De jingles a figurinhas de WhatsApp, diversos conteúdos produzidos com uso de inteligência artificial têm sido elaborados e compartilhados por campanhas políticas em todo o país.
Alguns candidatos até declaram à Justiça Eleitoral os gastos com empresas que fornecem esses conteúdos, mas em todos os casos identificados eles circulam sem que o eleitor saiba que foram produzidos com auxílio de IA — uma exigência da lei.
Uma resolução publicada pelo TSE em fevereiro determina que o candidato tem “o dever de informar, de modo explícito, destacado e acessível que o conteúdo foi fabricado ou manipulado e a tecnologia utilizada”.
Para especialistas, o objetivo é garantir transparência, algo que não vem sendo cumprido.
Levantamento do Aos Fatos no DivulgaCand, ferramenta de prestação de contas da Justiça Eleitoral, permitiu identificar candidaturas que usaram IA:
- 85 candidatos declararam gastos com três empresas que fornecem conteúdos gerados por IA;
- Desses, ao menos 38 publicaram conteúdos sintéticos sem avisar ao eleitor sobre o uso da tecnologia;
- Até agora os gastos somam mais de R$ 20 mil.
O baixo custo é um atrativo para a produção de conteúdos de campanha. Aos Fatos localizou pacotes de jingles gerados por IA a partir de R$ 80.
Os conteúdos — principalmente os produzidos pela mesma empresa — apresentam características muito parecidas. São comuns vídeos com uma imagem estática do candidato, junto com o número de urna e elementos gráficos animados, acompanhados de um jingle genérico que fala o nome e algumas propostas.
Há casos em que a letra da música é idêntica, variando só o nome e número.
“Nosso vereador é força e dedicação. Com ele no poder vai ter transformação”, canta uma voz masculina em ritmo lento, no vídeo de um candidato a vereador pelo PRD em Caruaru (PE).
A mesma frase pode ser ouvida em voz de mulher, na versão adotada por um candidato a vereador pelo PT em Itauçu (GO).
Nenhum dos conteúdos sinaliza que a música foi feita com IA.
O descumprimento da norma do TSE pode acarretar diferentes punições às candidaturas, dependendo do alcance da publicação ou do tipo de uso de IA.
Para Yasmin Curzi, pesquisadora do Karsh Institute of Democracy da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, faltam padronização e clareza da própria Justiça Eleitoral nas exigências e nas sanções.
Por isso, a mera ausência de sinalização de conteúdo gerado esbarra em questionamentos e acarreta riscos menores de punição.
O levantamento do Aos Fatos indica um fenômeno que pode ser maior, disfarçado pela dificuldade do eleitor e da própria Justiça Eleitoral de identificarem o uso de IA — e amplificado pela falta de clareza da norma e pela fluidez das punições previstas.
Por outro lado, diz Curzi, a maior preocupação da Justiça deve ser com a desinformação. “O que a resolução a meu ver procura tratar é o risco de exposição do eleitor a falsidades, à desinformação. Qualquer outra coisa que não entre nesse meandro na minha perspectiva sequer deveria ser punida”, defende Curzi.
A obrigatoriedade de sinalização também se estende às empresas que prestam serviço de IA às campanhas. “Não tem uma obrigação específica, mas é a mesma exigência de sinalização. A empresa que não seguir isso vai incorrer em ilegalidade e pode ser penalizada", explica a pesquisadora.
Livre mercado. A principal empresa contratada para serviços de inteligência artificial foi a Video AI Inteligência Artificial Ltda., que oferece pacotes para produção de artes para materiais gráficos, redes sociais e figurinhas de WhatsApp.
No mais barato, a um preço promocional de R$ 197, o candidato recebe 100 artes e 30 figurinhas — opção contratada por quatro candidaturas. Quem paga R$ 297 leva 300 artes, 130 figurinhas e um vídeo com música personalizada — escolha de outras 47 candidaturas.

- Ao todo, a empresa recebeu até agora mais de R$ 15 mil, pagos por 52 candidatos.
- Desses, ao menos 26 publicaram posts ou vídeos com indícios de uso de IA em seus perfis.
- Nenhum deles sinalizou que o conteúdo foi produzido com IA.
A reportagem também identificou 32 candidaturas que declararam gastos com a Oeia Tecnologia Inteligência Artificial Ltda., que somam mais de R$ 6.000.
A empresa tem anunciado seus serviços nas plataformas da Meta em todas as regiões do país, a um preço fixo de R$ 200 — o que ajuda a explicar a clientela espalhada por nove estados.

Entre os clientes está Maryane Coan Grassi (PL), candidata a vereadora em Braço do Norte (SC). No dia 1º de setembro, a candidata publicou em suas redes sociais vídeo de uma caminhada que ela fez pela cidade ao lado do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL). As cenas reais são sobrepostas pelo jingle da candidata, que repete seu número de urna e algumas propostas em ritmo sertanejo. “Com Deus, pátria e família vamos juntos caminhar. Maryane Coan Grassi, é nela que vamos votar”, entoa uma voz feminina robotizada.
O post não indica tratar-se de uma música gerada por IA, mas o único gasto da candidata com produção de jingles foi com a Oeia Tecnologia. O valor declarado corresponde ao serviço de músicas sintéticas oferecido pela empresa (R$ 200).
- Jingles publicados por mais 13 contratantes da empresa também não sinalizam que foram feitos por IA, embora tenham características de conteúdo sintético, como vozes que soam artificiais;
- Os outros 19 candidatos que contrataram os serviços da Oeia não publicaram jingles em suas redes sociais.
Rodrigo Antonio Ferrete (Republicanos), candidato a vereador na cidade de Sarzedo (MG), contratou tanto a Oeia como a VideoAI para produção de materiais. Ele publicou dois jingles diferentes nas redes, e nenhum traz o aviso de produção com uso de IA. Um deles, contudo, identifica o CNPJ da empresa Video.AI como produtora.

A reportagem questionou a Oeia Tecnologia e a Video AI se elas orientam os clientes a sinalizar o uso de inteligência artificial nas publicações, mas não obteve resposta até a publicação.
Também procuramos as candidaturas que contrataram as empresas e não sinalizaram o uso de IA nos conteúdos. O texto será atualizado caso haja reposta.
O TSE também não respondeu sobre qual o padrão a ser seguido para sinalização de conteúdo por IA nas redes sociais e as possíveis punições para as candidaturas que descumprirem isso. O espaço permanece aberto para manifestação.
O caminho da apuração
A reportagem coletou anúncios na Biblioteca de Anúncios da Meta que usassem o termo “inteligência artificial”, localizando assim o serviço de jingle sintético oferecido pela Oeia Tecnologia e Art & Video. Então, buscamos o CNPJ da empresa e por declarações de gasto com ela no DivulgaCand Contas. Procuramos também por empresas que tivessem “inteligência artificial” no nome entre os gastos declarados de candidatos, encontrando a Video AI.
Também procuramos publicações das candidaturas que contrataram as empresas que fossem compatíveis com os serviços oferecidos — jingles e vídeos personalizados — para apurar a presença ou não de sinalização de conteúdo sintético.
Por fim, entrevistamos a pesquisadora Yasmin Curzi sobre a conformidade ou não das publicações com as normas do TSE e questionamos a corte sobre os padrões a serem seguidos.