Um áudio apresentado durante uma propaganda eleitoral se tornou o centro de uma disputa judicial nas eleições para a Prefeitura de Palmas. Na gravação, que começou a circular no WhatsApp, uma voz atribuída à deputada estadual Janad Valcari (PL) fala de forma agressiva com uma funcionária, a quem chama de “idiota”.
Veiculada na TV em 23 de setembro pelo candidato Professor Júnior Geo (PSDB), o conteúdo se tornou alvo de ações da candidata do PL. A defesa de Janad Valcari alega que o conteúdo seria uma deepfake — mídia falsa gerada com inteligência artificial. O laudo apresentado por seu opositor, no entanto, diz o contrário.
O caso, que gerou reviravoltas na Justiça e mobilizou a equipe jurídica de três candidaturas, reflete as dificuldades de se atestar com segurança a autenticidade de áudios e os riscos que gravações manipuladas representam para o processo eleitoral.
Os primeiros pedidos de resposta de Janad foram rejeitados pela 29ª Zona Eleitoral de Palmas logo após a veiculação da propaganda, em 24 de setembro. Entretanto, a equipe jurídica da candidata apresentou outras ações, desta vez anexando como prova um depoimento em vídeo no qual a suposta funcionária maltratada sustenta que o diálogo era uma montagem.
Isso fez com que a Justiça Eleitoral alterasse seu entendimento e, dois dias depois das primeiras decisões, determinasse a suspensão da propaganda, por considerar que a autenticidade da gravação havia sido colocada em xeque pelo testemunho da colaboradora.

A defesa de Júnior Geo entrou então com um mandado de segurança no TRE-TO (Tribunal Regional Eleitoral do Tocantins) e conseguiu reverter a decisão provisória.
Na nova decisão, do dia 29 de setembro, o juiz plantonista Wagmar Roberto Silva considerou que, em que pese o testemunho da funcionária, Janad não havia produzido nenhuma “prova técnica sobre o áudio questionado a fim de demonstrar vícios, seja na perspectiva da manipulação, seja da descontextualização”.

Já a equipe de Júnior Geo havia juntado ao processo um laudo assinado pelo perito Leandro Manoel Franco Marquez, contratado pela campanha, que afirmava que a voz da gravação contestada era compatível com a da candidata a prefeita de Palmas.
O parecer havia sido produzido antes de o áudio ser veiculado na TV e não fazia menção a inteligência artificial.
A avaliação do perito se concentrou em questões como a adaptação dos sons às palavras, o ritmo e a entonação na fala da candidata.
O documento foi questionado pela equipe de Janad, que apresentou um segundo laudo em que o perito Cássio Thyone Almeida de Rosa afirma que o primeiro parecer “não apresenta os requisitos técnico-periciais mínimos” para concluir que a voz era da candidata, “devendo ser desconsiderado”.
A análise, entretanto, também não traz elementos para comprovar se a gravação teria ou não sido feita por inteligência artificial.

“A obrigação de provar que há adulteração é de quem alega que houve adulteração”, afirmou ao Aos Fatos a advogada Aline Ranielle, que participou da equipe jurídica de Júnior Geo. “Não há prova, feita pela candidata, de que esse conteúdo foi manipulado ou que houve a edição de forma a tirar do contexto”, explica.
Júnior Geo não passou para o segundo turno — o primeiro na história de Palmas —, mas a contenda em torno da autenticidade do áudio foi herdada por Eduardo Siqueira Campos (Podemos), que segue na disputa pela prefeitura ao lado da candidata do PL.
No dia 1º de outubro, Campos republicou a gravação em seu Instagram. “TRE confirma: voz humilhando funcionária é da Janad”, afirmou.

O post foi alvo de nova representação da campanha de Janad, agora contra o candidato do Podemos, mas a Justiça eleitoral negou a remoção do link, que segue no ar. Os casos ainda estão em tramitação.
Representante da campanha de Campos, o advogado Juvenal Klayber defende que a perícia que teria comprovado que a voz é de Janad seria suficiente para afastar a alegação do uso de IA. Entretanto, reconhece que, no que tange à tecnologia, “tudo é novo”.
“A tecnologia sempre está avante. Enquanto ela está progredindo no uso da inteligência, nós estamos engatinhando na comprovação”, avaliou o advogado ao Aos Fatos.
A reportagem também procurou a equipe jurídica da candidata do PL, que não comentou o caso até a publicação.
Outros episódios
Além da disputa em Palmas, Aline Ranielle também atuou em casos no interior do estado nos quais o desafio foi comprovar o uso de IA por adversários de seus clientes. Nesses processos, a advogada enfrentou dificuldades para derrubar deepfakes.
“Nós fizemos o trabalho de ir atrás da dancinha original, do vídeo original, representamos mostrando que foi colocado o rosto, que a resolução [do TSE] veda o uso de deepfake, e não foi reconhecido”, relata.
Lima lembra que, em um contexto em que muitos advogados têm dificuldades até em realizar buscas reversas de imagens na internet, obter provas técnicas contra montagens refinadas feitas por IA não está ao alcance de todos. “Obter suporte tecnológico era a nossa principal preocupação para essa eleição”, diz.
“Eu brinco muito que eu tenho uma saudade do muro pintado, do carro de som e do showmício, porque a gente conseguia fiscalizar. O poder econômico continua sendo utilizado [nas plataformas digitais], só que de uma forma que a gente não vê”, lamenta.
O caminho da apuração
Esta reportagem foi produzida com auxílio de inteligência artificial: foi criado um robô para fazer o download dos Diários da Justiça eletrônicos de todos os Tribunais Regionais Eleitorais, a partir de palavras-chave definidas previamente pelos jornalistas. O mecanismo extraiu o texto dos PDFs e identificou decisões que poderiam ter relação com a IA, informando a página em que se encontravam as palavras-chaves.
O levantamento permitiu identificar os processos de Palmas. Após acessar as decisões, notícias publicadas pela imprensa local e as redes sociais dos candidatos, Aos Fatos procurou os advogados que trabalham nas ações sobre o áudio para que comentassem o caso.