A divulgação de decisões sigilosas da Justiça brasileira sobre o X (ex-Twitter), na quarta-feira (17), gerou acusações contra o ministro Alexandre de Moraes, que teve suas ordens de remoção de conteúdo apontadas como ilegais por Jair Bolsonaro e seus apoiadores.
O argumento disseminado é que o ministro do Supremo Tribunal Federal teria desobedecido ao ordenamento jurídico por não apresentar justificativa para as ordens de bloqueio de posts e perfis — e que, portanto, as ordens configurariam censura.
Especialistas consultados pelo Aos Fatos, no entanto, afirmaram que os documentos não provam que as decisões de Moraes são ilegais. Isso porque não é necessário que ofícios emitidos durante a tramitação de uma ação judicial contenham a motivação do magistrado para a remoção de um conteúdo ou o bloqueio de um perfil, especialmente se a ação corre em sigilo.
Acácio Miranda, doutor em direito constitucional pelo IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), explicou ao Aos Fatos que há uma diferença entre a decisão, que resolve questões de um processo, e a determinação, que é uma ordem emitida para garantir o andamento do processo.
“Quando um juiz ou quando um ministro manda uma ordem para alguém, ele não precisa fundamentar esse mandado, porque o que está sujeito à fundamentação é a decisão que motivou a confecção ou a criação daquele mandado”, ele diz.
Ou seja: o que embasa o mandado é a decisão tomada previamente, cuja fundamentação já foi explicitada pelo magistrado. Segundo Miranda, portanto, as justificativas para o bloqueio de perfis ou a remoção de conteúdos não precisariam constar nos ofícios enviados ao X, que são ordens emitidas durante os processos.
Essa visão é corroborada pelo jurista Lenio Streck, que afirmou também não ver ilegalidade nas determinações para remoção de conteúdo. De acordo com ele, a discussão que se fez em volta do vazamento acabou por esconder o fato principal: que as ordens de remoção atingiam indivíduos que haviam atacado a democracia.
“O que está sendo apresentado são documentos ‘pela metade’. Ofícios e não propriamente decisões”, disse Streck à reportagem.
O posicionamento dos especialistas vai no mesmo sentido de um esclarecimento divulgado pelo STF. O tribunal afirmou que os documentos divulgados pela comissão do Congresso dos Estados Unidos não são decisões, mas “ofícios enviados às plataformas para cumprimento da decisão” — e que, por isso, não necessitam de fundamentação. “Todas as decisões tomadas pelo STF são fundamentadas, como prevê a Constituição, e as partes, as pessoas afetadas, têm acesso à fundamentação.”
“Fazendo uma comparação, para compreensão de todos, é como se tivessem divulgado o mandado de prisão (e não a decisão que fundamentou a prisão) ou o ofício para cumprimento do bloqueio de uma conta (e não a decisão que fundamentou o bloqueio)”, explicou o STF.
É possível verificar que os documentos que vieram à tona são de fato apenas partes de um processo maior no próprio site do STF. Para exemplificar, Aos Fatos selecionou o primeiro ofício, referente à petição 10.851 (veja a linha do tempo abaixo):
- O ofício compartilhado pelo X com o Congresso americano foi protocolado em 19 de janeiro de 2023;
- A petição, no entanto, foi iniciada no dia 16 daquele mesmo mês e remetida à PGR (Procuradoria-Geral da República) no dia 17;
- Também há registro de que o relator do caso, o ministro Alexandre de Moraes, publicou uma decisão um dia antes de enviar a ordem ao X (18 de janeiro).
O advogado criminalista André Galvão também refutou o argumento de que as determinações seriam uma tentativa de censura. Segundo ele, todos os documentos anexados que realmente limitavam de alguma maneira a liberdade de expressão de usuários eram fundamentados por pressupostos legais. “Foram bloqueados perfis que alegavam fraude no processo eleitoral, que clamavam por intervenção militar e que incitavam a população a praticar crimes diversos, até mesmo contra a integridade de ministros”, afirma.
DOCUMENTOS EM NÚMEROS
Os documentos divulgados pelo Comitê de Assuntos Judiciários da Câmara dos Estados Unidos foram requisitados pelo órgão ao X em meio a uma investigação sobre colaborações entre o governo de Joe Biden e as plataformas digitais para remoção de conteúdos online.
Nem todos os ofícios são pedidos de remoção de conteúdo, ao contrário do que sugerem algumas publicações. Dos 86 documentos, 10 determinam a reativação de contas ou a suspensão de restrições sobre posts que haviam sido bloqueados por ordem anterior.
As ordens foram expedidas entre agosto de 2021 e novembro de 2023 pelo STF, pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e pelos tribunais eleitorais de Rondônia e Mato Grosso. Além do X, plataformas como Facebook, Instagram, TikTok, YouTube e Kwai também foram afetadas pelas decisões.
Ao todo, o comitê divulgou 86 documentos:
- A maioria (58) foi assinada por Moraes — 47 como ministro do STF e 11 como presidente do TSE;
- Outros 23 foram assinados pelo então juiz auxiliar da Presidência do TSE Marco Antonio Martin Vargas. Todos os documentos foram emitidos após Moraes assumir a presidência da corte eleitoral, em agosto de 2022;
- 75 ofícios constam em processos confidenciais (73 sigilosos e 2 sob segredo de Justiça) e 9, em casos públicos;
- Entre os pedidos, 41 — todos originados de decisões do STF — não apresentam no próprio documento a justificativa. Como explicado anteriormente, não é obrigatório que tal motivação conste do documento, porque se trata de mandados para execução de ordens judiciais;
- Os outros, que detalharam as motivações, são originários do TSE e dos TREs. Eles determinavam o bloqueio ou a remoção de perfis ou conteúdos que lançavam dúvidas sobre o sistema de votação. Um dos principais conteúdos de desinformação derrubados é a live do argentino Fernando Cerimedo, que divulgou um relatório com informações falsas para alegar que as eleições haviam sido fraudadas.