Marlon Costa/Futura Press/Estadão Conteúdo

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Janeiro de 2021. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Governo, empresas ou população: de quem é a responsabilidade por efeitos adversos das vacinas?

Por Amanda Ribeiro

26 de janeiro de 2021, 12h26

O Ministério da Saúde disse neste fim de semana que a Pfizer, fabricante de uma das vacinas contra a Covid-19, exigiu cláusulas abusivas em sua proposta ao governo federal. Segundo a pasta, a farmacêutica queria a isenção de qualquer responsabilidade civil sobre eventuais efeitos colaterais graves do imunizante.

Já o presidente Jair Bolsonaro repete há meses uma narrativa de que a responsabilidade por reações adversas das vacinas seria da própria população, não do Estado. Em live no último dia 7 , por exemplo, ele afirmou: "seu João, dona Maria, o problema que pode acontecer, nós [governo] não nos responsabilizamos. A senhora vai correr esse risco?”.

Afinal, de quem seria a responsabilidade legal nessa situação? Os dois casos acima mostram tentativas de escapar a um dever que, segundo especialistas, leis e decisões judiciais, caberia majoritariamente ao Estado, mas também às empresas. A seguir, Aos Fatos responde quatro perguntas essenciais para entender o assunto.

1. O Estado pode se eximir de responsabilidade sobre efeitos adversos da vacina?
2. Termos de responsabilidade para a vacinação têm valor legal?
3. As empresas farmacêuticas podem ser processadas?
4. Quais são os efeitos colaterais já observados nas vacinas?


O Estado pode se eximir de responsabilidade sobre efeitos adversos da vacina?

Não. A Constituição Federal determina, no artigo 196, que a saúde é dever do Estado, “garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença”. Estão incluídas nesse âmbito as campanhas de vacinação conduzidas desde a década de 1970 pelo Ministério da Saúde como parte do Programa Nacional de Imunização.

A Carta também estabelece, no artigo 37, que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros”. Por isso, caso uma vacina aplicada dentro de uma campanha do Ministério da Saúde comprovadamente cause efeitos colaterais a um paciente, a União pode ser acionada para reparar o cidadão lesado.

Essa previsão também existe no artigo 927 do Código Civil, que discorre sobre o direito à indenização e assegura que quem causar dano fica obrigado a repará-lo. O texto define ainda que a obrigação de reparar pode ocorrer, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco aos direitos de outros.

O Código Civil define dois tipos de responsabilidade. A primeira é a subjetiva, em que a pessoa deve reparar o dano causado caso tenha cometido um ato ilícito. O profissional de saúde que aplica a vacina, por exemplo, tem responsabilidade subjetiva. Ele só pode ser responsabilizado se cometer um erro, como usar a mesma seringa em dois pacientes, por exemplo, o que poderia levar à transmissão de doenças.

O outro tipo de responsabilidade prevista no texto legal é a objetiva, em que basta a comprovação de dano ou de nexo para responsabilizar um agente. O Estado, segundo corrente jurídica majoritária, tem responsabilidade objetiva.

Isso significa que, a partir do momento em que adquire a vacina para distribuição e aplicação, o Estado assume a responsabilidade sobre a imunização, explica Daniel Dourado, médico e advogado sanitarista, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP. O governo pode, portanto, ser penalizado caso algum problema ocorra.

"Não importa que o governo tenha feito a vacina sem negligência, imprudência, se ela [vacina] lesar alguém, pode sim ser responsabilizado”, ressaltou Dourado.


Termos de responsabilidade para a vacinação têm valor legal?

Não. O presidente Jair Bolsonaro tem defendido que as pessoas que se vacinem contra a Covid-19 assinem um termo no qual se responsabilizam por eventuais efeitos colaterais. No entanto, diante da impossibilidade de isenção da União, mesmo que um termo de responsabilidade fosse, de fato, implementado, sua validade jurídica seria nula, segundo juristas ouvidos pela reportagem.

Nem mesmo existe na legislação brasileira a figura de um “termo de responsabilidade” como o defendido pelo presidente. O que existe — e deve ser assinado pelos que se voluntariam para testes clínicos, por exemplo, é o TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido). O documento informa sobre o procedimento que será realizado, o objetivo da pesquisa e seus possíveis benefícios e prejuízos.

O TCLE também é usado em alguns tipos de exames médicos, como tomografia com uso de contraste e endoscopias, cirurgias e quimioterapiais.

Esse documento, no entanto, não serve para eximir os responsáveis pelos estudos ou clínicas e prestadores que oferecem os exames de quaisquer obrigações em caso de efeitos adversos. Pelo contrário. De acordo com resolução do CNS (Conselho Nacional de Saúde) que regulamenta o TCLE, “os participantes da pesquisa que vierem a sofrer qualquer tipo de dano resultante de sua participação na pesquisa, previsto ou não no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, têm direito à indenização, por parte do pesquisador, do patrocinador e das instituições envolvidas nas diferentes fases da pesquisa”.


Empresas farmacêuticas podem ser processadas por efeitos adversos de vacinas?

Sim, mesmo que estejam resguardadas por cláusulas de isenção de responsabilidade, como no caso da Pfizer denunciado pelo Ministério da Saúde. Isso porque a legislação brasileira não permite esse tipo de privilégio. Como explicamos acima, o Código Civil determina que quem causar dano a outros fica obrigado a repará-lo.

De acordo com Fernando Aith, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador de direito sanitário, essa isenção proposta pela Pfizer poderia ser enquadrada como cláusula abusiva, como prevê o Código de Defesa do Consumidor. Nesse caso, afirma Aith, a exigência, em termos jurídicos, torna-se nula.

A lei considera abusiva qualquer cláusula contratual que estabeleça "obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou que seja incompatível com a boa-fé ou a equidade”.

De acordo com o pesquisador, ainda que o Ministério da Saúde concordasse com a suposta regra, a pasta poderia alegar que a cláusula é inválida, e a empresa seria responsabilizada judicialmente de qualquer maneira caso ocorresse algum problema com a vacinação.

Marcelo Lobato, advogado trabalhista e empresarial que atua na área farmacêutica, também descarta a possibilidade de isenção judicial da empresa. “A lei brasileira [Código de Defesa do Consumidor, nos artigos 14 e 46] possui regulamento específico quanto à responsabilização do fornecedor, não permitindo que essa responsabilidade seja retirada via contrato particular”.


Quais são os efeitos colaterais já observados nas vacinas?

Ainda que o presidente levante de forma recorrente dúvidas sobre a segurança das vacinas aprovadas contra a Covid-19, não houve até o momento relatos de nenhum efeito colateral grave ou em larga escala durante os testes clínicos conduzidos pelo mundo. Mostramos a seguir detalhes dos dois imunizantes aprovados para uso emergencial no Brasil, a CoronaVac e a vacina Oxford/Astrazeneca, e do da Pfizer, o mais aplicado mundialmente até o momento.

No caso da CoronaVac, foram relatados apenas efeitos leves, como dor no local da injeção (cerca de 40%), dores de cabeça (cerca de 25%) e fadiga (cerca de 10%). Reações alérgicas ocorreram em 0,3% dos casos.

A desenvolvida pela Universidade de Oxford em parceria com a AstraZeneca, também não gerou efeitos colaterais sérios. A maior parte dos pacientes entre 18 e 55 anos que sofreram algum tipo de reação relataram fadiga (quase 70% no dia seguinte à aplicação), dores de cabeça (pouco mais de 50%) e dores musculares (também cerca de 50%). Os efeitos foram ainda mais leves em pacientes mais velhos, com mais de 56 anos.

Já a imunização da Pfizer gerou efeitos similares aos relatados acima: em torno de 80% dos pacientes entre 18 e 55 anos sentiram dor no local da aplicação, cerca de 50% sentiram dores de cabeça e 21% relataram dores musculares (na segunda dose, a proporção cresceu para 37%).

Há, ainda, indicativo de que uma pequena proporção de pacientes possa desenvolver reação alérgica grave: de acordo com o CDC (Center for Disease Control, órgão de saúde americano), foram observadas 21 reações do tipo nas primeiras 1,8 milhão de aplicações da vacina no país, o que leva a uma taxa de 11,1 casos por milhão.

Referências:

1. CNN Brasil
2. Ministério da Saúde
3. Aos Fatos (Fontes 1 e 2)
4. Extra
5. Planalto (Fontes 1, 2, 3 e 4)
6. Jus.com.br
7. G1
8. Fiocruz
9. CNS
10. Idec
11. Poder 360
12. The Lancet
13. CDC (Fontes 1 e 2)

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