Defendida por Lula, recuperação de terras para agricultura depende de processo caro e complexo

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Em transmissão ao vivo nesta terça-feira (8), data de abertura da Cúpula da Amazônia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) voltou a defender que a expansão agropecuária no país seja atrelada à recuperação dos milhões de hectares de terras degradadas. Na declaração, repetida ao menos dez vezes desde o início do mandato, o presidente usa os dados sobre degradação de pastagens para tentar conciliar os interesses do agronegócio e a necessidade de conservação ambiental.

“Aqui no Brasil, eu digo em todo discurso meu, nós temos quase 40 milhões de hectares de terra degradada. Não precisa derrubar uma árvore para fazer, aumentar a produção de soja, de milho para criar gado”, repetiu Lula nesta terça.

A estratégia de recuperação, que integra a lista de compromissos assumidos pelo país em 2012 durante a COP-15, pode beneficiar particularmente a Amazônia. Segundo dados de 2020 do projeto Mapbiomas — conduzido por universidades, ONGs e empresas de tecnologia —, o bioma responde por 35,2% dos pastos cultivados do país. Desses, 43,7% apresentavam indícios de degradação.

Especialistas consultados pelo Aos Fatos apontam, no entanto, que a fala do presidente descreve de forma simplista um processo que envolve diversas questões técnicas, ambientais e financeiras:

  • Segundo eles, mesmo que a regeneração seja possível — o que depende de fatores como o tipo de degradação sofrida pela área e o nível de gravidade do problema —, ela pode não ser viável financeiramente ao produtor;
  • Mesmo que se resolva arcar com os custos, é necessário um trabalho de monitoramento constante para que o problema não volte a ocorrer;
  • Questões técnicas próprias do local onde o pasto está localizado podem inviabilizá-lo para a agricultura;
  • Por fim, existe a chance de o pasto degradado estar localizado em área de desmatamento ilegal, o que torna necessária a restauração da vegetação nativa.

Outra imprecisão na declaração de Lula diz respeito aos dados citados: de acordo com os números mais recentes do Mapbiomas, há 80,9 milhões de hectares de pastos com indícios de degradação no Brasil. Esses espaços, que correspondem a 52,3% de todas as pastagens cultivadas, podem sofrer com degradação intermediária (38% dos casos) ou severa (14,3% dos casos), a depender de fatores como a situação do solo e o vigor da vegetação.

O Aos Fatos consultou especialistas para entender se a estratégia defendida pelo presidente é viável e eficaz — e quais são os possíveis obstáculos para que ela se concretize.

OBSTÁCULOS

De acordo com Vinicius Mesquita, pesquisador do Lapig (Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento), da UFG (Universidade Federal de Goiás), e coordenador técnico do mapeamento de pastagens do Mapbiomas, a possibilidade de recuperação dos pastos está condicionada a fatores como o tipo de degradação a que foram submetidos e a gravidade do problema.

  • No caso da degradação agrícola, por exemplo, há uma mudança na composição das plantas que formam o pasto e um aumento na quantidade de espécies invasoras. Nessa situação, a degradação pode ser combatida com produtos químicos. Essa forma de contenção, no entanto, pode se tornar mais custosa a depender do quanto as espécies se espalharam pelo local;
  • Já no caso da degradação biológica, há um aumento na incidência de áreas com solo descoberto, o que pode levar à formação de processos erosivos. Em caso de degradação intermediária, pode-se reformar o pasto com gramíneas; caso o problema seja mais grave, pode ser necessário recorrer a técnicas como curvas de nível, ou mesmo fechar a área para permitir que se regenere.

Mesquita ressalta ainda que, a depender da gravidade do problema, a recuperação pode ser tão custosa e tão demorada que não se torna viável ao produtor. Ele cita como exemplo uma região em Goiás em que os processos erosivos levaram à formação de crateras. Para tentar conter o agravamento do processo erosivo, produtores tiveram de retirar o gado da região e plantar mudas de espécies nativas.

Mesmo a reforma na área não garante que o problema vá embora de vez. “Se você não fizer o acompanhamento junto do produtor, isso vai degradar de novo. Você vai gastar um dinheiro enorme e vai ter resultado por um ano; depois volta tudo de novo ou piora”, explica Mesquita.

Estudo publicado pelo Observatório de Bioeconomia da FGV no ano passado estima que seriam necessários R$ 383,77 bilhões em insumos e tecnologia para reformar os pastos degradados nos principais biomas do país. Os valores variam de acordo com a gravidade da situação e o local em que se encontra o pasto. Para os autores da pesquisa, no entanto, os potenciais ganhos com aumento de produtividade superariam as despesas iniciais com a revitalização dos espaços.

Mesmo onde a recuperação é possível, também não há como garantir que o terreno será apropriado para a prática agrícola. Esse é o caso de regiões com solos declivosos, rasos ou úmidos, aponta o professor do departamento de Ciências Florestais da USP Pedro Brancalion. “Temos áreas degradadas que dificilmente seriam bem utilizadas para a produção agropecuária em função das restrições ambientais que possuem, devendo assim ser recuperadas com vegetação nativa”, afirmou. Também é importante considerar fatores como a frequência das chuvas e a presença de infraestrutura para escoamento da produção.

Vista aérea de pasto degradado que apresenta perda de cobertura vegetal
Degradação. Pastagens podem sofrer com disseminação de espécies invasoras e com formação de processos erosivos (Lapig/Divulgação)

Já sob a ótica ambiental, a conversão dos pastos pode esbarrar em práticas criminosas de desmatamento: levantamento realizado no ano passado pelo Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) em parceria com o site ((o))eco a partir de dados do Lapig, por exemplo, constatou que desmatadores haviam aberto 1,28 milhão de hectares de pastos ilegais em dez unidades de conservação da Amazônia.

No caso de espaços criados — e posteriormente degradados — a partir de práticas de desmatamento ilegal, a orientação de especialistas também é que haja recuperação com vegetação nativa. De acordo com os pesquisadores consultados pelo Aos Fatos, no entanto, a maior parte das pastagens degradadas do país estão localizadas em áreas privadas, como fazendas.

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A ORIGEM DO DADO

A extensão total de pastos degradados, de 80,9 milhões de hectares, é mais de duas vezes maior do que a citada por Lula em sua declaração. Questionada pelo Aos Fatos sobre a origem do dado, a assessoria do presidente afirmou que a fonte da informação era a Embrapa. Em artigo publicado em 2013, no entanto, pesquisadores do órgão já estimavam que 81,9 milhões de hectares do país eram compostos por pastagens com algum nível de degradação.

Em busca no site da Embrapa por pesquisas que citassem número similar ao mencionado pelo presidente, o Aos Fatos encontrou apenas um texto de 2020 que afirmava que a região Centro-Oeste concentrava 31 milhões de hectares de pastos degradados e uma apresentação que apontava, com base em dados de 2006, que a Amazônia Legal possuía 30 milhões de hectares de pastagens degradadas.

O número que mais se aproxima do citado pelo presidente é o da área ocupada por pastos com degradação severa. De acordo com o Mapbiomas, essa categoria de pastagem se estende por 22,1 milhões de hectares.

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