Sem mediação, disputas nas redes e no Congresso arriscam gerar leis baseadas em mentiras

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“A lei é a guardiã do ideal da verdade não mediada, a verdade despojada do ornamento da narração”, escreve Janet Malcom no livro “The Crime of Sheila McGough”, sobre um erro judicial nos Estados Unidos.

“O magistrado, representante da lei, julga a tentativa dos advogados de usar as regras da evidência para desmontar as histórias um do outro, enquanto preservam a coesão das suas próprias. A história que melhor resiste ao desgaste das regras da evidência é a que vence.”

Esse embate entre versões não ocorre só depois que as leis já estão em vigor, sendo aplicadas nos tribunais. Começa muito antes disso, durante o processo legislativo.

Nas últimas semanas, o Congresso Nacional deu exemplos de como os projetos de lei que poderão guiar a busca por Justiça são objeto de disputas entre versões nem sempre verdadeiras.


O “PL do Aborto” teve sua justificativa copiada na íntegra de um texto publicado antes em um site negacionista, como o Aos Fatos revelou nesta semana, em reportagem de Bianca Bortolon e Ethel Rudnitzki.

O texto está disponível na internet desde 24 de fevereiro, três meses antes de ser usado na Câmara como argumento favorável ao projeto.

Procurado, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) disse que não tinha conhecimento da publicação, mas informou que o conteúdo foi escrito a muitas mãos: “Eu sou integrante do Movimento Pró Vida, que é um movimento mundial que também está no Brasil. Esse texto foi discutido ao longo de meses com o Movimento Pró Vida”.

Em canais e grupos no Telegram, o Centro Dom Bosco, organização ultraconservadora católica, articulou uma campanha para que as pessoas pressionassem deputados, também com argumentos falsos e até com um vídeo da atriz Cássia Kis. Em outras bolhas, ela aparece na capa da Veja de 1997 que voltou a viralizar, em que diz ter realizado um aborto.


Enquanto isso, no Senado, o novo relatório do PL 2.338/2023, para regular o uso de inteligência artificial, veio com surpresinha: o senador Eduardo Gomes (PL-TO) designou a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) como principal órgão regulador do tema no Brasil.

O estica-puxa para definir quem terá a palavra final na fiscalização do uso de IA se arrasta há mais de um ano, tendo como protagonistas a ANPD e a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), conforme relatamos desde então.

Questionada pelo Aos Fatos sobre uma mudança de política nas plataformas da Meta, que passou a usar dados de usuários para treinar modelos de IA sem avisar os brasileiros de forma clara, a ANPD deu uma resposta que indica disposição em agir: “É essencial um claro aviso aos usuários da plataforma, para que possam escolher de maneira livre e informada o que fazer. Não há transparência quando há surpresas”.

No entanto, somente o tempo mostrará se essas palavras darão em processo administrativo e, quem sabe, alguma sanção. O histórico de atuação da ANPD, até aqui, é tímido.

Ainda que não seja definitiva — já que o projeto passará pelo plenário do Senado e pela Câmara —, a escolha de um órgão regulador é um passo importante para não repetir o que ocorreu com o “PL das Fake News”, que implodiu diante de impasse parecido.


Ainda sem uma definição final sobre os integrantes do grupo de trabalho criado por Lira, a iniciativa para regular redes ganhou aliados improváveis, após ter sido ultrapassada pela regulação de IA entre as prioridades do Legislativo.

“Fofoqueiro e mentiroso nunca faltou na Terra”, disse o bispo Alessandro Paschoall no True Podcast, produzido pela Igreja Universal do Reino de Deus, em um episódio dedicado a debater se o “PL das Fake News” significa “liberdade ou censura”.

“O diabo que presta esse papel de trabalhar com a desinformação e com a mentira”, completou o apresentador.

Em paralelo, a bancada evangélica na Câmara também se movimenta para diminuir resistências, como mostrou reportagem de Gisele Lobato. Um dos defensores da regulação das redes é o deputado Marcos Pereira (SP), presidente nacional do Republicanos e bispo licenciado da Universal.


Interesses eleitorais também entram na equação. Na Comissão de Comunicação, a deputada Dani Cunha (União-RJ) decidiu que a Meta deve prestar esclarecimentos sobre a proibição ao uso da API do WhatsApp Business por políticos, após ser provocada pela presidente nacional do Podemos, a deputada Renata Abreu (SP), que não faz parte do colegiado. Faltam quatro meses para as eleições municipais.

Em desrespeito ao princípio da publicidade, a decisão foi marcar uma reunião a portas fechadas, longe das lentes da TV Câmara e do escrutínio de jornalistas, conforme mostrou a repórter Gisele Lobato.

Durante o debate, ao defender os interesses da empresa, Gustavo Gayer (PL-GO) — um dos deputados que publicam desinformação de forma recorrente — disse que “levantar essa discussão na comissão só ajuda quem pretende reforçar medidas que limitam a utilização da plataforma para fins políticos eleitorais”.


O papel do jornalismo nisso tudo é municiar o debate, para que as leis — guardiãs “do ideal da verdade não mediada”, como definiu Janet Malcom — não sejam fruto de mentiras. E que interesses particulares não prevaleçam em detrimento aos da sociedade. Nem sempre funciona.

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