No ano em que o Brasil assumiu a presidência do G20, as alegações enganosas mais frequentes ditas pelo presidente Lula estiveram relacionadas a uma das bandeiras centrais da reunião da Cúpula de Líderes, ocorrida em novembro no Rio de Janeiro: o combate à fome e à desigualdade social.
O argumento desinformativo mais repetido pelo petista em 2024 foi citado mais de uma vez durante o evento. No lançamento da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, por exemplo, Lula disse que, apesar de o governo do PT ter acabado com a fome no Brasil em 2014, 33 milhões de pessoas não tinham o que comer em 2022, último ano do governo de Jair Bolsonaro (PL).
O Brasil, no entanto, nunca deixou de registrar milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave. Em 2013, melhor ano da série histórica, no governo de Dilma Rousseff (PT), o país ainda tinha 7,2 milhões de pessoas famintas.

As outras afirmações enganosas mais recorrentes foram referentes à educação no país: Lula tem omitido que o programa Pé-de-Meia, lançado em janeiro, foi um projeto do Congresso Nacional — e não do governo — e exagerado o número de obras de creches paralisadas que ele herdou de Bolsonaro.
Esses dados são resultado de um levantamento realizado pelo Aos Fatos ao longo do ano. Foram levadas em consideração falas públicas do presidente em discursos e entrevistas.
Confira abaixo as cinco desinformações mais repetidas por Lula em 2024:
Nós acabamos com a fome em 2014. Quando eu voltei [à Presidência], tinha 33 milhões de pessoas passando fome.
Uma das desinformações mais repetidas por Lula em 2023 passou a ser o principal argumento incorreto do presidente neste ano: o de que a fome teria sido extinta do país em 2014 e voltado durante o governo Bolsonaro.
Repetida em ao menos 24 ocasiões diferentes, a declaração é FALSA porque compara dois indicadores distintos:
- Quando Lula diz que acabou com a fome em 2014, ele se refere a ao momento em que o Brasil deixou o Mapa da Fome, relatório produzido pela ONU. Esse levantamento leva em consideração o FIES (Food Insecurity Experience Scale);
- O número de 33 milhões de pessoas com fome, no entanto, se refere à pesquisa da Rede Penssan, que usa a Ebia (Escala Brasileira de Segurança Alimentar), do IBGE;
- Cada escala leva em consideração critérios diferentes e que, portanto, não podem ser comparados.
Além disso, não é possível afirmar que o Brasil acabou com a fome em nenhuma dessas escalas. Um país sai do Mapa da Fome quando ele tem um nível de subalimentação igual ou inferior a 2,5%. Entre 2014 e 2021, o Brasil cumpriu com esse requisito, mas nunca zerou a taxa.
Já em relação aos dados de fome do IBGE, o menor número registrado foi em 2013, quando havia 3,6% da população na categoria insegurança alimentar grave, classificação que é considerada como “pessoa em situação de fome”. Isso significa que, naquele ano, havia cerca de 7,2 milhões de brasileiros sem o que comer.
Em 2022, último ano do governo Bolsonaro, o número saltou para 33 milhões — ou 15,5% da população —, segundo pesquisa da Rede Penssan.
Outro lado. Em nota enviada ao Aos Fatos, a Secom (Secretaria de Comunicação) da Presidência da República disse que "a declaração [de Lula] está relacionada ao compromisso desta gestão em interromper a trajetória de aumento da fome, o que vinha ocorrendo no país desde 2018, com políticas consistentes como foram adotadas anteriormente e que permitiram a retirada do Brasil do Mapa da Fome em 2014".
Nós criamos o Pé-de-Meia para ajudar as crianças mais pobres, que abandonaram a escola para poder trabalhar e ajudar a mãe.
A declaração, repetida 22 vezes durante 2024, omite que o programa Pé-de-Meia é fruto de um projeto de lei enviado pelo Congresso Nacional que, apesar de ter sido abraçado pelos governistas e sancionado por Lula, foi idealizado antes de o petista assumir o poder.
O programa, que cria uma espécie de poupança para estudantes do ensino médio beneficiários do CadÚnico, foi proposto pelo PL 54/2021, de autoria da deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP).

O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados, onde foi relatado pelo deputado federal Pedro Uczai (PT-SC), e no Senado, onde foi relatado pela senadora Teresa Leitão (PT-ES), em 2023.
Desde sua sanção, em janeiro deste ano, o programa tem sido protagonista nos discursos de Lula sobre as atuações do governo na educação. Inicialmente, o presidente falava que tinha “abraçado” o programa, mas, a partir do meio do ano, passou a dizer que havia “criado” o Pé-de-Meia.
Outro lado. A Secom alega que Lula se refere à sanção da lei "por meio da qual o programa passou a ser executado de fato".
Quando eu cheguei na Presidência, em 2003, o Brasil em 100 anos tinha construído 140 institutos federais. Nós temos hoje 682. Nós vamos para o ano que vem para 782.
Outra desinformação recorrente nas falas de Lula — também repetida 22 vezes — é o número de institutos federais no país. O presidente alega que existem hoje 682 institutos e que irá inaugurar 100 novos até o final de 2026, mas isso é incorreto porque:
- O número de 682 citado por Lula inclui todas as unidades da rede federal de educação profissional, científica e tecnológica do Brasil — e não só os IFs;
- Conforme explicado pelo próprio Conif (Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica) ao Aos Fatos, o plano do governo é abrir 100 novos campi de instituições já existentes no país.
Atualmente, a rede federal conta com os 38 institutos, 22 escolas técnicas vinculadas a universidades federais, dois Cefets (Centros Federais de Educação Tecnológica), o Colégio Pedro 2º e seus campi e a UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná).
A rede, então, é formada por 682 unidades de ensino, dentre as quais 602 são campi de IFs. Com o anúncio feito em março, Lula pretende alcançar 782 unidades de ensino vinculadas à rede federal até 2026, sendo 702 delas campi de IFs.
A fala de Lula ainda distorce a evolução dos institutos federais:
- Em 2003, quando assumiu o governo pela primeira vez, havia 140 escolas técnicas no país, criadas entre 1909 e 2002;
- Em 2008, algumas dessas escolas foram transformadas nos 38 institutos federais existentes até hoje;
- Desde então, os IFs têm sido ampliados por meio da inauguração de novos campi.
E hoje tenho orgulho de ser o presidente da República, único no país, que não tem diploma universitário (...)
Lula repetiu em ao menos 17 ocasiões durante este ano que foi o único presidente da República sem diploma universitário, o que é FALSO.
Café Filho, que assumiu como 18º presidente da República após o suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954, também não completou o ensino superior. Ele governou o país até novembro de 1955.
De acordo com o CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil), Café Filho ingressou na Academia de Ciências Jurídicas e Comerciais, no Recife, em 1917, mas não concluiu os estudos em direito.
Lula costuma usar o argumento antes de falar sobre ações do governo federal na área educacional. Sua linha de raciocínio é que, por causa da falta de formação, ele sabe da importância que é ter acesso a educação de qualidade.
Outro lado. A Secom discorda da checagem porque considera que Lula é o único presidente sem diploma, já que Café Filho foi eleito vice-presidente.
Porque nós encontramos esse país com 6.000 creches paralisadas.
Desde 2023, Lula tem dito que herdou do governo Bolsonaro um grande número de obras paralisadas. Apesar de dados disponíveis em bases públicas apontarem que de fato havia obras paradas ou inacabadas, a declaração é FALSA, porque os números citados pelo presidente são muito superiores aos registrados.
Segundo o próprio Poder Executivo, com base nos dados do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), havia, em abril de 2023, 3.540 obras de infraestrutura voltadas à educação básica paralisadas ou inacabadas, sendo 1.221 unidades de educação infantil (creches e pré-escolas).
O TCU (Tribunal de Contas da União) mostra um dado levemente maior do que o FNDE, mas ainda assim bem menor do que o citado por Lula. De acordo com o Painel de Acompanhamento de Obras Paralisadas, havia no Brasil em agosto de 2022 — último levantamento disponível da gestão Bolsonaro (PL) — um total de 3.625 obras paralisadas na educação básica. Não há dados discriminados que permitam determinar quantos desses projetos são de creches e escolas.
Esse dado falso foi repetido por Lula ao menos 16 vezes em 2024.
Outro lado. Sobre essa declaração, a Secom afirmou apenas que "educação, da creche à pós-graduação, voltou a ser prioridade nesta gestão, e as falas do presidente buscam destacar a ampliação da oferta de instituições de ensino no país".
Colaborou Amanda Ribeiro.
O caminho da apuração
Aos Fatos analisou todos os discursos, pronunciamentos e entrevistas do presidente Lula em 2024 e separou as declarações passíveis de checagem. No decorrer do ano, a equipe checou as mais repetidas.
No final de dezembro, as declarações que foram consideradas como “Falso” ou “Não é bem assim” foram contabilizadas para formar um ranking.