Marketing digital banaliza interação entre políticos e patrocinadores

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“Numa campanha eleitoral, dizem que a gente gasta muito a sola do sapato. E é por isso que eu uso o 752 da Vulcabras.” A frase marcou a estreia de Paulo Maluf, ex-prefeito e ex-governador de São Paulo, como garoto-propaganda, em 1991.

O comercial do calçado é um dos trabalhos mais emblemáticos do publicitário Washington Olivetto, que morreu no mês passado. Além de Maluf, também Leonel Brizola estrelou a campanha, em 1997.

Ao empregar políticos para promover uma marca comercial, Olivetto antecipou o que parece ter se tornado tendência: a última campanha eleitoral banalizou a interação entre candidatos a prefeito e patrocinadores de grandes podcasts.

“Pô, eu vou ganhar um presente da Insider? Aí sim, hein? Já vi vantagem em vir aqui no Flow”, celebrou Guilherme Boulos (PSOL) na entrevista concedida antes do primeiro turno, em 2 de setembro.

Um mês depois, o então candidato a prefeito de São Paulo recebeu o segundo jabá da mesma marca de vestuário, agora no programa Inteligência Ltda. “Eu ganhei uma camiseta da Insider no outro dia que eu fui até para a carreata com ela”, elogiou.

A reação de Boulos foi comedida se comparada à cena protagonizada pelo prefeito reeleito Ricardo Nunes (MDB). “Tem até uma ‘cuecona’ aqui. Da hora, que chique”, exclamou o político, vestido com o boné do patrocinador enquanto exibia a boxer nas mãos.

Além das roupas tecnológicas, a disputa pela preferência do eleitorado paulistano testemunhou candidatos participando de promoção de escola de preparação para concursos a clínica de implante capilar.

Passado o pleito, a confluência entre políticos e o marketing de influência tornou-se notícia no último dia 7, quando viralizou um post com o “antes e depois” da harmonização facial de Nunes.

“Com muito carinho e dedicação, realizamos um tratamento facial especial para o nosso prefeito, reforçando nosso compromisso em cuidar da estética de líderes que representam nossa cidade”, dizia a publicação da clínica responsável pelo procedimento, que acabou deletada.

Já na Assembleia Legislativa de São Paulo, há quem harmonize a carreira de deputado estadual com a promoção de suplementos nas redes, como mostrou reportagem do portal O Joio e o Trigo.

A advogada Carla Nicolini lembra que a legislação eleitoral não impede candidatos de fazerem propaganda de “recebidos”. “O que a lei proíbe é utilizar organização comercial para vender, distribuir e fazer sorteio de brindes para fins de propaganda ou aliciamento de eleitores”, diz a especialista.

O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) também veda que candidatos utilizem a propaganda eleitoral para promover marcas ou produtos, o que não se aplica aos podcasts. Ainda que não seja ilegal, alguns especialistas levantam questões éticas sobre a instrumentalização de figuras públicas por marcas.

A proibição de empresas promoverem ações que beneficiem candidatos foi reforçada pelo TSE no decorrer do pleito deste ano. A resolução foi interpretada como resposta a diversas inovações que Pablo Marçal (PRTB) tentou promover.

O ex-coach ainda terá de responder às ações apresentadas pela campanha da também candidata derrotada Tabata Amaral (PSB), que o acusou de fazer das eleições “um grande negócio”, com a distribuição de brindes, a monetização de perfis e a promoção de campeonatos de cortes.

A febre do boné do M de Marçal, sucesso de vendas do Mercado Livre a camelôs, foi a versão nacional de um fenômeno visto em larga escala na campanha de Donald Trump nos Estados Unidos, que comercializou bíblias, tênis e perfumes, entre outros itens.

As eleições americanas também mostraram a crescente importância dos podcasts nas campanhas, que permitem aos candidatos se conectarem com os eleitores de uma forma mais casual.

Na propaganda do 752 da Vulcabras, Leonel Brizola refletiu que “modernidade é o fruto das nossas próprias experiências”. A julgar pela experiência das últimas eleições, a modernidade parece estar caminhando para borrar a fronteira entre a política e os anúncios de cueca.

Referências

  1. YouTube (@PropagandasHistóricas) (1 e 2)
  2. Folha de S.Paulo (1 e 2)
  3. YouTube (@FlowPodcast)
  4. YouTube (@inteligencialtda) (1 e 2)
  5. UOL
  6. O Joio e o Trigo
  7. Tribunal Superior Eleitoral
  8. g1
  9. Aos Fatos
  10. Veja
  11. O Globo
  12. Exame
  13. CNBC

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