Só neste ano, o Brasil vivenciou duas crises causadas pelas mudanças climáticas: o Rio Grande do Sul foi devastado por um volume de chuvas fora da curva, e, agora, regiões do país sofrem com milhares de focos de incêndio, que esconderam o sol por trás da fumaça.
Ambos os fenômenos extremos são consequências da alteração do clima causada pela ação do homem. Sim, tem dedo do ser humano no aquecimento global e isso é consenso na literatura científica.
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Há, no entanto, quem ainda duvide. Aqui, na A Que Ponto Checamos, já mostramos que pessoas acreditavam que incêndios eram causados por lasers ou que as chuvas seriam testes climáticos da ONU com “ondas Haarp”.
Nos últimos dias, começou a viralizar uma outra teoria conspiratória: a de que as queimadas são causadas pelo próprio governo para justificar um “lockdown climático”.
Antes de desmentir a teoria conspiratória, é necessário fazer um breve histórico da ideia de “lockdown climático”:
- A expressão — uma referência às medidas de distanciamento social adotadas durante a pandemia de Covid-19 — já foi usada em textos que abordam medidas para combater o aquecimento global;
- Em março de 2020, a advogada Sara Hayat publicou um artigo na revista Dawn chamado “Climate Lockdown”, no qual dizia que o distanciamento social da Covid-19 diminuiu a emissão de gases poluentes. Isso, segundo ela, mostraria que mudanças de estilo de vida podem melhorar a saúde do planeta. Em nenhum momento do texto é defendido um “lockdown climático”;
- Já a economista Mariana Mazzucato publicou um artigo em setembro de 2020 em que defende a necessidade de evitar que a situação climática atinja um ponto em que seja necessário implementar medidas extremas, como a limitação do uso de veículos particulares e a proibição de carne vermelha;
- Mais tarde, o termo “lockdown climático” foi capturado por negacionistas para se referir a medidas criadas para reduzir a emissão de gases poluentes e evitar o agravamento das mudanças climáticas.
“Este aumento no volume [de publicações com o termo ‘lockdown climático’] parecia ser impulsionado principalmente pelos céticos do clima, que alegaram que a pandemia de Covid-19 era apenas um precursor para a futura ‘tirania verde’ e que tanto os governos quanto as elites globais restringiriam as liberdades civis sob o pretexto da mudança climática” — relatório do ISD (Institute for Strategic Dialogue) publicado em 2021.
Nos últimos dias, a expressão ganhou força no Brasil para tentar explicar o motivo por trás das queimadas que assolam diversos estados. As publicações alegam que os incêndios estariam sendo causados pelo próprio governo para forçar uma agenda ambientalista.
Um exemplo é a fala do climatologista Ricardo Felício, que nega as mudanças climáticas e que foi demitido da USP em 2023 por se recusar a dar aulas remotas durante a pandemia. Em entrevista à Revista Oeste, ele culpou o governo pelo alastramento dos incêndios e disse que os ambientalistas estão se aproveitando para propor o “lockdown climático” (veja abaixo).
Segundo Felício, a solução proposta pelo governo para tentar solucionar o problema seria uma “perda de direitos do cidadão”: “O pessoal já está aí preparando o lockdown climático, que as pessoas fiquem em casa, que voltem a usar máscaras”.
Isso é mentira. Ninguém está cerceando direitos ou tentando confinar a população. O Ministério da Saúde apenas divulgou orientações para evitar a exposição à fumaça das queimadas, que podem agravar doenças respiratórias, por exemplo.
Além disso, a própria ideia de que as queimadas seriam algo proposital por parte do governo não faz sentido:
- levantamentos apontam que a maior parte dos incêndios têm origem em propriedades privadas;
- há investigações em andamento e até evidências capturadas em vídeo que apontam que parte das queimadas pode ter sido causada de forma criminosa, com o intuito de explorar áreas economicamente;
Além da ação humana, há também a influência do aquecimento global no aumento das queimadas. Conforme explicou ao Aos Fatos o ambientalista e professor da UECE (Universidade Estadual do Ceará) Alexandre Araújo Costa, as mudanças climáticas agravam o problema porque:
- as secas estão ocorrendo com frequência e intensidade maiores;
- a atmosfera está mais quente, o que aumenta as taxas de evapotranspiração, que diminuem a umidade do solo;
- em regiões que não estão acostumadas com secas frequentes, a vegetação seca e se torna material inflamável.
Tudo isso faz com que “a probabilidade de uma queimada, que a princípio seria controlada, sair do controle, e você ter fogo subterrâneo, ter alastramento pela mata”, concluiu o pesquisador.
Portanto, essa história de lockdown climático é balela. Não há indícios de que o governo queira prender você e tirar seus direitos — e nem motivo.
Na verdade, quem já está alterando radicalmente o nosso estilo de vida é o próprio meio ambiente: de acordo com a ONU, uma em cada 97 pessoas tiveram que deixar suas casas por causa das mudanças climáticas. Pesquisas científicas apontam ainda que diversas pessoas já morreram devido às ondas de calor e alguns países estão sob risco de sumir do mapa por conta do aumento do nível do mar.
Mas não é necessário nem ir tão longe para entender os impactos das mudanças climáticas. Basta lembrar que as enchentes históricas no Rio Grande do Sul mataram mais de 180 pessoas e expulsaram milhares de suas casas.
Outro lado
Aos Fatos procurou Felício para que ele pudesse comentar o texto, mas não recebeu retorno até esta segunda-feira (23).