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🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Fevereiro de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Como funciona o financiamento do BNDES para obras em países estrangeiros

Por Marco Faustino

9 de fevereiro de 2023, 11h18

Os empréstimos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para obras em países estrangeiros deram prejuízo às contas do Brasil? Os calotes são pagos pelo contribuinte brasileiro? O que ganhamos ao financiar esses projetos?

Essas dúvidas voltaram à tona após o governo Lula anunciar que deve retomar a política de financiamento de exportação de bens e serviços de engenharia na América Latina e na África. Interrompida na gestão Temer, a linha de crédito foi golpeada por suspeitas de corrupção e por calotes de países com governantes tidos como próximos ao PT, como Cuba e Venezuela.

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Nesta segunda-feira (6), durante a posse da nova diretoria do BNDES, o presidente Lula (PT) citou dados do próprio banco ao defender que os empréstimos feitos até 2017, na realidade, deram lucro ao Brasil e que a culpa da falta de pagamento teria sido do governo Bolsonaro, que, em vez de negociar, azedou as relações com alguns dos países devedores.

Aos Fatos consultou especialistas e analisou dados para explicar o que você precisa saber sobre os empréstimos do BNDES para obras no exterior. Confira a seguir:

  1. O que o BNDES financia e quem pode ser beneficiado?
  2. Como funciona o empréstimo do BNDES para serviços de engenharia no exterior?
  3. O que acontece se países deixarem de pagar os empréstimos?
  4. Qual a dívida dos países atendidos pelos financiamentos do BNDES?
  5. Quais as vantagens e desvantagens de emprestar dinheiro?

O que o BNDES financia e quem pode ser beneficiado?


O BNDES é um banco público especializado em financiamento de longo prazo para empresas e pessoas sediadas ou residentes no país que investem em:

  • infraestrutura;
  • produção ou aquisição de máquinas e equipamentos novos de fabricação nacional;
  • desenvolvimento de software;
  • capital de giro (montante necessário para uma empresa manter as atividades);
  • exportação de bens e serviços nacionais;
  • compra de bens e serviços importados, desde que comprovada a impossibilidade de contratação de similares nacionais.

Entre os atendidos pelo banco, estão desde MEIs (microempreendedores individuais), caminhoneiros e produtores rurais até grandes empresas. Portanto, ao financiar uma grande obra no exterior, o banco empresta recursos para que firmas brasileiras executem o serviço. O pagamento, contudo, fica a cargo dos países beneficiados.

O banco não empresta dinheiro a clientes condenados, tanto na esfera administrativa ou penal, por atos que envolvam trabalho escravo, infantil, assédio moral ou sexual, crimes contra o meio ambiente e discriminação de raça e gênero. Além disso, motéis, jogos de azar, comércio e aquisição de armas de fogos e empreendimentos imobiliários fazem parte de uma lista de atividades que não são apoiadas pelo BNDES.

Como funciona o empréstimo do BNDES para serviços de engenharia no exterior?


Largamente usada nos governos anteriores do PT sob pretexto de ampliar a influência econômica brasileira em países da América Latina e da África, a linha de financiamento do BNDES para projetos no exterior foi lançada em 1998, na gestão de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), na esteira de uma abertura comercial do país.

Chamada de Exim Pós-embarque, uma das vertentes desta modalidade estabelece empréstimos em reais para empresas brasileiras que realizam obras no exterior, sendo que os países que recebem os empreendimentos são responsáveis pela dívida. O pagamento é feito em dólares ou euros, em prazo firmado nos contratos.

O governo brasileiro é quem decide as operações, os países de destino das exportações, as condições contratuais do financiamento e as formas de reduzir o risco de calote do país que sedia a obra de engenharia. Induzida principalmente no segundo governo Lula, essa política de crédito chegou ao auge em 2012, com Dilma Rousseff (PT).

Os principais critérios para o BNDES financiar um projeto no exterior são:

  • nível de prioridade nacional do projeto para o país importador;
  • quantidade e complexidade de bens e serviços brasileiros a serem exportados;
  • geração de empregos no Brasil com as exportações.

Sobre o país credor, são considerados critérios como:

  • histórico no cumprimento de contratos;
  • capacidade de pagamento;
  • nível de risco.

As propostas são conferidas pelo BNDES e pela Camex (Câmara de Comércio Exterior).

Até o fim de 2017, a taxa de juros cobrada nessas operações era a TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo), definida pelo BC (Banco Central) trimestralmente. A taxa, subsidiada, era inferior às praticadas pelo mercado e serviu como referência do custo básico de todos os empréstimos oferecidos pelo BNDES, dentro e fora do país, de 1995 a 1º de janeiro de 2018, quando foi substituída pela TLP (Taxa de Longo Prazo).

O novo presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, afirmou recentemente que não irá retomar a TJLP, mas que deverá propor ao Congresso uma mudança na TLP, que é considerada mais alinhada às taxas de mercado, para torná-la mais “estável”.

O advogado Evaristo Pinheiro, especialista em relações internacionais e comércio exterior da Barral Parente Pinheiro Advogados, afirma que esses empréstimos, além de fazerem parte de uma política regional, seguem uma lógica de mercado. O banco facilita a exportação de bens, como locomotivas e ônibus, e serviços, como obras de engenharia com alto valor tecnológico, para lugares onde o Brasil é mais competitivo.

Ao todo, 148 operações foram realizadas, com prazo médio de onze anos e dois meses para pagamento dos financiamentos.

Os países mais beneficiados com as obras foram:

  • Angola, com US$ 3,273 bilhões;
  • Argentina, US$ 2,006 bilhões;
  • Venezuela, US$ 1,507 bilhão;
  • República Dominicana, US$ 1,215 bilhão;
  • Equador, US$ 685 milhões; e
  • Cuba, US$ 656 milhões.

Os prazos para o pagamento variam de acordo com cada contrato. Até agora, o maior deles foi concedido pela Camex (Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior) para o projeto do Porto de Mariel, em Cuba: 25 anos.

O que acontece se os países deixarem de pagar os empréstimos?


Se um empréstimo deixa de ser pago, o BNDES é ressarcido pelo SCE (Seguro de Crédito à Exportação), garantia que é contratada pelo importador do serviço, seja o governo de um país ou uma empresa.

As receitas obtidas com esse seguro ficam no FGE (Fundo Garantidor de Exportação), criado em 1997, e que faz parte do Tesouro Nacional, espécie de caixa do governo, cuja fonte principal é a arrecadação de impostos.

Apesar de integrar as contas públicas, o FGE é composto majoritariamente de prêmios (pagamentos feitos pelo segurado pela contratação do seguro), ou seja, recursos privados. Também abastecem o fundo aplicações financeiras, títulos e valores imobiliários.

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Logo, ainda que os recursos para cobrir essas dívidas devam constar no Orçamento e venham do Tesouro Nacional, eles são provenientes dos prêmios pagos pelos devedores do financiamento ao contratar o seguro, não dos impostos pagos pelo contribuinte brasileiro.

Desde a criação do FGE até outubro de 2018, foram arrecadados US$ 1,35 bilhão em prêmios e pagos US$ 388 milhões em indenizações (US$ 160 milhões para outros bancos), tendo sido recuperados US$ 18,9 milhões, segundo o BNDES. O fundo, portanto, é superavitário.

Ainda assim, o uso desses recursos pode trazer impactos às contas. Em 2018, por exemplo, o Congresso Nacional aprovou um crédito suplementar de R$ 1,2 bilhões para o FGE cobrir calotes da Venezuela e Moçambique com o BNDES e o Credit Suisse, que não estavam previstos no Orçamento. Apesar de não retirar dinheiro de outras áreas, esse crédito levou ao corte de outras despesas, de modo a não estourar o teto de gastos do governo federal.

Já o país devedor fica impossibilitado de obter novos empréstimos do BNDES, consequência que é estendida às empresas locais, segundo Pinheiro. “Nenhum importador daquele país consegue ter crédito [no BNDES], porque, ao final do dia, você corre o risco político daquele país”, disse.

Em um aspecto mais amplo, o calote neste tipo de empréstimo pode suscitar pressões de outros credores sobre o país, gerando desconfiança no mercado. Com isso, o governo pode sofrer consequências como fuga de capital estrangeiro, dificuldades para lançar títulos públicos e rebaixamento de avaliações de risco.

Qual a dívida dos países atendidos pela linha de financiamento do BNDES?


Hoje, o BNDES ainda tem para receber US$ 935 milhões de países que estão em dia com os pagamentos e dos que já deram algum calote.

Segundo o banco, três países possuem parcelas atrasadas e tiveram US$ 1 bilhão indenizados pelo FGE até dezembro de 2022:

  • Venezuela (US$ 681 milhões)
  • Cuba (US$ 226 milhões);
  • Moçambique (US$ 122 milhões).

Esses países deixaram de pagar as dívidas a partir de janeiro de 2018, no governo Temer.

Seis países estão em dia com as obrigações, mas ainda possuem, juntos, saldo devedor de US$ 366 milhões com o banco:

  • República Dominicana (US$ 105 milhões);
  • Gana (US$ 94 milhões);
  • Guatemala (US$ 85 milhões);
  • Honduras (US$ 32 milhões);
  • Argentina (US$ 29 milhões);
  • Equador (US$ 21 milhões).

Outros seis países quitaram suas dívidas sem que o FGE fosse acionado:

  • Angola;
  • Costa Rica;
  • México;
  • Paraguai;
  • Peru;
  • Uruguai.

Quais as vantagens e desvantagens de emprestar dinheiro para obras no exterior?


O BNDES afirma que o financiamento da exportação de bens e de serviços produzidos no Brasil visa “o aumento da competitividade das empresas brasileiras, a geração de emprego e renda no país e a entrada de divisas”. Essa visão é corroborada por alguns especialistas, com algumas ressalvas.

O diretor de Comércio Exterior da Cisbra (Câmara de Comércio, Indústria e Serviços do Brasil), Arno Gleisner, concorda que há ganhos nessas operações, mas pondera que é necessário aprender com os erros do passado. “Os empréstimos geram emprego e renda no Brasil e devem continuar. Há muitas vantagens para empresas que se beneficiam indiretamente e não aparecem nos contratos de serviços. O BNDES tem experiência e vem aprimorando os contratos. O que é inadmissível são casos de corrupção ou inadimplência.”

O advogado Evaristo Pinheiro afirma que o BNDES lucrou com as transações e estimulou a exportação brasileira de alto valor agregado, assim como a atividade industrial. Segundo ele, a linha de financiamento representou menos de 2% dos desembolsos totais do banco para crédito oficial de exportação. De 1998 para cá, o banco emprestou US$ 10,5 bilhões para firmas brasileiras atuarem no exterior, e recebeu de volta US$ 12,9 bilhões.

Os financiamentos do BNDES para obras no exterior foram objeto de investigação da Operação Lava Jato. As empreiteiras brasileiras envolvidas no esquema de corrupção, como Odebrecht, Camargo Corrêa, OAS, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão, concentraram 98% dos recursos do banco para obras de engenharia no exterior, que totalizaram US$ 10,5 bilhões de 1998 a 2017.

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Há ceticismo ainda em relação aos critérios utilizados para a concessão do crédito e às garantias exigidas dos países em que as obras foram executadas. Para o Porto de Mariel, por exemplo, a única garantia de um financiamento de US$ 176 milhões para a Odebrecht iniciar a segunda etapa do projeto foi a receita gerada pela indústria de charutos cubanos. A condição foi firmada em 2010, e apenas uma parte do financiamento foi paga.

Outra crítica era direcionada à transparência dos contratos. Em 2012, o então MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior), ao qual o BNDES era subordinado, classificou como “secretos” os contratos de financiamento à exportação de bens e serviços de engenharia para Cuba e Angola sob o argumento de que continham informações estratégicas. A classificação foi derrubada pelo órgão em 2015, quando os contratos foram abertos pelo banco. Atualmente, o BNDES disponibiliza todos os contratos por meio de seu site oficial.

O BNDES afirma que novas regras podem ser aplicadas em novos projetos para evitar inadimplências.

“No momento, as operações de financiamento à exportação de serviços feitas pelo BNDES estão sob análise de diversas autoridades legais. O BNDES ativamente colabora com apurações no TCU (Tribunal de Contas da União), na CGU (Controladoria-Geral da União) e CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito) realizadas no Congresso Nacional”, diz o banco.

Aloizio Mercadante toma posse na presidência do BNDES com Lula e Alckmin no Rio de Janeiro
Posse. Aloizio Mercadante toma posse na presidência do BNDES com Lula e Alckmin no Rio de Janeiro nesta segunda-feira (6). Crédito: Tomaz Silva / Agência Brasil.

Em 2018, a PGR (Procuradoria-Geral da República) denunciou membros do PT, como o presidente Lula e a ex-presidente Dilma Rousseff por crimes como organização criminosa relacionada ao uso da Petrobras e do BNDES para arrecadação de propina. No ano seguinte, todos foram absolvidos pela Justiça Federal do Distrito Federal.

Em 2021, a Justiça Federal do DF também encerrou uma ação apresentada em 2016 pelo MPF (Ministério Público Federal), que investigava se o ex-presidente Lula atuou no BNDES para liberar o financiamento de obras da Odebrecht em Angola. Ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos, a empreiteira afirmou que, de 2001 a 2016, fez US$ 788 milhões em pagamentos ilegais em 12 países, incluindo o Brasil. Segundo o documento do acordo entre a empresa e o governo americano, as propinas teriam sido pagas em troca de benefícios à construtora em pelo menos cem projetos e obras públicas.

Referências:

1. G1
2. BNDES (Fontes 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7)
3. O Globo
4. Tesouro Nacional
5. Tesouro Transparente
6. O Estado de S.Paulo
7. BBC Brasil
8. CNN Brasil
9. Folha de Pernambuco
10. Agência Brasil
11. Poder 360

*Colaborou Amanda Ribeiro

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