisão, passou a circular nas redes um vídeo que supostamente mostraria o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Flávio Dino dançando ao lado de Brazão, em mais uma tentativa de relacionar políticos de esquerda ao crime. As imagens, no entanto, mostram Dino abraçando o governador do Maranhão Carlos Brandão (PSB).
APOIOS POLÍTICOS DA FAMÍLIA BRAZÃO
Publicações nas redes também têm compartilhado fotos e vídeos descontextualizados dos irmãos junto de outros políticos para culpar a esquerda ou a direita pelo assassinato de Marielle. Apesar de circularem em menor escala desde 2019, peças com esse teor viralizaram a partir de janeiro deste ano, quando Ronnie Lessa apontou Domingos Brazão como um dos mandantes do crime
As publicações omitem que a trajetória política dos Brazão desde 1996, quando Domingos foi eleito vereador de Jacarepaguá pelo PL, foi marcada por apoios a diferentes políticos, tanto da esquerda quanto da direita.
31.mai.2010. Uma das fotos que vem sendo compartilhada mostra Domingos Brazão assistindo a um discurso de Lula. A foto foi registrada durante a inauguração da UPA (Unidade de Pronto Atendimento) 24 horas na Cidade de Deus. Naquela época, Brazão era deputado estadual e filiado ao MDB.
30.out.2010. A foto que mostra Brazão com um adesivo escrito “Presidente Dilma 13” foi publicada no Flickr do deputado. Ele e Eduardo Cunha, ambos do MDB, estavam fazendo campanha para a petista em Jacarepaguá (RJ).
25.out.2016. Chiquinho Brazão publicou, em sua conta oficial no Facebook, um apoio público à candidatura de Marcelo Crivella (PRB) à prefeitura do Rio de Janeiro.
23.ago.2022. Durante um evento de campanha para o lançamento da candidatura de Chiquinho a deputado federal e Domingos a deputado estadual, os dois apareceram com adesivos de apoio a Cláudio Castro (PL). O evento contou com a participação de Castro, que disse que eles seriam “representantes legítimos de Jacarepaguá”.
29.out.2022. Chiquinho Brazão participa de evento de campanha de Bolsonaro. Vídeos que foram publicados pelo próprio deputado mostram que ele estava ao lado do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
5.ago.2023. O prefeito Eduardo Paes participou do evento de pré-candidatura de Kaio Brazão a vereador do Rio de Janeiro. Na ocasião, o prefeito elogiou a família Brazão e disse que ela é “quem melhor representa Jacarepaguá”.