Ao atribuir a responsabilidade pelo esquema de descontos irregulares dos benefícios pagos pelo INSS ao governo Bolsonaro, o presidente Lula afirmou no sábado (10) que a quadrilha envolvida nos crimes foi criada em 2019. Contudo, investigações da CGU (Controladoria Geral da União) e da PF (Polícia Federal) ainda não determinaram a data de início das fraudes.
Na ocasião, Lula rebateu críticas de que houve atraso na apuração do esquema, que teria o envolvimento de servidores da autarquia, associações e sindicatos. Na sua fala, entretanto, o presidente omitiu a inércia do INSS sob o seu comando em tomar medidas para coibir as fraudes que já eram de conhecimento do órgão ao menos desde 2017.
Confira abaixo o que checamos:
Nós resolvemos desmontar uma quadrilha que foi criada em 2019. É importante saber, uma quadrilha que foi criada em 2019. E vocês sabem quem governava o Brasil em 2019, vocês sabem quem era ministro da Previdência em 2019, vocês sabem quem era chefe da Casa Civil em 2019.
Diferentemente do que afirmou o presidente Lula (PT), ainda não se sabe quando os criminosos começaram a descontar ilegalmente valores de aposentados e pensionistas do INSS. A CGU e a PF ainda investigam o esquema.
Há indícios, no entanto, de que os desvios começaram antes de 2019 e se intensificaram nos últimos anos, atravessando os governos de Michel Temer (MDB), Jair Bolsonaro (PL) e, por fim, do próprio Lula.
Em relatório, a CGU apontou os fatores que impulsionaram esse tipo de crime a partir de 2017, na gestão Temer: a transformação digital do INSS, a partir daquele ano, e o perfil dos beneficiários — alvos preferenciais de golpistas.
Além disso, mudanças legislativas para afrouxar a fiscalização sobre as entidades, em 2019 e 2022, e a falta de ação da autarquia contra fraudes ao longo dos mandatos dos três presidentes contribuíram para a explosão de casos.
Aumento do risco de fraudes
A CGU afirmou, em documento apensado ao inquérito aberto pela PF a que o Aos Fatos teve acesso, que a transformação digital pela qual o INSS passou a partir de 2017, exigida pelo decreto nº 8.539 de 2015, ocorreu sem o devido aperfeiçoamento dos controles internos, o que elevou os riscos de descontos associativos indevidos.
O texto destaca dois pontos: primeiro, que as entidades puderam realizar descontos sem que houvesse análise de um servidor do INSS. Segundo, que os beneficiários enfrentaram dificuldades para acessar os serviços oferecidos pela autarquia, mesmo com as ferramentas disponibilizadas.
A CGU afirma que a vulnerabilidade dos beneficiários, em sua maioria idosos sem familiaridade com canais digitais, somada à fragilidade dos mecanismos de controle da autarquia, os tornaram alvos de grupos que buscavam autorização para descontos sem o devido esclarecimento.
Um gráfico do relatório de auditoria do órgão mostra a evolução do número de entidades e descontos em mensalidades associativas desde 2016. Em números gerais, é possível ver que há uma tendência de crescimento revertida pela pandemia em 2020 e 2021 e que depois retorna com força a partir de 2022. Em 2023, o valor descontado chegou a R$ 1,3 bilhão, quase o dobro do ano anterior.
Em nota ao Aos Fatos, a CGU afirmou que a auditoria se concentrou nas inclusões de associados por entidades entre fevereiro de 2016 e setembro de 2024. A busca era pela entrada de um grande número de associados no período de um mês — possível indício de irregularidade.
Ao selecionar as situações em que houve ao menos 50 mil inclusões de descontos em benefícios por uma mesma entidade em um único mês, o órgão verificou 59 ocorrências, sendo 16 entre 2016 e 2018, no governo Temer, quatro durante o governo Bolsonaro, e 39 entre abril de 2023 e agosto de 2024, no mandato de Lula.
O órgão também apontou que em 2021 e 2022 o número de acordos de cooperação técnica (ACTs) fechados entre as organizações e o INSS, “aumentou exponencialmente, permitindo que mais entidades descontassem mensalidades diretamente na folha”.
Denúncias anteriores
Uma das explicações para o menor número de indícios identificados durante o governo Bolsonaro é que, em 2019, a Procuradoria da República no Paraná expediu uma recomendação ao INSS para suspender os repasses a quatro organizações em razão do aumento súbito dos valores descontados a partir de 2017.
Segundo a CGU, em 2020, o INSS de fato suspendeu os repasses a essas entidades que atuaram em 2017 e 2018, “o que poderia indicar irregularidades antes de 2019”, segundo o órgão de controle.
Antes, em 2017, o Procon de São Paulo encaminhou denúncia ao Ministério Público paulista sobre práticas irregulares cometidas por associações com relação a contribuições indevidas e serviços e produtos não contratados. O INSS só foi acionado, entretanto, em 2019.

Naquele ano, houve uma tentativa de endurecer a concessão de descontos associativos. A MP 871, formulada pelo INSS, previa a obrigatoriedade da autorização do desconto e sua revalidação anual. Na prática, isso obrigava as associações a comprovar que as mensalidades eram autorizadas pelos aposentados e pensionistas.
Durante a tramitação no Congresso, o prazo foi ampliado para três anos, contados a partir de 31 de dezembro de 2021. Posteriormente, o início da exigência foi adiado para o fim de 2022. A medida, no entanto, nunca entrou em vigor, porque foi extinta pela lei 14.438, sancionada por Bolsonaro em agosto de 2022.
Como já explicado pelo Aos Fatos, tanto os prazos iniciais estabelecidos pela lei, quanto a sua revogação, não impediam que o INSS ou outros órgãos fizessem auditorias e cancelassem contratos fraudulentos a qualquer tempo.

Inércia do governo Lula
O ex-ministro da Previdência Social, Carlos Lupi (PDT), que esteve à frente da pasta de janeiro de 2023 até o início deste mês, foi alertado em abril de 2023 sobre os descontos não autorizados. Na época, Lupi admitiu a existência de fraudes e afirmou que não tinha como intervir no processo de autorização do desconto, cabendo ao ministério apenas o cancelamento a pedido do beneficiário.
Em dezembro de 2023, o Metrópoles veiculou que uma entidade estava realizando descontos ilegais de beneficiários do INSS. Posteriormente, o site mostrou que entidades parceiras do INSS faturaram R$ 2 bilhões em pouco mais de um ano. Não foi especificado, no entanto, o montante descontado de forma ilegal.
As primeiras medidas do órgão para frear as fraudes foram anunciadas no início de 2024, após o início da apuração feita pela CGU e as denúncias publicadas pela imprensa, sendo que nem todas entraram efetivamente em vigor no ano passado.
Anunciada em março de 2024, a implementação da biometria como fator de segurança extra para liberação dos descontos, por exemplo, entrou em funcionamento pleno apenas em fevereiro deste ano.
A PF diz que a direção do INSS chegou a suspender os descontos de todas as entidades associativas em maio de 2024, até que fosse desenvolvido um procedimento mais seguro para os pagamentos. No entanto, a própria direção do órgão teria flexibilizado a decisão e autorizado novamente os descontos em junho.
Um relatório de fiscalização do TCU (Tribunal de Contas da União) de 2024, e apensado no inquérito aberto pela PF, também apontou aumento significativo de associados e de repasse de valores para algumas entidades associativas entre 2022 e 2023.
Uma das organizações suspeitas de aplicar descontos irregulares, por exemplo, não tinha filiados em 2022, e no seguinte contava com mais de 340 mil associados. A arrecadação até então inexistente em 2022 saltou para R$ 48 milhões em 2023.
Outro lado. Aos Fatos entrou em contato com a Secretaria de Comunicação da Presidência da República, mas não houve retorno até o momento da publicação desta checagem. O texto será atualizado caso haja resposta.
O caminho da apuração
Aos Fatos leu os relatórios da PF e da CGU e contextualizou com reportagens publicadas pela imprensa e pelo próprio Aos Fatos sobre o assunto.




