O Congresso retomou, em audiência pública realizada em 27 de maio, a discussão sobre a chamada PEC das Praias, como ficou conhecida uma proposta de emenda constitucional que permite que a União ceda a entes privados terrenos situados a poucos metros do mar. Aprovado pela Câmara em 2022, o projeto recebeu parecer favorável do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e gerou uma disputa no Congresso e nas redes.
- Defensores da proposta alegam que a mudança permitiria a regularização de áreas já ocupadas pela população;
- Críticos — inclusive o governo — argumentam que permitir que os terrenos à beira-mar sejam transformados em áreas particulares poderia prejudicar a preservação dos biomas e dificultar o acesso do público a zonas litorâneas.
O projeto tem sido chamado nas redes de uma licença para a “privatização das praias”, em uma polêmica que mobilizou famosos como o jogador Neymar e a atriz Luana Piovani.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), anunciou na última segunda-feira (3) que não há pressa em pautar o projeto, e o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT), já avisou que o governo irá trabalhar para derrotar a proposta.
Aos Fatos consultou a legislação, documentos e advogados para explicar, em quatro pontos, qual é a proposta da PEC, quais são os argumentos de seus críticos e defensores e se o projeto pode, de fato, levar à privatização das praias brasileiras.
- O que muda com a PEC das Praias?
- O projeto realmente pode privatizar as praias brasileiras?
- O que dizem os críticos da proposta?
- E quais são os argumentos dos defensores da PEC?
1. O QUE MUDA COM A PEC DAS PRAIAS?
A PEC 3/2022 propõe alterar a Constituição para retirar da lista de bens exclusivos da União os chamados terrenos de marinha — faixas que vão do ponto médio da maré alta até uma largura de 33 metros em direção ao continente. O objetivo é permitir a transferência total desse tipo de terreno para estados, municípios e pessoas físicas e jurídicas.
Terreno de marinha. Região afetada pela PEC abrange, em teoria, áreas situadas depois da faixa de areia (MGI).
O texto determina que a cessão de terrenos ocupados por outras esferas do poder público ou por habitações de interesse social seria gratuita, enquanto a compra por particulares ocorreria mediante pagamento. Continuariam pertencendo à União áreas ligadas ao serviço público federal, unidades ambientais federais e zonas não ocupadas.
Apesar de pertencerem à União, muitos terrenos de marinha, na prática, já são ocupados por civis ou empresas privadas em diversos regimes de uso. De acordo com o Ministério da Gestão, Inovação e Serviços Públicos, por exemplo, 151 mil (26%) dos 568 mil terrenos de marinha estão cedidos a pessoas físicas e jurídicas em regime de aforamento — modelo em que a União atribui a terceiros o domínio de um imóvel de sua propriedade.
Mesmo os que possuem imóveis nesse regime não são considerados donos do terreno — a divisão é de 83% para o proprietário e 17% para a União. Há, por isso, a obrigação de pagar as seguintes taxas:
- Foro: pensão anual equivalente a 0,6% do valor total do terreno;
- Laudêmio: pago em caso de transferência do terreno e equivale a 5% do valor total da área, excluídas as benfeitorias realizadas.
Caso aprovada, a PEC permitiria a cessão total dos terrenos e extinguiria as taxas.
O texto foi apresentado em 2011 pelo ex-deputado federal Arnaldo Jordy (Cidadania-PA) e aprovado em dois turnos pela Câmara em 2022, durante o governo Bolsonaro. Relatada na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado por Flávio Bolsonaro, a proposta recebeu parecer favorável para aprovação e ainda deve passar por comissões da Casa antes de seguir para o plenário.
A norma que rege atualmente os terrenos de marinha é o decreto-lei nº 9.760, de 1946. As regras sobre ocupação das regiões, no entanto, remontam ao período colonial. De acordo com o Senado, as diretrizes sobre posse e ocupação das áreas têm sido discutidas desde 1710 por motivos como interesses econômicos e a necessidade de garantir a segurança nacional frente a invasões por mar.
2. O PROJETO REALMENTE PODE PRIVATIZAR AS PRAIAS BRASILEIRAS?
Com o texto atual, não. Como dito anteriormente, a proposta determina apenas que as zonas conhecidas como terrenos de marinha podem ter outros donos que não apenas a União. Porém, mesmo com a mudança proposta na PEC, o artigo 20 da Constituição continua determinando que as praias marítimas e o mar são bens do poder público federal.
Há, no entanto, receio de que o projeto acabe permitindo que os proprietários desses terrenos de marinha restrinjam o acesso à praia. Um exemplo seriam os locais em que banhistas só conseguem alcançar a faixa de areia caso atravessem um terreno privado.
“A PEC em si, com essa coisa de terminar a figura dos terrenos de marinha, ela não vai automaticamente privatizar praias, tá? Mas a questão é o acesso às praias, aí sim que podem ser privatizadas, porque na hora que esses terrenos todos que ficam adjacentes às praias forem privatizados, você começa a ter uma privatização do acesso às praias, que são bens comuns da sociedade brasileira” — Ana Paula Prates, diretora do Departamento de Oceano e Gestão Costeira do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, em entrevista à Rádio Nacional.
O advogado Antonio Carlos de Freitas Júnior, mestre em direito constitucional pela USP, argumenta que esse cenário continua sendo ilegal, com ou sem aprovação da PEC. Isso porque o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (lei nº 7.661/1988), que não é alterado pelo novo texto, institui que “as praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica”.
Freitas Júnior lembra ainda que o Código Civil prevê a criação de passagens em terrenos particulares que limitem o acesso à praia: “A praia continua tendo acesso público. Então, se no caso hipotético do acesso à praia ser garantido apenas por um resort, o resort vai ter que deixar uma passagem para não restringir o acesso público à praia.”
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3. O QUE DIZEM OS CRÍTICOS DA PROPOSTA?
Além do receio da PEC permitir a privatização das praias, ambientalistas e organizações da sociedade civil apontam que a venda desses terrenos pode aumentar a degradação ambiental de áreas de mangue e restinga, que funcionam como barreiras naturais contra desastres climáticos e ajudam a preservar o ecossistema marinho.
O governo também se posicionou contra a proposta em entrevista do ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, na última segunda-feira (3). O objetivo do Executivo é articular com o Congresso a derrubada do texto. “O governo é contrário a qualquer programa de privatização das praias públicas, que cerceiam o povo brasileiro de poder frequentar essas praias”, afirmou o ministro.
Durante a audiência pública realizada no Senado no dia 27 de maio, a secretária-adjunta da Gestão do Patrimônio da União, Carolina Stuchi, alegou ainda que o projeto também pode favorecer a ocupação desordenada de terrenos, o que ameaça o ecossistema e o torna mais propenso a eventos climáticos extremos, como erosões causadas por fortes chuvas.
No mesmo evento, governistas também acusaram a proposta de favorecer empresários e construtoras interessadas em adquirir e privatizar áreas litorâneas. Durante a audiência pública, o deputado Túlio Gadelha (Rede-PE) citou o nome do jogador Neymar, que fez propaganda de um empreendimento instalado pela incorporadora Due em praias do litoral de Pernambuco e de Alagoas.
A crítica contra o jogador foi amplificada nas redes pela atriz Luana Piovani: em vídeo, ela pediu que seus seguidores votassem contra a proposta na consulta pública do Senado. Entre os dias 26 de maio e 2 de junho, correntes com links para a votação foram compartilhadas mais de 380 vezes em grupos de WhatsApp monitorados pelo Radar Aos Fatos.
Neymar respondeu com ofensas à atriz nas redes, e, por meio de sua assessoria de imprensa, emitiu uma nota negando qualquer associação dos investimentos da Due — parceira comercial do jogador — com a PEC.
4. QUAIS SÃO OS ARGUMENTOS DOS DEFENSORES DA PEC?
O relator Flávio Bolsonaro argumenta que a proposta beneficiaria mais de 520 mil propriedades cadastradas pela SPU (Secretaria de Patrimônio da União) — e só no Rio de Janeiro, por exemplo, permitiria a transferência de 8.300 casas para moradores do Complexo da Maré e de comunidades quilombolas instaladas na restinga da Marambaia.
Defesa. Flávio Bolsonaro, relator do projeto na CCJ do Senado, defende que o projeto fortalece municípios, que conhecem mais a situação dos terrenos de marinha do que a União (Waldemir Barreto/Agência Senado)
A posição vai ao encontro da opinião do deputado Alceu Moreira (MDB-RS), que relatou o texto na Câmara: “Vamos liberar para as cidades pedaços de solo nobres, onde a população terá condições de fazer investimentos, desfrutar dessas áreas, integrar na situação urbana e transformar em áreas absolutamente lindas, é isso que nós vamos fazer com essa PEC”, declarou.
Na época em que o texto tramitou na Câmara, o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), classificou a proposta como um avanço, já que representaria o fim do laudêmio — cobrança que, segundo ele, é “subjetiva” — e uma forma de desburocratização.
Durante a audiência pública do fim de maio, senadores como Esperidião Amin (PP-SC) e Marcos Rogério (PL-RO) também defenderam a proposta e negaram que o texto permite a privatização das praias.