Entidades ultraconservadoras que atuam no lobby contra o aborto legal estão reforçando a campanha de combate à regulação das plataformas digitais no Congresso, sob a bandeira de uma suposta defesa da liberdade de expressão.
O Instituto Isabel, uma dessas organizações antiaborto, foi convidado a discursar na instalação da Frente Parlamentar em Defesa da Liberdade de Expressão, no último dia 4, que reúne deputados de direita e promete monitorar iniciativas do Legislativo relacionadas à agenda digital.
“Para que possamos defender a vida, para que possamos defender a família e a dignidade humana, nós precisamos, em um primeiro momento, ter o direito à liberdade de expressão”, afirmou Mateus Massilon, que no LinkedIn se apresenta como auxiliar executivo terceirizado do Instituto Isabel desde setembro.
Massilon usou sua intervenção para atacar o julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet, em curso no STF (Supremo Tribunal Federal), alegando que o tema já foi “pacificado” pela Câmara — em alusão aos sucessivos adiamentos da votação do “PL das Fake News” (PL 2.630/2020).
“Todas as vezes que foi entregue a esta Casa para discussão, a Casa se manifestou sempre de forma muito uníssona contra a censura. Não cabe discutir dizendo que há uma ausência por parte desta Câmara para legislar a respeito da questão da liberdade de expressão”, afirmou.
A alegação repete o argumento falacioso de que a proposta de regulação das plataformas vai censurar as redes — a última versão do texto buscava aumentar a responsabilidade das big techs na moderação de conteúdo já considerado criminoso pela legislação, como conteúdo de abuso sexual infantil.
Batizado com a razão social Instituto Princesa Isabel, a organização de lobby conservador só registrou um CNPJ duas semanas antes de participar do lançamento da nova frente parlamentar, segundo dados da Receita Federal.
A entidade, porém, já vinha ganhando espaço no Congresso desde o primeiro semestre, promovendo uma campanha contra o aborto legal.
Em junho, a presidente da entidade, Andrea Hoffmann Formiga, compareceu à audiência no Senado que discutiu a proibição, pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), da realização de assistolia fetal para interromper gestações com mais de 22 semanas.
Na ocasião, a ativista conservadora chegou a embalar a réplica de um feto para defender a resolução do CFM — que, na prática, inviabilizava a realização do aborto em casos previstos por lei, como de gravidez decorrente de estupro.
Articulação internacional
A retórica que associa a regulação das redes à “censura” foi impulsionada pelas próprias plataformas durante a tramitação do PL 2.630/2020 e é considerada uma das principais causas do naufrágio do projeto. Desde então, passou a ser evocada nas redes para tentar barrar outras discussões da pauta digital, como a regulação de inteligência artificial.
O movimento ganhou força em abril, com o embate entre Elon Musk e o ministro Alexandre de Moraes, e atingiu seu ápice no final de agosto, com a suspensão do X no Brasil por determinação do STF.
Amplificada por uma articulação entre ativistas norte-americanos e extremistas brasileiros investigados pelo Supremo, a afirmação de que o Brasil vive um regime autoritário, no qual a liberdade de expressão estaria sob ameaça, foi usada pela campanha de Donald Trump para atacar os democratas, como o Aos Fatos mostrou.
A campanha global de ataques ao Brasil contou com a participação da ADF International, braço global da organização fundamentalista norte-americana Alliance Defending Freedom (Aliança de Defesa da Liberdade, em português) — outra expoente do movimento antiaborto.
A entidade, que tem sede na Áustria, coletou assinaturas contra o banimento da plataforma de Musk pelo STF e entrou com ação contra o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo mesmo motivo.
Considerado um dos grupos de pressão mais influentes dos Estados Unidos, a ADF se aproximou do Brasil no governo passado, por meio do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, na época comandado pela agora senadora Damares Alves (Republicanos-DF).
Com a derrota de Jair Bolsonaro (PL) nas eleições de 2022, o foco da articulação passou para o Congresso. No ano passado, representantes da entidade estiveram em Brasília, onde tiveram encontro com parlamentares como Marcel van Hattem (Novo-RS).
Uma foto da visita aparece no LinkedIn da hoje presidente do Instituto Isabel, organização que se diz parceira da ADF International. No Instagram, o instituto compartilhou iniciativas da entidade estrangeira ao longo do ano.
“A defesa da liberdade de expressão é um dos pilares do Instituto Isabel, por isso assinamos a carta aberta da ADF International, entidade internacional parceira. Diante da urgência em combater a censura, convidamos vocês para se unirem conosco nessa causa e assinarem também”, postou a organização de lobby em setembro.
Em novembro, a ADF International compareceu, com parlamentares brasileiros, a uma reunião com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na sede da Organização dos Estados Americanos, em Washington. Segundo van Hattem, o encontro teve como objetivo “expor os abusos de autoridade e as perseguições políticas promovidos pelo governo Lula”, pela Polícia Federal e pelo STF. Também participaram o senador Eduardo Girão (Novo-CE) e a deputada federal Bia Kicis (PL-DF).
Procurado pelo Aos Fatos, o Instituto Isabel afirmou, em nota, que atua “na defesa de cinco princípios básicos constitucionais que se relacionam à dignidade humana”, entre eles a liberdade de expressão e a defesa da vida desde a concepção, o que torna “natural” sua presença na discussão.
A entidade também declarou que “diversos problemas vêm sendo apontados no projeto das ‘fake news’ não apenas pelo instituto, mas também por diversos especialistas desde o início da tramitação”. A ADF International não respondeu ao pedido de posicionamento.
O caminho da apuração
Aos Fatos assistiu à transmissão da cerimônia de instalação da Frente Parlamentar em Defesa da Liberdade de Expressão no YouTube e buscou mais informações sobre os oradores que participaram do evento através de fontes abertas, como reportagens, redes sociais e a base de dados da Receita Federal.
A reportagem também procurou as organizações citadas na reportagem para pedir seu posicionamento.