Valter Campanato/Abr

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Dezembro de 2018. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Desvendamos as notícias falsas de Damares Alves contra a ‘ideologia de gênero’

Por Ana Rita Cunha

19 de dezembro de 2018, 19h24

A futura ministra de Mulheres, Família e Direitos Humanos do governo Bolsonaro, Damares Alves, já propagou uma série de informações falsas e distorcidas em sua cruzada retórica contra a ‘ideologia de gênero’. Ao analisar 18 vídeos de palestras, entrevistas e apresentações disponíveis no YouTube, Aos Fatos pôde constatar que, de 2013 até hoje, o tema foi ganhando espaço até se tornar o principal assunto abordado pela pastora e advogada nas gravações.

No vídeos, Damares já classificou a ‘ideologia de gênero’ como “o principal mau trato da criança no Brasil” e “como o maior risco para as crianças no Brasil”. Também já fez alertas a uma “ameaça à família tradicional brasileira” e afirmou que “hoje no Brasil tem 70 identidades de gênero”, uma informação falsa. A nova ministra chegou a dizer, em uma palestra deste ano, que a personagem Elsa, da animação ‘Frozen’, seria apresentada como lésbica em uma continuação do filme da Disney, o que tampouco é verdade.

Em vídeo de um culto em 2014, a pastora conta que passou a ser convidada a dar palestras pelo país após uma apresentação de abril de 2013 ter viralizado. Os vídeos encontrados no YouTube com a apresentação ou com trechos de declarações de Damares Alves somam cerca de 800 mil visualizações.

Mas, afinal, o que é ideologia de gênero e porque essa expressão está tão presente nas falas da nova ministra?

Segundo artigo de 2017 dos pesquisadores Richard Miskolci, da Universidade Federal de São Carlos, e Maximiliano Campana, da Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina, a origem do termo remonta à reação direta do então cardeal Joseph Ratzinger — hoje papa emérito Bento XVI — à Conferência Mundial de Beijing sobre a Mulher, organizada pelas Nações Unidas, em 1995, que substituiu o termo ‘mulher’ por ‘gênero’ e apontou que a desigualdade da mulher é um problema estrutural que só poderia ser abordada de “uma perspectiva integral de gênero”. A partir daí, inicia-se uma contraofensiva de setores da Igreja Católica ao que Ratzinger classificou inicialmente de “perspectiva de gênero”. Em 2000, o conceito já aparece em documentos da Igreja como “ideologia de gênero”.

Na América Latina, a discussão ganha força e adesão de outros setores religiosos e conservadores. Em 2007, o relatório da V Conferência Geral do Episcopado Latinoamericano e do Caribe (Celam) afirma que: “entre os pressupostos que enfraquecem e menosprezam a vida familiar, encontramos a ideologia de gênero, segundo a qual cada um pode escolher sua orientação sexual, sem levar em consideração as diferenças dadas pela natureza humana. Isso tem provocado modificações legais que ferem gravemente a dignidade do matrimônio, o respeito ao direito à vida e a identidade da família”.

Em 2010, o advogado argentino Jorge Scala lança o livro A Ideologia de Gênero. O Gênero como Ferramenta de Poder que serve de base à reação conservadora nos países latinoamericanos a iniciativas em favor da população LGBTI, como o casamento igualitário e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo. A obra sustenta que a ‘ideologia de gênero’ tem a finalidade de impor “uma nova antropologia” e que seria “provavelmente a ideologia mais radical da história, posto que – ao impor-se –, destruiria o ser humano em seu núcleo mais íntimo e, simultaneamente, acabaria com a sociedade”.

Consolidação. No Brasil, dois fatos consolidaram o uso do termo ‘ideologia de gênero’ entre grupos conservadores, em especial religiosos, como Damares: o reconhecimento pelo STF (Supremo Tribunal Federal) de que união entre pessoas do mesmo sexo tem o mesmo status do casamento heterossexual, em 2011, e o lançamento do III PNDH (Plano Nacional dos Direitos Humanos), no final de 2009. O decreto presidencial 7.037 de 2009 que institui o plano, inclusive, é alvo de críticas constantes nos vídeos de Damares. Em um deles, a futura ministra descreve o texto legal como “ameaça à família tradicional brasileira”.

Um único trecho do decreto concentra todas as críticas de Damares. Ele diz: “reconhecer e incluir nos sistemas de informação do serviço público todas as configurações familiares constituídas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, com base na desconstrução da heteronormatividade”. O trecho refere-se a uma ações programáticas para garantir “o respeito à livre orientação sexual e identidade de gênero”, mas, para Damares, a desconstrução da heteronormatividade citada seria o mesmo que implementar uma política pública para dizer que “ser hétero não é normal”.

Porém, não é esse o significado do conceito. Heteronormatividade refere-se a um sistema que considera normal apenas os indivíduos que têm atração por pessoas do sexo oposto, considerando desviantes e marginais todas as outras formas de sexualidade. O termo apareceu inicialmente nas obras das escritoras feministas Monique Wittig e Adrienne Rich, em 1980, referindo-se a obrigatoriedade de ser heterossexual. A partir dos anos 1990, a palavra passa a ser usada no contexto acadêmico dos estudos de gênero, como nas obras de Judite Buttler e Stevie Jackson.

Kit gay. Em 2013, em meio à polêmica do projeto Escola Sem Homofobia, apelidado por detratores de ‘kit gay’, Damares afirmou equivocadamente em uma palestra que o livro francês Aparelho Sexual e Cia ( Zep, pseudônimo do suíço Phillipe Chappuis, e Hélène Bruller, 2007) é vendido para crianças de 2 a 3 anos. A obra, porém, é destinada a adolescentes, como explicou a editora da publicação no Brasil, a Companhia das Letras.

Na mesma ocasião, Damares também distorceu a faixa etária do livro Caderno das Coisas Importantes, afirmando que destinava-se a alunos da quinta série (atual, sexto ano), quando, na verdade, o material publicado em 2006 era para jovens do ensino médio (de 15 a 18 anos) e fazia parte de um conjunto de materiais educativos para o Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas.

Em 2016, Damares começa mencionar em palestras e entrevistas a informação falsa de que “hoje no Brasil tem 70 identidades de gênero” e que todas elas têm de ser ensinadas nas escolas para crianças a partir de 3 anos, o que estaria causando “dor na alma das crianças”. O PNE (Plano Nacional de Educação), que determina diretrizes, metas e estratégias para a política educacional, sequer prevê o ensino de identidade de gênero. Nem mesmo o Projeto de Lei 5002/2013, dos deputados federais Jean Wyllys (PSOL-RJ) e da Erika Kokay (PT-DF), que pretende instituir o direito à identidade de gênero, fala em mais de 70 tipos.

Made in USA. No combate à ‘ideologia de gênero’, a futura ministra também já reciclou fake news dos EUA em suas palestras. Damares afirmou que o Conselho Nacional de Pediatria dos Estados Unidos teria publicado uma resolução proibindo de falar sobre ideologia de gênero para crianças porque causaria um “dano muito grande”, mas isso é falso, como já checou o site de checagem norte-americano Snopes.

Na verdade, uma associação de pediatria com menos de 200 membros, a American College of Pediatricians (ACPeds), publicou um comunicado que usava dados distorcidos para classificar a discussão sobre identidade de gênero como um abuso infantil. A ACPeds é uma associação contrária à adoção de crianças por casais homoafetivos e já publicou também informações distorcidas sobre vacinação. À época da veiculação da notícia falsa, a American Academy of Pediatrics (AAP), associação com 64 mil membros, desmentiu e repudiou publicamente o comunicado da ACPeds.

Já em uma palestra desse ano, por exemplo, Damares chega a usar a imagem de uma matéria do UOL de 2015 sobre o livro A bela e a adormecida, do romancista Neil Gaiman como prova de que a Disney prepara uma filme em que Elsa, princesa da animação infantil Frozen, se revelará lésbica e beijará a princesa Aurora, de Bela Adormecida. O livro de Gaiman traz uma releitura do conto de fadas em que as protagonistas são lésbicas, mas não há qualquer relação com Frozen ou com a Disney.

Abusos sofridos. A preocupação com a infância e o combate à violência sexual são motivos que Damares costuma apontar como justificativas para sua cruzada pessoal contra a ‘ideologia de gênero’. Em entrevista ao UOL publicada nesta terça-feira (18), a futura ministra relata abusos sexuais sofridos na infância — dois pastores abusaram dela, em momentos diferentes, dos 6 anos aos 10 anos.

Neste quesito, Damares costuma citar dados verdadeiros nas suas palestras, como “apenas 10% dos abusos sexuais são notificados”, “uma mulher é violentada a cada 11 minutos”. A proporção de subnotificação de estupro refere-se à pesquisa do SIPS (Sistema de Indicadores de Percepção Social) do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), de 2013, e o dado sobre o número de estupros por minuto consta no 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2014.

Para Damares, a escola tem “um papel importante para combater abusos contra crianças” e que é preciso “capacitar professores para identificar violências contra os alunos”, mas sempre “a família deve ser ouvida e consultada”.

Na semana passada, Aos Fatos publicou uma compilação de declarações dos futuros ministros de Jair Bolsonaro (PSL) que continham informações falsas, distorcidas ou que não podem ser comprovadas por fatos. Entre os casos de Damares, foram citadas a distribuição de um ‘kit satânico’ nas escolas e a acusação infundada de que a senadora Marta Suplicy, enquanto prefeita de São Paulo, fez um convênio com uma ONG para ensinar bebês a terem ereção. Confira aqui o que foi investigado.

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