Duzentos e setenta e três anúncios pagos que divulgavam tratamentos sem eficácia comprovada para a Covid-19 foram exibidos ao menos 3,9 milhões de vezes no Facebook e no Instagram ao longo de 2020, mostra levantamento do Radar Aos Fatos com dados das plataformas.
As publicações encontradas foram criadas entre abril e dezembro e defendiam o uso de cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina ou ozonioterapia contra o coronavírus. Embora promovidas por políticos e até por médicos, não há comprovação científica de que elas tenham qualquer efeito sobre a doença.
Uma consulta feita na segunda-feira (11) mostrou que esses anúncios haviam sido exibidos entre 3,9 milhões e 4,8 milhões de vezes, segundo dados da Biblioteca de Anúncios do Facebook. Um deles ainda está sendo veiculado. A ferramenta não informa o número exato de exibições ("impressões", no jargão publicitário) de cada post, apenas dá uma faixa com um valor mínimo e um máximo de vezes que a publicação pode ter sido exibida.
Apesar do alcance amplo, os gastos para impulsionar as publicações foram relativamente modestos: somados, os 273 anúncios custaram entre R$ 10.900 e R$ 37.927 — o Facebook também não divulga os valores exatos.
Dois dos posts encontrados (0,8% do total) foram removidos por violarem as políticas de publicidade da rede social. A informação sobre a remoção está disponível na Biblioteca de Anúncios (aqui e aqui). No entanto, não consta qual política foi violada pelos anúncios removidos.
Em seu site, o Facebook afirma que veda anúncios que contenham "alegações fraudulentas, falsas ou enganosas, tais como as que são relativas à eficiência ou características de um produto ou serviço ou alegações que criem expectativas não realistas nos utilizadores". Também diz que eles "não podem promover a venda ou a utilização de drogas ilegais, de uso recreativo ou sujeitas a receita médica".
Procurado pela reportagem, o Facebook não respondeu se os outros anúncios identificados pela reportagem violaram as políticas de publicidade (veja a íntegra da resposta no fim deste texto).
Politização. Os anúncios encontrados foram compartilhados por 99 páginas e perfis no Facebook e no Instagram. Desses, 78 eram ligados a política, incluindo páginas de ocupantes de cargos públicos, candidatos nas últimas eleições e movimentos sociais.
É possível que a predominância de políticos no levantamento se deva ao escopo da Biblioteca de Anúncios, que só permite fazer buscas temáticas por anúncios "relacionados com questões sociais, eleições ou política".
Ex-deputado federal e também médico, Carlos Manato (sem partido-ES) foi o campeão no número de posts impulsionados que promoviam remédios sem eficácia comprovada. O atual presidente do Conselho Deliberativo do Sebrae-ES e apoiador do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) pagou para ampliar o alcance de 32 publicações sobre o tema, o que resultou em entre 83 mil e 114.968 impressões a um custo de até R$ 3.168.
Em uma delas, o ex-parlamentar relaciona a queda de mortes no município de Aracruz, no Espírito Santo, ao tratamento precoce com cloroquina —o anúncio custou menos de R$ 100 e gerou de 9 mil a 10 mil impressões.
Em outra, Manato afirma que o medicamento para malária estaria “salvando vidas via Correio”, mencionando a distribuição de “kit covid” pela operadora de saúde Prevent Senior. O impulsionamento também saiu por menos de R$ 100, sendo mostrado a um número de usuários entre 7.000 e 8.000.
Em seguida, aparece Devanir Ferreira (Republicanos), recém-empossado vereador de Vila Velha (ES). Ele promoveu, durante a campanha eleitoral, 26 peças publicitárias que continham hashtags de apoio a substâncias sem comprovação científica contra a Covid-19, como azitromicina, ivermectina e cloroquina. Ferreira investiu até R$ 2.674 e teve de 89 mil a 122.974 impressões de anúncios.
Por fim, o governador de Mato Grosso, Mauro Mendes (DEM), foi o terceiro que mais promoveu anúncios de remédios ineficazes no Facebook. Em suas 13 publicações impulsionadas, o mandatário divulgou suas ações de enfrentamento à pandemia no Estado – entre elas, a distribuição de azitromicina e ivermectina para municípios mato-grossenses. Mendes investiu entre R$ 1,2 mil e R$ 2,4 mil, chegando a entre 1,3 milhão e 1,5 milhão de impressões.
Outro lado. Em contato por telefone com o Aos Fatos, Carlos Manato classificou a defesa do tratamento com medicamentos sem eficácia comprovada como uma questão de opinião. “Eu acredito e receito ivermectina, vitamina D e hidroxicloroquina. Impulsiono [as postagens] porque acredito. É uma questão de opinião e de liberdade minha. É meu posicionamento, há trabalhos favoráveis e contrários. Eu uso os favoráveis”, disse o ex-deputado e médico.
Mauro Mendes, em nota enviada pela assessoria de imprensa do governo de Mato Grosso, afirmou que o Estado comprou medicamentos e disponibilizou o "tratamento precoce" às unidades de saúde estaduais e aos municípios que o solicitaram. “No entanto, a distribuição desses medicamentos foi feita apenas e exclusivamente por meio de prescrição médica, após avaliação individual de cada paciente atendido na rede pública de saúde”, acrescentou.
Também por telefone, Devanir Ferreira defendeu o uso da cloroquina —que, segundo ele, curou um filho contaminado pelo coronavírus— e da ivermectina, que ele e outros familiares usaram e que ele acredita ter prevenido o contágio. “Tive dentro de casa uma comprovação pessoal e, para mim, isso é suficiente. Inúmeros médicos de grande relevância no país defendem o uso, além de hospitais renomados. Essa discussão de comprovação científica está muito mais relacionada ao financeiro do que à intenção de salvar as pessoas”, completou.
Por email, a assessoria de imprensa do Facebook afirmou que quer "manter as pessoas seguras e informadas, principalmente em temas importantes para a sua saúde. Nossa abordagem em relação a conteúdo sobre a COVID-19 inclui, de um lado, remover ou reduzir o alcance de conteúdo que seja nocivo ou falso, e de outro, conectar as pessoas com informações precisas e oficiais".
A reportagem questionou a empresa sobre se os anúncios analisados pelo Radar violaram as políticas de publicidade e as diretrizes da comunidade da rede social, mas não teve resposta. O Facebook apenas afirmou que, entre março e outubro de 2020, removeu “mais de 12 milhões de peças de conteúdo do Facebook e Instagram por conterem desinformação que poderia levar a danos físicos iminentes”.
A assessoria também disse que trabalha “com mais de 80 organizações de verificação de fatos que analisam e classificam conteúdo em mais de 60 idiomas em todo o mundo. Exibimos avisos em cerca de 167 milhões de peças de conteúdo no Facebook, com base em artigos de checagem sobre a COVID-19 escritos por nossos parceiros de verificação de fatos.”
O Aos Fatos é uma das organizações que integram a parceria com o Facebook (saiba como funciona).
Este texto foi modificado no dia 12 de janeiro de 2021 às 20h01 para informar que um dos anúncios encontrados pela reportagem ainda está no ar.