Sariana Fernández/Aos Fatos

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Abril de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Senador pede indenização contra YouTube e cita imunidade nas redes, que pode virar lei

Por Bianca Bortolon, Ethel Rudnitzki, Gisele Lobato, João Barbosa e Milena Mangabeira

6 de abril de 2023, 18h08

Enquanto os Três Poderes buscam definir limites para a imunidade parlamentar garantida pela Constituição, o senador Eduardo Girão (Novo-CE) se antecipou ao debate no Congresso e argumenta, em uma ação que move no TJ-CE (Tribunal de Justiça do Estado do Ceará), que o direito já se estende a publicações nas redes.

A questão não está expressa na lei, mas consta no relatório do PL das Fake News e, em uma versão atenuada, na proposta encaminhada pelo Executivo ao Legislativo.

Girão pede R$ 250 mil de indenização ao Google pela remoção de um vídeo do canal dele no YouTube. Um dos argumentos articulados pelos advogados do senador é de que a imunidade se aplicaria também à atuação dos parlamentares nas redes sociais. Segundo seus defensores, o senador teria tido esse suposto direito violado.

  • Por que existe? Desde a Constituição de 1988, parlamentares não podem responder a crimes comuns em decorrência de discursos — o que é conhecido como “imunidade parlamentar”. A decisão ocorreu porque políticos de oposição à ditadura foram perseguidos e cassados por expressarem opiniões;
  • Embate… Bolsonaristas testaram os limites dessa proteção, como o ex-deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), que incitou violência contra ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e promoveu atos golpistas ao disseminar mentiras nas redes;
  • …entre Poderes. No julgamento que condenou Silveira a 8 anos e 9 meses de prisão e à perda do mandato, o ministro Alexandre de Moraes disse que a proteção constitucional não pode servir “como escudo protetivo para atividades ilícitas, para discurso de ódio”;
  • No STF. No ano passado, a 2ª Turma do tribunal decidiu que a imunidade parlamentar não protege políticos de virarem réus por crimes contra a honra, como injúria e difamação. Os ministros aceitaram queixas-crime contra o senador Jorge Kajuru (Podemos-GO) por vídeos que ele publicou nas redes;
  • No Parlamento. Em meio ao debate sobre o PL das Fake News, o Congresso Nacional analisa se muda a lei para estender a imunidade parlamentar à internet;
  • O que pode mudar? Caso o PL das Fake News seja aprovado conforme o texto do relator, as plataformas ficariam proibidas de excluir qualquer publicação feita pelos próprios deputados e senadores que irão votar o texto, mesmo que o conteúdo seja desinformativo ou mentiroso;
  • No governo Lula. A proposta do Executivo prevê tratamento privilegiado para autoridades públicas eleitas, impedindo o bloqueio de contas sem ordem judicial, mas não proíbe a exclusão de conteúdos que violem regras de comunidade.

O vídeo de Girão excluído pelo YouTube tem 1 hora e 29 minutos de duração e conta com um trecho desinformativo de cerca de 20 segundos, em que um entrevistador da Jovem Pan cita uma informação falsa sobre Covid-19.

O conteúdo é a íntegra de uma entrevista ao programa Direto ao Ponto, no dia 19 de setembro. O articulista da Jovem Pan menciona um suposto estudo que teria sido publicado pela revista Science demonstrando que o uso de hidroxicloroquina daria 92% de chance de cura para pacientes acometidos pela Covid-19.

A informação é falsa. A própria revista divulgou, em junho de 2020, que três grandes pesquisas clínicas, randomizadas e controladas, não encontraram benefícios associados ao uso do medicamento para o tratamento do coronavírus.

O YouTube removeu o vídeo por considerar que ele violava as diretrizes de comunidade ao disseminar desinformação.

Além disso, a plataforma aplicou uma suspensão de sete dias ao senador, período no qual Girão ficou impedido de publicar qualquer conteúdo. O canal dele e os vídeos postados seguiram no ar.

  • Um dos argumentos usados pelos advogados do senador é de que a remoção feriria a “liberdade de expressão” e que, por ele ser político, “esta deve ser ainda mais ampla”;
  • O artigo 53 da Constituição, citado pelos defensores de Girão, diz que “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos“;
  • Na prática, o senador alegou que não deveria ser obrigado a seguir as regras de comunidade do YouTube, da mesma forma que possui liberdade para defender seus pontos de vista na tribuna do Congresso;
  • A defesa do Google rebateu argumentando que a remoção do vídeo não era questão de liberdade ou inviolabilidade de opiniões de Girão, mas uma interferência na sua atividade econômica;
  • A plataforma disse ainda que a interpretação do senador criava uma obrigação para a empresa “que não existe no contrato celebrado e não é prevista no ordenamento jurídico”.

O Aos Fatos entrou em contato com Girão por meio de três números de telefone do gabinete dele em Brasília e também por email, mas não teve sucesso. A reportagem buscou também o escritório de apoio em Fortaleza por telefone, email e WhatsApp, que confirmou o recebimento do pedido, mas não respondeu.

Aos Fatos procurou ainda, por telefone, dois advogados que representam Girão na ação judicial contra o Google, mas não foi atendido.

A reportagem também ofereceu espaço para posicionamento da Jovem Pan, que é citada no processo.

A emissora afirmou que não iria se pronunciar devido a um contrato de confidencialidade que mantém com o YouTube.

PL DAS FAKE NEWS

Em tramitação na Câmara, o relatório do Projeto de Lei 2.630/2020, o PL das Fake News, de autoria do deputado Orlando Silva (PC do B-SP), estende a imunidade parlamentar às redes, mas sem especificar como isso seria aplicado.

O Executivo sugeriu alterações, incluindo no ponto da imunidade. Além de não proibir a exclusão de conteúdos que violem as regras de comunidade, a proposta abre uma exceção que libera as plataformas de suspenderem, por até sete dias, contas de personalidades políticas “contumazes violadoras dos termos e políticas de uso ou disseminadores de discursos de ódio, conteúdos ilícitos ou com potencial de provocar dano iminente de difícil reparação”.

O texto é omisso em relação a outras formas de punição que costumam ser adotadas pelas plataformas, como a redução da visibilidade de certos conteúdos.

Não é certo que o Congresso irá acatar as restrições sugeridas pelo Executivo. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), considera prioridade manter a imunidade parlamentar no projeto.

Ainda que sem citar diretamente a imunidade parlamentar, Lira criticou no dia 13 de março deste ano aquilo que chamou de uma “liberdade de expressão amordaçada” promovida pelas políticas de moderação das plataformas digitais.

“Já não é mais preciso prender um cidadão para silenciá-lo ou para restringir drasticamente o alcance de suas palavras. Mesmo aqueles cidadãos cuja função precípua é a manifestação de ideias e a comunicação, como jornalistas e parlamentares, podem ser calados com um mero clique”, disse durante evento promovido pela FGV (Fundação Getulio Vargas) em parceria com a Globo.

Em maio de 2022, a 2ª Turma do STF delimitou a imunidade parlamentar ao aceitar queixas-crime contra o senador Jorge Kajuru (Podemos-GO) por vídeos que ele havia publicado no Facebook, no Instagram, no Twitter e no YouTube.

Com um placar de 3 votos a 2, a maioria dos ministros decidiu que parlamentares podem virar réus por crimes contra a honra, como injúria e difamação.

Os pedidos foram feitos pelo ex-deputado Alexandre Baldy (PP-GO), a quem Kajuru se referiu como “aproveitador” e “malandro goiano”, e pelo senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO), chamado pelo colega de “senador turista” e “pateta bilionário”, entre outros adjetivos. Os advogados de Kajuru argumentaram que ocupantes de cargos públicos estão sujeitos a “críticas ácidas” de adversários, mas foram derrotados.

BANCADA DA DESINFORMAÇÃO

A imunidade parlamentar foi criada no contexto da redemocratização, visando impedir que os congressistas fossem alvo de perseguição política por suas opiniões ou votos, como ocorreu durante a ditadura civil-militar. No entanto, as redes sociais trouxeram nuances à discussão, uma vez que políticos exercem hoje papel importante na disseminação de desinformação e nos ataques à democracia.

Levantamento feito pelo Aos Fatos mostra que, só em 2023, tuítes enganosos ou falsos postados por deputados federais ou senadores atingiram mais de 1,5 milhão de interações.

  • O Radar Aos Fatos analisou as dez publicações mais populares de todos os deputados federais e senadores com conta ativa no Twitter entre janeiro e março de 2023;
  • Dessas, 114 continham informações falsas ou enganosas, publicadas por 67 parlamentares.

O principal tema de desinformação publicada por parlamentares foram as prisões de manifestantes que participaram dos atos de 8 de janeiro em Brasília. Deputados e senadores usaram alegações falsas, como a suposta morte de uma idosa no ginásio da Polícia Federal, para sair em defesa dos presos.

A crise humanitária Yanomami também foi pano de fundo para o compartilhamento de desinformação por congressistas, que alegaram em pelo menos oito tuítes que as imagens de indígenas desnutridos seriam de venezuelanos, o que é falso.

Essas postagens permanecem no ar sem qualquer restrição, mesmo indo na contramão das políticas do Twitter. Nessa plataforma, parlamentares brasileiros já tiveram contas banidas e publicações removidas, mas só depois de ordem judicial. Pelo menos nove políticos eleitos tiveram seus perfis bloqueados por decisão do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) entre novembro de 2022 e janeiro de 2023.

Mesmo assim, eles conseguiram driblar as restrições e continuar desinformando em outras redes ou através de perfis alternativos. O alcance das postagens, no entanto, diminuiu.

O efeito do banimento de políticos desinformadores ficou evidente após a exclusão das contas de redes sociais do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump. Com o bloqueio, a desinformação geral sobre fraude eleitoral no país caiu 73% no Twitter, segundo pesquisa do Zignal Labs.

Para o coletivo Intervozes, estender a imunidade parlamentar para as redes sociais pode trazer “consequências gravíssimas” no combate à desinformação.

“Diversas pesquisas já demonstraram como parlamentares fazem uso de suas contas nas plataformas para propagar discurso de ódio, caos informacional e desinformação”, afirma a entidade, em posicionamento enviado ao Aos Fatos.

“O selinho de verificação das plataformas dá mais engajamento para as postagens dos parlamentares, e eles são um vetor importante de desinformação”, concorda Yasmin Curzi, professora e pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio.

Curzi lembra ainda que, no discurso de um parlamentar no Congresso, existem mecanismos de controle dos abusos, como a possibilidade de uma intervenção imediata de seus pares, o que não acontece nas redes sociais, nas quais um post pode viralizar sem ser acompanhado de contestação.

João Victor Archegas, pesquisador sênior do ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade), considera que imunizar as contas de parlamentares nas redes sociais é “um grande obstáculo na empreitada de combate à desinformação”.

Porém, ele pondera que o debate é mais delicado quando se trata de períodos eleitorais. Para o pesquisador, é “complicado” permitir que empresas privadas tenham o poder de suspender candidatos das redes às vésperas de uma eleição, uma vez que as plataformas digitais se tornaram um “megafone importante” durante as campanhas.

Esse foi justamente um dos pontos levantados pela defesa de Girão na ação contra o Google, já que sua suspensão ocorreu bem às vésperas do segundo turno de 2022.

“O senador Eduardo Girão, como congressista e cidadão, já se manifestou no sentido de uma corrente política e deseja, como liderança, defendê-la junto aos seus eleitores, o que lhe está sendo cerceado de forma indevida pela plataforma YouTube”, diz o texto.

“É importante não legislar sobre a exceção”, rebate a coordenadora de Liberdade de Expressão do InternetLab, Iná Jost. Para ela, erros da moderação que prejudiquem candidatos podem ser mitigados, por exemplo, com a criação de mecanismos eficientes de contestação das punições, que hoje são discutidos na regulamentação das plataformas.

Por outro lado, a pesquisadora lembra que estender a imunidade parlamentar às redes pode prejudicar a renovação na política, uma vez que candidatos à reeleição teriam a vantagem de poder falar livremente em seus canais, direito que não seria garantido aos concorrentes novatos.

LIMITES À MODERAÇÃO

As plataformas digitais têm se articulado para tentar evitar o avanço de propostas que aumentem a sua responsabilidade sobre o conteúdo que distribuem, conforme mostrou o Aos Fatos. As empresas, porém, se posicionam contra a extensão da imunidade parlamentar às redes sociais.

Durante audiência pública realizada para discutir o artigo 19 do Marco Civil da Internet, o advogado da Meta no Brasil, Rodrigo Ruff, considerou as tentativas de limitar a moderação de conteúdo como “ameaças que devem ser combatidas de modo a incentivar cada vez mais uma autorregulação eficaz, coerente e transparente pelas plataformas”. Falas como essa são raras.

Partes interessadas no debate, que falaram ao Aos Fatos em condição de anonimato, argumentam que as empresas consideram problemática a extensão da imunidade às redes, mas não têm incentivos para focar esforços nesse ponto da negociação.

O motivo é que elas dependerão dos próprios parlamentares para tentar mitigar outros trechos do texto com maior potencial de impacto negativo sobre os modelos de negócios.

Apesar do posicionamento público mais discreto em relação a esse tema específico, as empresas tornaram mais rigorosa a moderação de perfis de políticos nos últimos meses.

No caso do Facebook, a empresa já foi acusada de ter uma lista VIP de usuários, como políticos e celebridades, não sujeitos às punições. Essas exceções, porém, diminuíram por recomendação de seu Conselho de Supervisão, entidade autônoma formada por especialistas de todo o mundo, que avalia as medidas tomadas pela plataforma contra conteúdos que violem regras.

O YouTube também adotou postura mais ativa. Além do caso do senador Girão, citado no início da reportagem, a plataforma removeu live do então presidente Jair Bolsonaro (PL) em dezembro de 2021 e, dois meses depois, excluiu um vídeo do canal de Eduardo Bolsonaro. Em ambos os casos, o motivo foi a desinformação sobre a pandemia.

No ano passado, a plataforma virou sua mira para as eleições e, em junho, foram derrubados dois vídeos do ex-deputado Daniel Silveira que traziam falsas alegações de fraude eleitoral. A plataforma também excluiu do canal de Bolsonaro vídeo de um encontro do ex-presidente com diplomatas em que ele fez declarações falsas sobre o sistema eleitoral e insinuou que as eleições de 2018 teriam sido fraudadas.

Já representantes de veículos de mídia, também empenhados no debate da regulamentação por causa da inclusão de um dispositivo que prevê a remuneração do jornalismo pelas plataformas, se esquivam quando questionadas sobre a imunidade parlamentar:

  • A ANJ (Associação Nacional de Jornais) diz “não ter posição sobre o tema”, por não ser do seu raio de ação;
  • A Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), por sua vez, afirma que “a liberdade de expressão, assim como a defesa da democracia, são valores absolutamente inegociáveis, e que exigem de todos nós, sociedade e poder público, uma constante vigilância”;
  • A entidade que representa o setor da radiodifusão declara também que “confia que o Congresso Nacional tomará uma medida acertada com relação ao tema, e que qualquer abuso ou ilegalidade certamente passará por um exame de constitucionalidade” pelo Judiciário.

Referências:

1. Aos Fatos (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11)

2. JOTA (1, 2)

3. Science

4. Folha de S.Paulo

5. Veja

6. G1

7. O Estado de S. Paulo (1, 2)

8. Intervozes

9. The Wall Street Journal

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