Uma série de indícios aponta que o site bolsonarista Jornal da Cidade Online tem usado perfis falsos em publicações que trazem ataques e desinformação a respeito de políticos, desembargadores e até ministros do STF (Supremo Tribunal Federal).
O site, notabilizado pela difusão de conteúdo enganoso em favor de Jair Bolsonaro nas últimas eleições, tem entre os seus colaboradores Amanda Acosta e Otto Dantas. Ela é apresentada em seus artigos com uma foto modificada digitalmente da escritora Thalita Rebouças; ele com retrato extraído do banco de imagens Shutterstock.
Outro forte indício de identidade falsa é que, nos processos em que foram incluídos como réus, esses dois colaboradores do site nunca foram encontrados pela Justiça para a entrega de notificações. Nem mesmo a advogada que os defende em diversos processos, Camila Rosa, conhece ou sabe o paradeiro de Amanda Acosta e Otto Dantas.
O editor do Jornal da Cidade Online, José Tolentino, disse nesta terça-feira (2) que não conhece pessoalmente os dois colaboradores. Ele afirmou que não costuma conferir as biografias nem a autenticidade das fotos de quem escreve na página, e se recusou a fornecer evidências que pudessem comprovar as identidades de Acosta e Dantas.
E-mails enviados por Aos Fatos aos endereços informados no site também ficaram sem resposta até a publicação desta reportagem. Um deles, com pedido de entrevista, até chegou a ser replicado no dia 28 de junho por Otto Dantas, que disse estar em viagem e requisitou um número de telefone para ligar. Mas, ao ser questionado se a conversa poderia ser por vídeo, ele não respondeu mais.
Por fim, buscas feitas por Aos Fatos em redes sociais, listas telefônicas e textos assinados em outras publicações não geraram resultados que confirmassem a existência dos dois repórteres do Jornal da Cidade Online.
Fotos alteradas. Comparando a imagem do perfil de Otto Dantas no Jornal da Cidade Online (acima, à direita) com uma do banco de imagens Shutterstock (à esquerda), é possível perceber que elas são quase idênticas. No fundo da imagem, à esquerda, há uma porta desfocada, seguida por uma janela larga e uma espécie de objeto de decoração (seta vermelha). Também dá para ver uma parte de uma cadeira logo atrás da pessoa em ambas as fotos, acima do ombro direito (seta preta).
Ao observar o rosto da pessoa, pode-se perceber que, além do corte, as entradas no cabelo são idênticas. Há também um reflexo forte de luz no mesmo ponto da face, do lado esquerdo e superior da cabeça, próximo ao cabelo. Mais: do lado direito, parte da orelha desponta nas duas fotos com o mesmo formato e na mesma posição (seta verde).
As narinas e as maçãs do rosto dos homens nas duas fotos também estão iluminadas da mesma maneira, assim como o sorriso apresenta uma dentição levemente separada ao lado esquerdo (seta azul) nos dois casos.
Há, também, diferenças entre as imagens: a cor da camisa, a curvatura do nariz (o de Dantas é levemente arqueado para baixo) e os olhos (os do repórter são mais próximos). Essas alterações, porém, podem ser feitas em um software simples de edição de imagens.
A comparação entre a foto de Amanda Acosta (à direita) e a da escritora infanto-juvenil Thalita Rebouças é mais óbvia, pois a estampa da blusa é idêntica.
Outros detalhes também podem ser notados: o ponto de repartição do cabelo de ambas é o mesmo (seta azul); os focos de luz no nariz e nas maçãs do rosto são semelhantes e as duas linhas de expressão formadas pelo sorriso logo abaixo da boca de Thalita também estão presentes na foto de Acosta (seta vermelha).
Nos cabelos, a luz que incide de forma mais intensa sobre os fios da escritora ao lado direito também está refletida no cabelo de Acosta (seta verde). Fios desordenados sobre o colo de Rebouças também estão iguais na foto da jornalista do Jornal da Cidade Online (setas preta e roxa).
Assim como a imagem de Otto Dantas, a foto atribuída a Amanda Acosta também apresenta alterações feitas com auxílio de software de edição: a cor dos cabelos foi escurecida, a pele teve o tom alterado, o rosto foi alargado e os olhos aumentados.
Procurado por Aos Fatos na última terça-feira (2), o editor do Jornal da Cidade Online, José Tolentino, disse desconhecer que sejam falsas as fotos dos repórteres, mas não apresentou evidências que mostrassem o contrário nem forneceu os contatos dos dois. Também afirmou que a sua interação com eles é sempre virtual, nunca pessoalmente ou por chamadas de vídeo. Tolentino negou que os dois sejam perfis falsos e assumiu a responsabilidade por tudo que sai no site: “Como vocês fazem no Aos Fatos, na Folha de S.Paulo, eu não sei. Aqui no Jornal da Cidade Online, a responsabilidade é minha. Eu assumo”.
Gilmar Mendes. Ao se esquivar dos questionamentos, ele indagou ainda se Aos Fatos estaria trabalhando para Gilmar Mendes, ministro do STF que processou o site e os repórteres após a publicação de artigos que citavam ele e a esposa, a advogada Guiomar Mendes, em acusações a respeito de habeas corpus concedidos pelo magistrado.
Em maio de 2017, o ministro entrou com uma ação por danos morais contra o Jornal da Cidade Online por conta de três matérias, assinadas por Otto Dantas e Amanda Acosta, além de Helder Caldeira, colunista do site que teve a identidade comprovada por Aos Fatos. As publicações afirmavam que Guiomar Mendes teria recebido honorários pela soltura de Eike Batista, cujo habeas corpus fora concedido por Gilmar Mendes. Na verdade, apesar de trabalhar no escritório Sergio Bermudes, que defendeu o empresário, não há evidências de que ela tenha atuado nesta causa.
Em 1º de maio daquele ano, Dantas publicou texto, em tom eloquente e opinativo, onde afirma: “fica evidente que, debaixo do edredom, Gilmar e Guiomar discutiram o assunto. E parece óbvio que o ministro aguardou um dia propício para efetivar a peripécia. Aliás, em se falando em peripécia, Gilmar Mendes é um exímio praticante”.
Sete dias mais tarde, em 8 de maio, o ministro ingressou com a ação, pedindo R$ 100 mil ao site. Constam como réus, além do veículo, Tolentino, Dantas, Acosta e Caldeira, que também veiculou texto sobre o assunto.
Segundo a advogada Camila Rosa, que atua na defesa do Jornal da Cidade Online, o processo ainda não passou dos estágios iniciais devido à impossibilidade de contatar Dantas e Acosta. Enquanto Caldeira e Tolentino foram notificados, os dois repórteres nunca foram encontrados. Intimado pela Justiça a fornecer um meio de contato com os dois, Tolentino encaminhou o e-mail profissional apresentado no perfil do Jornal da Cidade Online, que afirmou ser o único disponível.
Danos morais. Atualmente, o Jornal da Cidade Online também enfrenta outros cinco processos por danos morais movidos por desembargadores do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro). As ações foram motivadas pela publicação de um texto em que Amanda Acosta cita dezenas de magistrados que, segundo ela, teriam progredido na carreira fazendo tráfico de influência a mando de Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador do Rio Sérgio Cabral.
Apesar de o conteúdo ser assinado por Acosta, ela não consta como ré no processo. Isso porque, de acordo com o advogado dos desembargadores, Fernando Orotavo Neto, não foi possível localizar a jornalista. “Quando vi que não ia conseguir citar a Amanda Acosta, desisti da citação dela e resolvi continuar o processo apenas contra o jornal e o editor”, afirma o advogado.
O site já perdeu dois dos processos e terá de pagar R$ 120 mil à desembargadora Inês da Trindade Chaves de Mello e R$ 150 mil ao desembargador Flávio Marcelo de Azevedo Horta Fernandes.
Tolentino afirmou ao Aos Fatos que não informaria nenhum dado pessoal dos repórteres, nem mesmo o estado de residência: “esse tipo de informação eu não vou dar para você, mesmo que soubesse. Sabe por quê? Eles são réus nessa ação do Gilmar Mendes, junto com o Helder. O Helder eles conseguiram achar, e ele foi citado. Eu não vou fornecer meios para localizarem a Amanda e o Otto. Se localizarem, ótimo”.
Se, ao Aos Fatos, Tolentino se negou a informar onde residem os colaboradores, não foi assim que se comportou quando um oficial de Justiça foi, no dia 24 de outubro de 2017, até a sede do Jornal da Cidade Online, em Passo Fundo (RS), procurar por Dantas, Acosta e Caldeira, que ainda não havia sido notificado. Segundo a precatória, os citados no processo não trabalhavam com ele e residiam em estados diversos: no Mato Grosso, no Ceará e no Rio de Janeiro. Em consulta ao perfil do Facebook de Caldeira, pode-se verificar que ele reside em Cuiabá (MT). Dantas e Acosta seriam, portanto, do Rio e do Ceará.
Artigos. Tanto Dantas quanto Acosta começaram a publicar no site entre 2016 e 2017. José Tolentino disse não se lembrar da época em que eles entraram na equipe, já que o portal tem cerca de 50 colaboradores. “No Jornal da Cidade Online, trabalhamos com inúmeros colaboradores, todos não remunerados. São mais de 50. Professores, advogados, jornalistas também. A gente foi ganhando uma credibilidade tamanha que hoje as pessoas nos procuram porque querem participar do jornal, querem escrever”.
Tolentino também ressaltou que o site é do Rio Grande do Sul e que não conhece a maioria dos colaboradores pessoalmente, apenas virtualmente. “Inclusive, os três que fizeram matéria sobre o Gilmar, eu não conheço pessoalmente nenhum. Nenhum dos três”.
Enquanto Acosta adota um tom mais objetivo em seus artigos, o que não impede que vez ou outra utilize títulos ácidos — caso das matérias “A dramática situação do STF: Não prende ninguém, protege políticos, indeniza bandidos e solta assassinos” e “A devolução do processo para Bretas, a covardia e o dia em que o rabo abanou o cachorrão” —, Dantas usa vocabulário bastante adjetivado e termos como “presunçoso”, “desonesto”, “psicopata”, “inútil” e “dotado de estupidez incomum” para se referir a políticos e figuras públicas.
É importante ressaltar, também, que Acosta e Dantas, ao lado da também repórter Lívia Martins, são os únicos a apresentarem, em seu perfil no site, um endereço de e-mail oficial do Jornal da Cidade Online. A biografia de ambos, ao contrário dos outros colunistas, é padrão: “Articulista e repórter”. De acordo com José Tolentino, o endereço foi criado por solicitação dos repórteres.
Os dois também são os únicos, dentre os cerca de 50 colunistas, a terem uma página oficial no Facebook voltada ao Jornal da Cidade Online. Ali, suas fotos de perfil e de capa são idênticas às do perfil do site, com a única diferença de terem um fundo verde padrão com o nome do veículo escrito. Na página, os dois — apesar de serem voluntários e, teoricamente, estarem livres para colaborar com outros veículos — republicam apenas matérias veiculadas no Jornal da Cidade Online, assinadas por eles ou por outros colaboradores.
Rotina. O procedimento para publicação no Jornal da Cidade Online seria o seguinte, segundo o editor: colaboradores não remunerados enviam o conteúdo por e-mail para Tolentino, que revisa as informações antes de publicá-las. Na redação do site, trabalham, além do editor, uma equipe de tecnologia e uma auxiliar que eventualmente publicaria matérias na página, mas nunca as assinaria.
Tanto Otto quanto Amanda publicam de quatro a cinco artigos por semana no portal, em média. Apesar de escreverem com frequência, nenhum dos dois recebe salário ou atua efetivamente como freelancer para o jornal.
Fake news. O Jornal da Cidade Online já teve pelo menos quatro publicações com informações falsas ou distorcidas checadas por Aos Fatos. Em maio de 2018, o site publicou que o Exército estaria fiscalizando as atuações dos senadores em Brasília, o que não era verdade. Já durante as eleições, postou duas peças de desinformação: uma que afirmava que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) teria entregue os códigos de segurança das urnas eletrônicas de votação a venezuelanos; outra que dizia que o então candidato presidencial Ciro Gomes (PDT) teria declarado voto em Jair Bolsonaro.
Neste ano, o site também difundiu a desinformação de que a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, teria requisitado ao Ministério da Agricultura o envio de cem veterinários para auxiliar os animais vítimas do rompimento da barragem de Brumadinho, em janeiro.
Atualização 5 de julho. Em email enviado ao Aos Fatos, Helder Caldeira explica que não envia seus textos ao Jornal da Cidade Online: "desde 2016, a editoria do Jornal da Cidade Online limitava-se a capturar textos públicos na minha timeline do Facebook e publicá-los como artigos".
Sobre Otto e Amanda, Caldeira diz nunca tê-los conhecido e que ficou "perplexo" com a situação relatada por Aos Fatos: "tão logo li a matéria, entrei em contato com editor do Jornal da Cidade Online, Sr. José Tolentino, pedindo que ele não mais capture meus textos no Facebook e os publique em seu site, da mesma forma como solicitei que seja retirado meu nome de uma coluna para a qual não há nenhum vínculo contratual existente". Caldeira também diz que repudia com veemência a prática de disseminar fake news.
Por fim, ele aponta que entrou com uma contestação na Justiça do Distrito Federal para que seu nome seja excluído do processo movido pelo ministro Gilmar Mendes, uma vez que tem "convicção da ilegitimidade passiva para constar como réu no mencionado processo".
Esta reportagem foi atualizada às 23h50 do dia 5 de julho de 2019 para acrescentar a nota enviada por Helder Caldeira.