Dez anos após a implementação do PNE 2014 (Plano Nacional de Educação), que prevê a universalização do ensino básico para estudantes com deficiência, metade das escolas municipais das capitais não possui recursos de acessibilidade básicos, como rampas e corrimãos. Os dados são do Censo Escolar de 2023 e mostram problemas que afetam diretamente os 151 mil alunos matriculados na educação especial das redes municipais dos principais centros urbanos do país.
As metas de 2014 deveriam ser cumpridas até o fim deste ano. Os indicadores de acessibilidade constam também entre as 18 metas do novo PNE, enviado ao Congresso pelo presidente Lula (PT) no último dia 26. O documento, que terá validade de dez anos, cita a necessidade de garantir a diversidade e a inclusão no ensino.
Para além das barreiras físicas que impedem os alunos com deficiência de se integrarem ao ambiente escolar, o censo também mostra que as escolas municipais sofrem com a escassez de professores com formação especializada e de psicólogos e assistentes sociais, importantes para garantir o bem-estar e a segurança de crianças e adolescentes dentro e fora da sala de aula.
A três meses das eleições municipais, Aos Fatos usa os dados para traçar, com o auxílio de especialistas, um panorama sobre os desafios dos futuros prefeitos das capitais para garantir a acessibilidade e a inclusão nas escolas.
Infraestrutura e recursos para comunicação
A meta 4.6 do PNE em vigor determina que as instituições públicas de ensino devem garantir “o acesso e a permanência dos alunos com deficiência por meio da adequação arquitetônica, da oferta de transporte acessível e da disponibilização de material didático próprio e de recursos de tecnologia assistiva”.
No entanto, de acordo com o Censo Escolar, a maioria das escolas da rede municipal das capitais não tem condições mínimas de acesso para alunos e profissionais com deficiência:
- As rampas para circulação de pessoas com restrições de mobilidade não estão disponíveis em 47,4% das escolas. São Paulo, Rio de Janeiro e Maceió ocupam as últimas posições, com 41,8%, 38,6% e 32,4% das instituições equipadas com o recurso, respectivamente;
- A presença de corrimãos é ainda mais escassa: só 37,8 % têm esse recurso. Goiânia, capital mais bem avaliada nesse quesito, tem cerca de três quartos das instituições (68,7%) equipadas com barras de apoio; Boa Vista está na pior situação (7,4%);
- Outro problema é a ausência de banheiros adaptados. Apesar de o decreto nº 5.296 determinar que prédios públicos devem ter ao menos um sanitário especial por pavimento, 32% das escolas das capitais não possuem esse tipo de espaço.
Karolyne Ferreira, porta-voz do Instituto Rodrigo Mendes, organização sem fins lucrativos que atua para garantir a educação inclusiva, afirmou ao Aos Fatos que a implantação de recursos de acessibilidade na arquitetura das escolas não garante apenas a inclusão de alunos com deficiência. “A acessibilidade é um direito de todos, desde o professor mais idoso que usa bengala ao cadeirante ou às profissionais que ficam grávidas”, disse.
Ferreira ressaltou, no entanto, que questões burocráticas podem se tornar um impeditivo na criação de espaços acessíveis. O fato de muitas escolas funcionarem em edifícios alugados, por exemplo, dificulta a realização de reformas
Esses obstáculos também se aplicam à instalação de outros recursos estruturais que garantem a inclusão de alunos e profissionais de educação com deficiência auditiva ou visual:
- O piso tátil, que usa linhas-guia e pontos de alerta para ajudar pessoas com deficiência visual a se localizarem, não está disponível em 85,8% das escolas municipais das capitais;
- Ainda mais raros são os espaços com alguma forma de sinalização tátil — como informações em Braille, por exemplo. Ainda que seja a capital mais bem equipada nesse quesito, Aracaju tem apenas 21,5% das escolas com o recurso;
- Por fim, quase nenhuma das escolas possui itens de sinalização visual, como placas que orientam sobre a existência de janelas ou vãos (disponíveis em 7,9% dos casos), e sinais sonoros para orientação e segurança (presentes em 1,8% dos casos).
Um dos responsáveis por repassar às escolas públicas recursos que podem ser aplicados na instalação de itens de acessibilidade, o Ministério da Educação afirmou ao Aos Fatos que tem criado iniciativas para fortalecer a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, criada em 2008, que teve R$ 3 bilhões em recursos prometidos pelo governo até 2026.
A pasta mencionou ainda que o novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) prevê dinheiro para obras em creches, escolas e quadras de esporte, “tendo como princípio a garantia da acessibilidade arquitetônica”. O recebimento dos recursos depende do envio de projetos pelos estados e municípios.
Formação especializada
De acordo com o item 4.13 do PNE 2014, uma das metas do poder público para garantir a universalização do ensino básico a crianças e adolescentes com deficiência é:
“Apoiar a ampliação das equipes de profissionais da educação para atender à demanda do processo de escolarização dos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, garantindo a oferta de professores do atendimento educacional especializado, profissionais de apoio ou auxiliares, tradutores e intérpretes de Libras, guias-intérpretes para surdos-cegos, professores de Libras, prioritariamente surdos, e professores bilíngues.”
Até 2023, no entanto, apenas 6,1% dos professores brasileiros tinham alguma formação continuada em educação especial, de acordo com levantamento do Instituto Rodrigo Mendes. Nas capitais, apenas três das 26 cidades têm mais de 10% dos docentes da rede municipal nessa situação: Vitória (19,2%), Rio Branco (14%) e Boa Vista (13,4%). Em outras 17 capitais, a taxa não chega a 5%.
O objetivo da formação continuada na educação especial é desenvolver práticas pedagógicas que garantam o apoio à aprendizagem de alunos com deficiência, transtorno de espectro autista e altas habilidades ou superdotação. Essa formação é prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e exige, no mínimo, 80 horas, de acordo com o MEC (Ministério da Educação).
Karolyne Ferreira explica, no entanto, que a necessidade de formação não se aplica apenas aos professores. “É importante que isso chegue aos gestores, técnicos e ao próprio conjunto da gestão pública. No momento em que você autoriza a construção de um prédio escolar sem itens de acessibilidade, isso diz muito sobre quem projetou, quem assinou e destinou o recurso.”
Atuação de psicólogos e assistentes sociais
Essenciais na escuta e na inclusão de crianças e adolescentes com deficiência na sala de aula, os psicólogos e assistentes sociais não estão presentes em ao menos 95% das escolas municipais das capitais brasileiras. A lei 13.935/2019 determina que todas as instituições de ensino da rede básica devem contar com esses profissionais.
O papel do psicólogo escolar é ajudar a construir um ambiente acolhedor aos alunos, entendendo “os atravessamentos sociais, políticos, econômicos, de raça e de gênero”, explicou ao Aos Fatos a psicóloga, pedagoga e professora adjunta da Uerj Giuliana Mordente. O profissional também atua na formação de professores e no atendimento às famílias.
Outro braço auxiliar da rede de proteção, o assistente social promove a escuta especializada para garantir o acesso e a permanência dos estudantes no ambiente escolar. Sua ausência pode tornar mais difícil a identificação de casos de violência doméstica ou abuso sexual, por exemplo.
- Na região Sudeste, nenhuma escola registrou a presença de psicólogos em seu quadro profissional e apenas 0,06% disseram ter assistentes sociais;
- O Centro-Oeste ocupa a dianteira entre as regiões com mais profissionais de saúde mental — eles estão presentes em 14,9% das instituições de ensino municipais das capitais. Há, no entanto, apenas 1,2% das escolas com assistentes sociais;
- A região com mais assistentes sociais é o Nordeste, que conta com esse tipo de profissional em 6,5% das escolas. Há psicólogos em 7% das instituições.
Especialistas apontaram ao Aos Fatos que a atuação de psicólogos e assistentes sociais nas escolas também é dificultada pelas condições de trabalho, que envolvem múltiplas jornadas em dezenas de instituições. “Isso precariza o trabalho, como se a gente pudesse atuar indo uma vez por mês ou uma vez a cada três meses em uma escola. O trabalho de psicologia é comprometido com a seriedade, com a saúde mental e demanda tempo, presença e escuta”, destaca Giuliana Mordente.
Rede de proteção. A atuação de psicólogos e assistentes sociais também pode ajudar a evitar problemas na dinâmica escolar, como o bullying, além de permitir a identificação e o combate a casos de abuso fora da escola. A Lei da Escuta Especializada (13.431/2017) trata da necessidade de profissionais dedicados a identificar situações de violência e evitar o processo de revitimização.
“A escola é o espaço de proteção de crianças e adolescentes. É onde eles têm maior vínculo de confiança. A escola precisa estar preparada para lidar com relatos de violência doméstica e ter um profissional para exercer a escuta, que tem conhecimento sobre a rede e vai auxiliar no encaminhamento e proteção desta criança ou adolescente”, explicou ao Aos Fatos Talita Lahr, psicóloga e membro do Gepem (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral).
Lahr é coautora do relatório “Ataques de violência extrema em escolas no Brasil”, publicado em 2023, que traz recomendações para tentar prevenir atentados. Uma das orientações é justamente investir em uma rede de atendimento psicossocial. Segundo ela, cabe ao psicólogo e ao assistente social auxiliarem professores a identificar sinais de reclusão, isolamento e comportamento agressivo em sala de aula.
Outro lado
Aos Fatos procurou as secretarias municipais de Educação do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Maceió, de Boa Vista e de Aracaju, que tiveram seus dados sobre acessibilidade citados na reportagem.
A Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro respondeu, em nota, que vem atuando de maneira contínua para tornar os espaços escolares mais acessíveis e que as novas unidades têm sido construídas com total acessibilidade. “Hoje, 936 escolas da rede possuem rampa de acesso na unidade escolar. As escolas recebem ainda recursos descentralizados para adquirir e instalar equipamentos de acessibilidade”.
Já a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo afirmou que tem trabalhado em parceria com outros órgãos da prefeitura para construir e reformar mais de 800 unidades escolares, com adaptações que também visam garantir a acessibilidade.
As secretarias de Maceió, Boa Vista e Aracaju não responderam até a data de publicação desta reportagem. O texto será atualizado em caso de retorno.
O caminho da apuração
O ponto de partida foi a análise dos microdados do Censo Escolar da Educação Básica 2023. O recorte escolhido para análise foram as 26 capitais, que concentram 20% da população e apresentam mais dados disponíveis.
A análise considerou apenas as escolas em atividade que estão sob responsabilidade dos municípios e responderam ao questionário do censo. Para debater os resultados e apontar possíveis soluções, foram entrevistados especialistas em educação inclusiva e psicologia escolar.