Fernando Frazão/Agência Brasil

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Março de 2021. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Forças Armadas não pacificaram o país após golpe militar, como afirma ministro da Defesa

Por Amanda Ribeiro e Luiz Fernando Menezes

31 de março de 2021, 14h43

Uma nota divulgada nesta terça-feira (30) pelo novo ministro da Defesa, Walter Braga Netto, na véspera do aniversário de 57 anos do golpe que instituiu a ditadura militar (1964-1985) contém uma série de distorções históricas sobre o período. Ao glorificar o regime que suspendeu o Estado democrático de Direito no país, o texto concede falsamente às Forças Armadas o papel de pacificadoras de um suposto conflito iminente e aponta movimentos de esquerda como ameaças à democracia do período. Nada disso, no entanto, tem lastro histórico.

Ao sugerir que os militares teriam tomado o poder para amenizar um clima de instabilidade política e garantir a liberdade democrática, o texto omite que o regime foi marcado por repressão política, suspensão de direitos, perseguição, tortura e assassinatos. De acordo com relatório da CNV (Comissão Nacional da Verdade), foram registrados ao menos 434 mortos e desaparecidos no período.

Mudanças na legislação também extinguiram partidos, fecharam o Congresso e instituíram a censura como política de Estado. O regime militar, inicialmente propagandeado como uma transição provisória para a democracia, se perpetuou no poder por 21 anos.

Confira a seguir o que checamos.


As Forças Armadas acabaram assumindo a responsabilidade de pacificar o País, enfrentando os desgastes para reorganizá-lo e garantir as liberdades democráticas que hoje desfrutamos.

Diferentemente do que afirma o texto assinado por Braga Netto, as Forças Armadas não agiram como pacificadoras diante de uma iminente ruptura democrática e não trabalharam pela liberdade da população. Leis, documentos e extensos relatos históricos dão conta de que, ancorado em um tripé formado por censura, vigilância e repressão, o regime foi pautado por retirada de direitos, censura, tortura e perseguições políticas por mais de 20 anos.

Instituído inicialmente em caráter provisório em março de 1964, o governo militar foi alterando progressivamente a legislação brasileira com uma série de Atos Institucionais. Durante esse período, o Congresso Nacional foi fechado três vezes, houve extinção de partidos e imposição de um bipartidarismo.

Em seus primeiros nove meses, a ditadura já contava com um saldo de 20 mortos, sendo nove deles classificados como suicídios. Ao final de 21 anos de regime, foram contabilizados ao menos 434 mortos ou desaparecidos em decorrência da repressão de agentes do Estado.

Os números, que constam do relatório final da CNV (Comissão Nacional da Verdade) podem ser maiores, considerando a extensão do país, a ausência de compilação estatística rigorosa e que muitos familiares não prestaram queixas formais.

Um exemplo de subnotificação diz respeito à população indígena. De acordo com o Relatório Figueiredo, investigação feita em plena ditadura, agentes do Estado e agricultores foram responsáveis por matanças e caçadas humanas durante o regime. Estima-se que ao menos 8.350 indígenas tenham sido mortos no período.

Conforme ilustrado pelo Aos Fatos em 2019, há relatos extensos de tortura e violação de direitos humanos dos que foram considerados opositores políticos. Algumas das práticas incluíam a introdução de animais vivos na garganta e no ânus, choques elétricos, empalação com cassetetes embebidos em pimenta e estupros.

Em “Brasil: Uma Biografia” (Companhia das Letras, 2015), Lilia Schwarcz e Heloisa Starling estimam que 4.841 pessoas tenham perdido os direitos políticos ou sido cassadas, aposentadas ou demitidas pela ditadura. Militares que se opuseram ao regime também foram reprimidos: 1.313 foram remetidos para a reserva e dados como mortos, para que perdessem direito a soldos de promoção, aposentadoria e outros auxílios.

Insegurança e instabilidade política

Na nota alusiva ao golpe, Braga Netto também defende que, nos anos anteriores ao regime militar, o Brasil vivia um cenário de insegurança com “ameaças reais à paz e à democracia”. Isso não é verdade. Conforme já exposto pelo Aos Fatos em checagem anterior, havia grupos comunistas que pregavam a luta armada antes de 1964, mas eram uma minoria.

O PCB (Partido Comunista Brasileiro), maior agremiação comunista na época, não acreditava que o conflito armado fosse a resposta para chegar ao poder.

Consta dos arquivos do CPDOC-FGV (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas) que "a partir de 1958, o partido começou a considerar de máxima importância sua participação nas eleições através de coligações eleitorais, a fim de eleger candidatos comunistas ao Congresso”.

Na verdade, segundo o historiador Vitor Amorim de Angelo, foi só depois do golpe militar que a ideia do confronto ganhou força entre movimentos de esquerda: “A luta armada não esteve entre as razões do golpe, embora já existissem projetos guerrilheiros antes de 1964. O contrário, porém, é parcialmente verdadeiro, uma vez que o golpe passaria a ser visto por setores da esquerda brasileira como a confirmação de suas posições críticas ao 'caminho pacífico da revolução' defendido pelo PCB".

Participação do Brasil na Segunda Guerra

Outro ponto destacado pela nota de Braga Netto é que as Forças Armadas brasileiras teriam tido uma “significativa participação” na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e na derrota dos regimes nazistas e fascistas. Por mais que, de fato, o Brasil tenha enviado tropas para auxiliar os aliados na guerra, a ação foi curta e se restringiu apenas às operações na Itália.

O então presidente Getúlio Vargas decidiu participar do conflito ao lado dos Aliados em 1942, quando navios nacionais foram atacados por alemães, e criou a FEB (Força Expedicionária Brasileira) em 1943. O envio das tropas, no entanto, só ocorreu em junho de 1944, quando 5 mil homens foram mandados à Itália.

Ao todo, segundo o CPDOC-FGV, participaram da Segunda Guerra cerca de 25 mil militares brasileiros. O conflito terminou menos de um ano depois, quando, no dia 8 de maio, a Alemanha assinou sua rendição, deixando um saldo de 454 mortes entre as tropas da FEB.

Apoio da população

Também há distorções no trecho do texto em que o novo ministro da Defesa argumenta que a população brasileira apoiou o golpe militar. De fato, houve manifestações de apoio à tomada do poder pelas Forças Armadas, como as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, que levaram centenas de milhares de pessoas às ruas em março de 1964.

Pesquisas de opinião feitas à época, no entanto, relativizam esse amplo apoio. Um levantamento do Ibope na cidade de São Paulo, local onde as marchas tiveram sua maior adesão, apontou que, entre 20 e 30 de março de 1964, 42% dos entrevistados avaliavam o governo João Goulart como "ótimo" ou "bom" e apenas 19% como "mau" ou "péssimo". No mesmo levantamento, uma maioria expressiva, 79%, também disse considerar "necessárias" as reformas promovidas pelo então presidente.

Mais do mesmo

Vale ressaltar que o texto assinado por Braga Netto não traz nenhum posicionamento novo dentro do atual governo. Em 2020, também às vésperas do aniversário do golpe militar, o Ministério da Defesa, ainda chefiado por Fernando Azevedo e Silva, e os comandos do Exército, Marinha e Aeronáutica, assinaram um documento muito semelhante ao divulgado nesta terça-feira (30).

Na nota do ano passado aparecem os mesmos argumentos e revisionismos históricos: o golpe foi chamado de “movimento”, dizia-se que o objetivo da tomada do poder era “sustentar a democracia” e que o período militar teve o propósito “de manter a paz e a estabilidade”.

Referências:

1. Memórias da Ditadura
2. CPDOC-FGV (1, 2, 3, 4 e 5)
3. Comissão Nacional da Verdade
4. MPF
5. Amazônia Real
6. Aos Fatos (1 e 2)
7. UFRJ
8. UFES
9. O Globo
10. Scielo
11. Folha de S.Paulo


Esta reportagem foi publicada de acordo com a metodologia anterior do Aos Fatos.

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