Na véspera das eleições venezuelanas, marcadas para o próximo domingo (28), o ditador Nicolás Maduro mentiu ao afirmar que os sistemas eleitorais brasileiro, colombiano e americano não são auditáveis. A desinformação, disseminada em discurso na última terça-feira (23), foi usada para defender o processo de votação na Venezuela, que já foi alvo de denúncias de fraude.
As alegações mentirosas foram feitas em um contexto de crise política: algumas projeções apontam que o ditador teria 20% dos votos na disputa pela reeleição, contra 50% das intenções de voto do ex-diplomata Edmundo González Urrutia.
Ao longo dos últimos meses, Maduro foi alvo de críticas por impedir opositores políticos de concorrerem ao pleito e cancelar o convite para que a União Europeia acompanhasse o processo de votação. Em discursos anteriores, ele chegou a alegar que haveria um “banho de sangue” caso não vencesse. O comentário gerou uma crítica do presidente Lula (PT), rebatida pelo venezuelano na última terça (23).
O argumento de Maduro replica uma estratégia usada pela extrema-direita brasileira — incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) — para desacreditar o processo eleitoral. Repetidas durante uma reunião com embaixadores em julho de 2022, alegações desinformativas sobre as urnas renderam a Bolsonaro um processo que o tornou inelegível até 2030.
Veja abaixo o que checamos do discurso de Maduro.
No Brasil? Não auditam nenhuma ata [eleitoral].
A declaração é FALSA, porque o sistema eleitoral brasileiro permite, sim, a auditoria. Ao fim da votação, todas as urnas eletrônicas imprimem cópias dos boletins de urna, que registram o total de votos de cada candidato naquela seção eleitoral.
Enquanto uma via do documento é enviada ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral) para arquivamento, outras são fixadas diante das seções e também entregues aos fiscais dos partidos para conferência.
Os boletins de urna também são disponibilizados no site oficial da Justiça Eleitoral. Qualquer pessoa, portanto, pode conferir a distribuição dos votos em cada seção.
Maduro omite ainda que no Brasil há diversos processos que garantem a lisura das eleições antes, durante e depois da votação:
- O código-fonte das urnas é inspecionado por técnicos indicados pelos partidos políticos, pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), pelo Ministério Público e por outras organizações;
- Um mês antes do pleito, acontecem a assinatura digital — que impede alterações no software das urnas — e a lacração dos sistemas;
- No dia da eleição, é feito um teste de integridade: a Justiça Eleitoral realiza uma votação paralela com urnas sorteadas para conferir se os votos digitados são os mesmos que foram contabilizados pelo sistema. Nunca foi registrada qualquer divergência nessa etapa de teste;
- A identificação por biometria, adotada pela Justiça Eleitoral em 2008, também é um procedimento de segurança que impede que um eleitor tente se passar por outra pessoa no momento de votar;
- O processo de votação também é acompanhado por observadores internacionais, como a OEA (Organização dos Estados Americanos), que vêm ao país para se certificar da lisura do pleito;
- Ao fim da votação, o presidente de cada seção eleitoral digita uma senha que impede a contabilização de novos votos. Depois, os dados das urnas, que são gravados em memórias de registro criptografadas, são enviados aos TREs para apuração.
Após a declaração de Maduro, o TSE enviou uma nota à imprensa em que afirma que o sistema eleitoral brasileiro é “totalmente auditável”. O tribunal também publicou um vídeo em seu perfil oficial no X (ex-Twitter), sem citar o ditador venezuelano, para defender que o Brasil possui um sistema “transparente e auditável” que “garante a integridade da democracia”.
Só um sistema eleitoral comprovadamente transparente e auditável pode garantir a segurança do seu voto do momento em que ele é digitado na urna até chegar à totalização 🔐 É tecnologia que garante a integridade da democracia! #VotoSeguro #Eleições2024 pic.twitter.com/JRuGJZeGmX
— TSE (@TSEjusbr) July 24, 2024
Nos EUA? O sistema eleitoral não é auditável.
A afirmação também é FALSA. Ainda que não exista um padrão único de auditoria nas eleições americanas — que são regidas por leis locais, e não nacionais — há diferentes métodos para garantir a integridade e a segurança do pleito. As regras variam conforme os sistemas adotados por cada distrito eleitoral.
Segundo relatório da comissão de assistência eleitoral dos EUA, mais de 85% dos estados (44) possuem leis que exigem a realização de auditorias para verificar se os equipamentos usados — sejam urnas eletrônicas ou outros sistemas digitais para contagem de cédulas — estão operando corretamente.
Alguns estados, como Illinois e Colorado, fazem essa auditoria antes da votação, por meio de testes prévios nas máquinas. Outros, como Califórnia, Flórida e Nova York, só realizam a verificação após o pleito, seja antes ou depois da certificação dos resultados.
Na auditoria conduzida após o término da votação, uma porcentagem dos votos registrados pelas máquinas é comparada aos registros de votação físicos. Nos Estados Unidos, mais de 90% dos votos são registrados em cédulas físicas ou possuem cópias impressas, usadas para verificação e recontagem.
Mesmo os seis estados que não possuem leis para auditorias adotam procedimentos de prevenção de riscos e mecanismos para realizar verificações no pleito, como recontagem de votos em caso de contestação de resultados.
Há registros de casos em que campanhas solicitaram a recontagem de votos nos Estados Unidos, alegando inconsistência nos resultados. Em 2020, a chapa de Donald Trump pediu que fossem auditados os votos registrados em um condado no Arizona. Foi constatada então uma pequena diferença com relação aos resultados anunciados — havia 291 votos a menos para Trump.
Na época, a atuação da empresa contratada para realizar a auditoria foi alvo de críticas e de denúncias sobre irregularidades nos procedimentos adotados.
Na Colômbia? Não auditam nenhuma ata.
Na Colômbia, onde os votos são registrados em cédulas de papel, os resultados das eleições só são oficializados depois de um processo de auditoria da contagem de votos, conhecido como escrutínio. Isso torna a alegação de Maduro FALSA.
Após o fim da votação, os votos são contabilizados em cada uma das seções eleitorais, e os números consolidados são divulgados pelo site oficial do Registro Civil Nacional da Colômbia — órgão responsável pela organização da votação. Esse resultado, no entanto, é considerado apenas uma pré-contagem.
Depois da pré-contagem é feito o escrutínio. O CNE (Conselho Nacional Eleitoral), órgão que regulamenta e fiscaliza o pleito, promove uma recontagem dos votos por meio de comissões de apuração convocadas em cada distrito eleitoral.
Além de comparar os resultados da recontagem com os números registrados nas atas das seções eleitorais, os agentes conhecidos como escrutinadores verificam também apelações ou reclamações de candidaturas e eleitores. Esse processo é acompanhado por testemunhas e representantes dos partidos e candidatos.
De acordo com o Registro Civil Nacional, a diferença entre a pré-contagem e o escrutínio nas eleições de 2022 foi de apenas 0,1%, o menor da história. Os resultados obtidos são verificados e consolidados pelo CNE, que somente então valida o resultado das eleições.
Temos o melhor sistema eleitoral do mundo. Temos 16 auditorias. E se faz uma ‘auditoria quente’, como vocês sabem, de 54% das mesas.
De fato, a Venezuela, cujo sistema eleitoral é baseado em urnas eletrônicas com impressão de comprovantes, possui uma recontagem pública de votos abrangente determinada por lei. O que Maduro omite em sua declaração, no entanto, é que, apesar das barreiras de segurança, já foram feitas diversas denúncias de irregularidades durante eleições no país.
De acordo com o site oficial do CNE (Conselho Nacional Eleitoral) da Venezuela, o país possui 14 formas de auditoria diferentes, que vão desde a verificação do sistema de votação até a contagem pública dos votos.
Uma das auditorias previstas, chamada de Verificação Cidadã, determina que uma recontagem “é feita no mesmo dia da eleição, com amostra de 54% das urnas, e é realizada ao terminar o ato de votação e uma vez transmitida a contagem”. Participam desta auditoria os membros da seção eleitoral e o processo pode ser observado por cidadãos.
Apesar das inúmeras auditorias, o sistema eleitoral venezuelano já teve sua lisura questionada em pleitos anteriores:
- Em agosto de 2017, a Smartmatic, empresa que forneceu ao país a tecnologia para as urnas eletrônicas com impressão de voto, apontou que houve uma diferença de ao menos 1 milhão de eleitores no final da votação para a Assembleia Nacional Constituinte. O CNE negou a acusação;
- No mesmo pleito, membros do Parlamento — que era de maioria oposicionista — foram excluídos do processo de renovação do CNE pelo Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela — equivalente ao STF brasileiro;
- Meses depois, a OEA denunciou irregularidades na eleição para governadores, como a manipulação do programa eleitoral e a alteração de etapas previstas na lei venezuelana. A oposição, na época, também alegou que houve mudanças de última hora em locais de votação para tentar interferir nos resultados;
- Em 2018, já nas eleições presidenciais, também foi apontada a existência de “pontos vermelhos”: barracas instaladas pelo partido de Maduro perto dos locais da votação para “checar” quem compareceu às urnas. Antes do pleito, Maduro prometeu “prêmios” para quem participasse da eleição, o que foi visto como uma tentativa de compra de votos;
- Em 2020, os membros do Conselho Nacional Eleitoral não foram escolhidos pelo Congresso, como determina a legislação, e sim pelo regime chavista. A oposição tratou o caso como uma forma de fraudar as eleições.
Vale ressaltar que o regime de Maduro também tem um histórico de perseguição contra opositores. Já há denúncias de irregularidades mesmo na eleição marcada para o próximo domingo (28): em nota publicada no final de abril, a ONU denunciou o desaparecimento de pessoas ligadas ao partido de oposição.
Também há suspeitas de que o ditador tenha articulado com o Supremo Tribunal de Justiça uma decisão que cassou os direitos políticos de uma opositora, a ex-deputada María Corina Machado. A política está impedida de assumir cargos públicos por 15 anos.
Na última segunda-feira (22) também foi noticiado que sites de ONGs e veículos jornalísticos críticos ao regime foram censurados no país.
Colaborou Amanda Ribeiro.
O caminho da apuração
Aos Fatos separou a declaração de Maduro em quatro partes para dividir a apuração das informações. Foram procuradas as legislações eleitorais de cada um dos países citados por ele — Brasil, EUA, Colômbia e Venezuela — e documentos que explicassem os processos de auditoria em cada um deles.
Para o contexto do cenário eleitoral venezuelano, Aos Fatos buscou informações em relatórios de agências internacionais, além de relatos publicados pela imprensa.
Por fim, Aos Fatos procurou a Imprensa Presidencial venezuelana por meio do email, mas não recebeu resposta.