Justificativa ao ‘PL do Aborto’ apresentada por deputados foi copiada de site negacionista

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A justificativa apresentada pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e os outros 31 coautores para o PL 1.904/2024, popularizado como “PL do Aborto”, foi copiada na íntegra de um site que divulga conteúdos negacionistas para atacar os direitos reprodutivos das mulheres.

O texto está disponível na internet desde 24 de fevereiro — três meses antes de ser usado na Câmara como argumento favorável ao projeto.

O que diz o projeto:

  • O PL 1.904/2024 foi apresentado em 17 de maio e busca equiparar ao crime de homicídio abortos realizados após 22 semanas de gestação. Isso valeria inclusive para gravidez em decorrência de estupro, um dos três casos em que a interrupção da gestação é permitida pela legislação brasileira (os outros dois são risco de vida para a mãe e anencefalia fetal);
  • Se o PL for aprovado, a mulher que for estuprada e abortar pode ser condenada a até 20 anos de prisão; a pena para estupro é de até 12 anos;
  • A Câmara aprovou o regime de urgência para a tramitação do projeto na última quarta (12), o que gerou uma forte reação contrária nas redes e em manifestações nas ruas;
  • Nesta segunda (17), após a repercussão negativa, surgiram notícias de possíveis recuos do presidente da Casa, Arthur Lira (PL-AL), e da bancada evangélica, principal apoiadora do texto.

A justificativa usada no PL 1.904/2024 está disponível no Alfarrabios, site registrado por uma empresa de tecnologia extinta, que teve como sócios dois ex-alunos do ultraconservador Olavo de Carvalho, morto em 2022.

Questionado, o deputado Sóstenes Cavalcante afirmou que não tinha conhecimento da publicação do texto no site Alfarrabios e que não reconhece os donos do site. “Eu sou integrante do Movimento Pró Vida, que é um movimento mundial que também está no Brasil. Esse texto foi discutido ao longo de meses com o Movimento Pró Vida”, afirmou por meio de sua assessoria.

Sob o título “Ampliando a oferta dos serviços de aborto” — únicas palavras que não foram copiadas na justificativa do projeto —, o texto do site distorce o Código Penal, notas técnicas e protocolos médicos para argumentar que o aborto após 23 semanas seria anticientífico e sem precedentes.

No final, sugere que movimentos e pessoas que defendem o direito ao aborto no Brasil fariam parte de uma conspiração global pela “desconstrução dos fundamentos do Estado de Direito, da liberdade e da civilização moderna”.

O Alfarrabios já hospedou diferentes documentos usados em campanhas negacionistas ou contrários ao direito ao aborto, inclusive um relacionado a uma campanha internacional contra o direito das mulheres ao aborto, sob influência de católicos ultraconservadores.

Entre os textos, estão:

  • Um manifesto intitulado “Segundas intenções”, que alega que a campanha pró-direitos reprodutivos no mundo seria parte de uma agenda conspiratória global;
  • Um texto que afirma que a Covid-19 foi criada em laboratório e nega a eficácia das vacinas;
  • Modelos de pedidos de notificação extrajudicial contra diretores de escolas ou reitores universitários que exigissem vacinação de alunos;
  • Listas de contatos de deputados e lideranças na Câmara que poderiam ser pressionados a barrar projetos em defesa do direito ao aborto.

Em 2023, links do site foram usados em campanha promovida pelo vereador Douglas Medeiros (PL), em Jundiaí (SP), contra o PL 7.559/2014, que propõe a criação de um Fundo Nacional para a Promoção dos Direitos da Mulher. Segundo o político, a proposta iria “construir um programa de financiamento ao aborto no Brasil”.

As listas de contatos de parlamentares disponibilizadas no site também foram usadas por uma entidade contrária à legalização do aborto para protestar contra o “PL das Fake News”, que, na avaliação da entidade, promoveria censura.

Diversos conteúdos do site estão circulando para pressionar parlamentares pelo “PL do Aborto”. Arquivos foram compartilhados pelo Centro Dom Bosco, grupo católico ultraconservador conhecido por processar o Porta dos Fundos em 2022 e que é um dos articuladores de campanha a favor do projeto.

Links para textos do site também apareceram em petição no site CitizenGo, que agrega campanhas de mobilização contra direitos reprodutivos ou de pessoas LGBTQIAP+ em mais de 50 países.

Uma campanha lançada em abril pedia a manutenção de resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) que impedia a realização de assistolia fetal, procedimento que usa cloreto de potássio para a realização de aborto legal. A regra havia sido suspensa por decisão do STF. Em junho, a mesma petição foi atualizada para pressionar pela aprovação do PL 1.904/2024.

Além do documento copiado na justificativa do PL, a campanha também compartilha um dossiê que fala sobre suposta ofensiva do comitê de direitos humanos da ONU para legalizar o aborto em toda a América Latina.

Reportagem do Aos Fatos mostrou como avança no Congresso a ofensiva dos grupos autointitulados pró-vida — contrários a qualquer tentativa de descriminalizar o aborto. O PL 1904 é apenas uma peça dessa ofensiva.

Leia mais
BIPE Grupo católico fez campanha nas redes a favor do PL do Aborto para pressionar deputados

QUEM SÃO OS SÓCIOS?

O Alfarrabios está registrado no nome de uma empresa de tecnologia cujo CNPJ foi extinto, mas que tinha como sócios o padre ortodoxo Luís Filidis e o professor de artes cênicas e espiritualidade cristã Roberto Mallet. Ambos foram alunos de Olavo de Carvalho.

Mais ativo nas redes sociais, Mallet dá aulas em um curso do médico carioca Italo Marsili, cujo nome era defendido pela ala olavista do governo Jair Bolsonaro (PL) para assumir o Ministério da Saúde em 2020 e que já participou de programas da Brasil Paralelo, também voltada para a produção de conteúdos negacionistas e revisionistas.

Mallet é autor do livro “O mínimo sobre arte”, que faz parte de uma série de publicações sobre conceitos caros à extrema-direita, como feminismo, doutrinação, economia e o Foro de São Paulo. Outros autores publicados pela editora são a deputada estadual Ana Campagnolo (PL-SC), os influenciadores Rodrigo Constantino e Paula Marisa, investigada por disseminação de notícias falsas.

A editora responsável pela obra é uma das parceiras da Cedet, empresa de selos editoriais baseada em Campinas (SP). A empresa afirma já ter firmado parceria com mais de 90 editoras para impressão e distribuição de livros, que incluem diversas outras editoras católicas ultraconservadoras como Estudos Nacionais e PH Vox.

Uma das sócias da Cedet, a engenheira Adelice Leite de Godoy D’Ávila já alegou fazer parte do Observatório Interamericano de Biopolítica, organização católica ultraconservadora que luta contra o direito ao aborto.

Aos Fatos entrou em contato com Mallet e Filidis para questionar sobre a relação do documento hospedado em seu site com o PL 1.904/2024. A reportagem será atualizada caso haja resposta.

Referências

  1. Uol
  2. Aos Fatos (1, 2 e 3)
  3. Web Archive (1 e 2)
  4. Migalhas
  5. Agência Pública
  6. Intercept Brasil

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