A política monetária conduzida pelo BC (Banco Central) entrou na mira do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas últimas semanas. Em entrevistas e discursos, o mandatário disse que a taxa básica de juros, a Selic, em 13,75% era uma “vergonha” e que o atual patamar seria incompatível com as necessidades de crescimento do Brasil.
As críticas do presidente refletem a insatisfação e a desconfiança do novo governo com o atual presidente do BC, Roberto Campos Neto, que foi indicado por Jair Bolsonaro (PL) e é tido como próximo do ex-presidente. O maior empecilho para a troca do comando, porém, é a autonomia do banco, garantida por lei que vigorou em 2021 e que prevê mandatos para a diretoria que não coincidem com os do governo.
A seguir, Aos Fatos responde a três perguntas essenciais para entender as relações entre a autonomia do BC, a definição da Selic e as críticas de Lula à condução da política monetária.
O que mudou com a autonomia do Banco Central?
Antes de fevereiro de 2021, quando entrou em vigor a lei que estabeleceu a autonomia do BC (Banco Central), não havia limite de tempo para que o presidente da instituição, que tinha status de ministro, permanecesse no cargo. O mesmo ocorria com os diretores. O presidente da República tinha poder, inclusive, para demitir toda a diretoria sem consultar o Congresso.
A presidência do BC sempre foi vista como mais um cargo de confiança do governo e acompanhava os mandatos presidenciais. Entre os governos após a redemocratização, por exemplo, Armínio Fraga esteve à frente do banco entre 1999 e 2003, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Henrique Meirelles chefiou o BC por oito anos, nos dois primeiros mandatos de Lula. Já Alexandre Tombini presidiu a instituição ao longo do período em que Dilma Rousseff (PT) esteve no poder.
Com a aprovação da lei, o BC passou a ser uma autarquia de natureza especial, sendo que os presidentes e diretores passaram a ter mandatos de quatro anos e escalonados.
Porém, o atual presidente do banco, Roberto Campos Neto, havia sido indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em 2019, no modelo anterior. Com a nova lei, ele ganhou direito a um mandato até dezembro de 2024 e só pode ser exonerado a pedido dele mesmo ou caso algo grave aconteça, como condenação definitiva por improbidade administrativa.
O presidente do banco pode ser destituído ainda quando apresentar “comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos” da instituição, segundo a lei. Neste caso, entretanto, cabe ao CMN (Conselho Monetário Nacional), composto por ministro da Fazenda, presidente do BC e secretário especial de Fazenda, propôr ao presidente da República a exoneração. Essa proposta fica condicionada à prévia aprovação, por maioria absoluta, do Senado.
A autonomia prevista em lei, no entanto, não isenta o BC de responsabilidades. O banco presta contas ao Congresso a cada seis meses e os indicados à presidência e diretoria são sabatinados. A lei também estabelece que o BC tem o “objetivo fundamental de assegurar a estabilidade de preços” e, sem prejuízo desse objetivo, “suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego.”
Ao ser questionado se o BC criaria metas para emprego e a atividade econômica, em dezembro de 2021, Campos Neto, disse que isso não seria feito, pois seriam objetivos secundários à tarefa principal de controle da inflação. Em setembro, durante a campanha presidencial, Lula sugeriu que o BC criasse uma meta de crescimento econômico e de emprego.
O que é A Selic e qual o seu impacto na inflação?
A Selic é a taxa básica de juros da economia brasileira, que norteia as operações de crédito do país. Hoje fixada em 13,75% ao ano, ela é usada como referência para a definição dos juros cobrados pelas instituições financeiras e é também o principal instrumento do BC para o controle da inflação.
O índice é definido pelo Copom (Comitê de Política Econômica), órgão do BC que se reúne a cada 45 dias. Além de decidir eventuais alterações na taxa, o Copom estabelece as diretrizes da política monetária para cumprir as metas para a inflação, definidas pelo CMN.
Eventuais mudanças na Selic se refletem nos padrões de consumo e ajudam a regular o mercado. Quando a taxa cai, por exemplo, os bancos tendem a abaixar os juros, e o crédito se torna mais acessível. Como consequência, a inflação tende a subir, porque o consumo maior eleva os preços em razão da oferta e da procura. Em contrapartida, quando a taxa aumenta, a obtenção de crédito se torna mais cara e o consumo tende a cair, o que pode ajudar a reduzir a inflação.
O crédito mais caro também faz com que as empresas diminuam investimentos, o que pode resultar em menos contratações ou demissões, e desacelera a economia ao reduzir demandas da cadeia produtiva.
“A dinâmica seria mais ou menos assim: um aumento nos juros leva a uma redução de investimentos e de consumo por parte dos agentes econômicos: empresas e famílias. Essa redução do consumo e dos investimentos fixos levam a uma redução do PIB, que por sua vez, contribui para a redução da inflação”, explicou Vilma Pinto, diretora da IFI (Instituição Fiscal Independente), vinculada ao Senado.
A Selic tem influência sobre o dólar, porque ela baliza a remuneração dos investidores estrangeiros no país. “Uma taxa mais alta atrai investimentos no Brasil, o que colabora para a valorização do real e, portanto, um menor custo para importar produtos, o que tende a reduzir a inflação”, explica Paulo Gala, professor de economia da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
A taxa de juros de outros países e conflitos internacionais também impactam a Selic. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia, por exemplo, provocou uma disparada no preço do trigo no mercado mundial, o que fez aumentar a inflação. Os bancos centrais pelo mundo, então, subiram suas taxas básicas de juros, o que foi seguido pelo Brasil, para controlar a subida dos preços.
Já quando por algum motivo os EUA aumentam sua taxa de juros, o Brasil também tende a aumentar a Selic para evitar a fuga de capitais, pois o mercado americano é mais atrativo que o nacional por causa do dólar.
“A nossa taxa básica é bem maior do que a deles [EUA]. Só que eles tem uma moeda chamada dólar. Tem uma moeda muito muito mais forte e muito mais credibilidade do que o real. Então, entre ganhar 5% em dólar ou 13% em reais, as pessoas podem preferir ganhar 5% em dólar”, diz Gala.
Qual o contexto das críticas de Lula ao BC?
Apesar de ter criticado a política de controle de inflação do BC ainda durante a campanha, Lula subiu o tom contra a instituição a partir de 18 de janeiro, quando deu a primeira entrevista como presidente da República. Na ocasião, ele afirmou à GloboNews que a lei que garantiu a autonomia do banco seria uma “bobagem”, e que a forma como a política de controle da inflação vinha sendo conduzida obrigava o governo a “arrochar” demais a economia.
Os ataques se intensificaram com a divulgação de um comunicado do Copom em 1º de fevereiro, que manteve a taxa de juros em 13,75% e não mencionou as medidas fiscais anunciadas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Na nota, inclusive, o comitê sinaliza que poderia aumentar ainda mais a Selic.
Em entrevista à RedeTV! no dia seguinte, Lula afirmou que o BC queria instituir no país uma inflação de “padrão europeu”, que seria incompatível com a realidade do país, e disse que iria esperar Campos Neto terminar seu mandato para avaliar o “que significou o Banco Central independente”.
No discurso de posse de Aloizio Mercadante na presidência do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) na segunda-feira (6), Lula disse que a atual taxa de juros era uma "vergonha". Segundo ele, o país teria “cultura” de juros altos que não combina com as necessidades de crescimento.
Nem mesmo a ata do Copom divulgada na terça (7), e classificada como “amigável” pelo ministro Fernando Haddad por considerar o impacto positivo das medidas fiscais anunciadas pelo governo, fez arrefecer as críticas do presidente. Em reunião com políticos aliados na quarta (8), Lula disse que o governo “tem direito de estabelecer sua política econômica”.
Enquanto o presidente sobe o tom, membros do governo tentam colocar panos quentes. O secretário de Política Econômica, Guilherme Mello, disse em 31 de janeiro que a ampliação da meta da inflação não estava nos planos do governo. Já o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, afirmou que não há qualquer discussão sobre a mudança na lei que deu autonomia ao BC.
Principal alvo das críticas de Lula, Roberto Campos Neto foi escolhido por Jair Bolsonaro em 2019 e tem mandato previsto até 2024. O atual presidente do BC é considerado próximo de membros do antigo governo, pois já participou de churrascos promovidos pelo ex-presidente e integrava um grupo no WhatsApp com ex-ministros. Essa proximidade também gera desconfiança por parte da gestão Lula.
Nas poucas declarações públicas dadas sobre o tema, Campos Neto limitou-se a defender a autonomia do banco.
Nesta quarta-feira (8), o diretor de política monetária do BC, Bruno Serra Fernandes, disse que a autoridade monetária não era uma instituição de governo, mas de Estado e que evitar um ajuste monetário traria custos à economia. Ele mencionou ainda o caso da Turquia, que passou a ter inflação alta e desvalorização da moeda após diminuir os juros em meio a um ciclo inflacionário mundial.