Em setembro de 2018, após o atentado a faca em Juiz de Fora (MG), Jair Bolsonaro, então candidato do PSL, fez uma live direto da cama do hospital na qual sugeriu a existência de uma conspiração do PT para impedir sua vitória à Presidência da República. Desde então, ele repetiu ao menos 84 alegações de fraude nas urnas eletrônicas ou sobre uma suposta fragilidade dos processos de votação no país. Nenhuma delas se provou verdadeira.
Ao cruzar as declarações do presidente sobre o tema desde 2018 com as peças desinformativas que circularam na internet de lá até aqui, Aos Fatos observou a existência de uma via de mão dupla retórica entre Bolsonaro e suas redes de apoiadores. Em alguns momentos, as falas do mandatário antecederam ondas desinformativas; em outros, ele foi responsável por ampliar ou retomar enredos enganosos.
A seguir, narramos os principais fatos sobre ataques coordenados de bolsonaristas ao sistema eleitoral de 2018 a 2022.
SETEMBRO DE 2018
No dia 16, um domingo, o então candidato Jair Bolsonaro estava em um leito do hospital Albert Einstein, em São Paulo, em recuperação da facada sofrida dez dias antes durante um evento de campanha em Juiz de Fora (MG). Naquela manhã, ele havia saído da UTI (unidade de tratamento intensivo) e sido encaminhado à unidade de cuidados semi-intensivos. Faltavam poucos dias para o primeiro turno, e Bolsonaro, por meio de uma transmissão ao vivo no seu Facebook, inaugurou o discurso de que as urnas poderiam ser fraudadas.
“A grande preocupação não é perder no voto, é perder na fraude. Então, essa possibilidade de fraude no segundo turno, talvez no primeiro, é concreta”, afirmou o então presidenciável.
Eleito deputado federal cinco vezes pelo voto eletrônico (entre 1998 e 2014) e duas no pleito por cédulas (em 1990 e 1994) — quando, inclusive, chegou a defender a informatização do processo para evitar fraudes —, Bolsonaro começava a listar argumentos jamais comprovados de que era possível modificar os resultados da votação eletrônica.
Foi daí que surgiu a primeira onda desinformativa sobre fraude em 2018, que sugeria que o PT tentava impedir a eleição de Bolsonaro. Dois dias depois da gravação, a alegação falsa de que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) teria entregado o código de segurança das urnas eletrônicas para uma empresa venezuelana foi compartilhada dezenas de milhares de vezes. Na verdade, a firma citada era britânica, e a licitação mencionada foi cancelada.
Na sequência, as redes bolsonaristas viralizaram a alegação de que a OEA (Organização dos Estados Americanos), um dos órgãos que fiscalizou o pleito, teria identificado fraudes nas urnas para beneficiar o PT. Na realidade, a organização constatou que os equipamentos de votação no Brasil eram seguros.
OUTUBRO DE 2018
A partir da véspera do primeiro turno, os boatos de fraude eleitoral envolvendo o PT se intensificaram, como a suposta apreensão pela PF (Polícia Federal) de urnas adulteradas com votos para Fernando Haddad (PT), o que foi negado pela corporação. Viralizou também que o ex-ministro petista Antonio Palocci havia dito que o partido teria encomendado urnas para fraudar as eleições, o que não constava na sua delação premiada, cujo sigilo foi retirado pelo então juiz Sergio Moro no dia 1º de outubro.
No primeiro turno, dia 7, um vídeo que mostra uma urna supostamente autocompletando votos em Haddad ganhou as redes sociais. A postagem foi compartilhada, por exemplo, por Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente e então candidato ao Senado pelo PSL do Rio de Janeiro. A Justiça Eleitoral desmentiu a publicação antes mesmo de encerrada a votação e mostrou que a gravação continha sinais de manipulação.
Isso, no entanto, não impediu que Bolsonaro usasse o material para subsidiar acusações de fraude. Oito minutos depois de contabilizados os votos, o presidente disse em transmissão ao vivo ter recebido diversas reclamações sobre as urnas e citou o vídeo. Então, disse: “Se tivéssemos confiança no voto eletrônico, já teríamos o nome do futuro presidente da República decidido no dia de hoje”.
Para ilustrar a teoria de que o PT iria fraudar as eleições, circulou ainda a história de uma reunião secreta com a OEA — negada pela organização — e uma ligação do partido com uma empresa contabilizadora de votos, peça de desinformação motivada por uma confusão entre homônimos.
No dia 28, Bolsonaro foi anunciado vencedor do pleito, com 57,8 milhões de votos, cerca de 10 milhões a mais que seu oponente petista. No discurso após a vitória, ele não citou fraude nem contestou o resultado: “As urnas se abriram e nós somos declarados vencedores desse pleito”.
DEZEMBRO DE 2018
A desconfiança no processo eleitoral voltou ao discurso do presidente em 9 de dezembro, durante uma reunião da Cúpula Conservadora das Américas. Bolsonaro disse que não é porque “ganhamos que devemos confiar nesse processo de votação” e que um de seus primeiros projetos de governo seria apresentar uma “proposta de mudança de votação no Brasil”.
MARÇO, JUNHO E OUTUBRO DE 2019
Apesar da ausência de novas alegações enganosas contra as urnas nas redes em 2019, o presidente atacou o sistema eletrônico de votação naquele ano em ao menos três ocasiões: em março, em junho e em outubro.
A última ofensiva coincidiu com o mês em que Evo Morales foi reeleito presidente da Bolívia. Bolsonaro embarcou nas suspeitas de fraude na eleição daquele país para afirmar que as urnas brasileiras são passíveis de fraude e que o voto não é auditável, mas omitiu que o pleito no vizinho é feito com cédulas de papel.
Em setembro, a deputada federal Bia Kicis (PL-DF), uma das expoentes do bolsonarismo no Congresso, apresentou uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) para implantação de cédulas impressas e “conferíveis” no sistema eletrônico de votação do país.
OUTUBRO E NOVEMBRO DE 2020
O argumento de que teria sido eleito no primeiro turno em 2018 se não tivesse havido fraude voltou ao discurso do presidente em 2020, ano de eleições municipais. Em pronunciamento, Bolsonaro disse, pela primeira vez, ter provas de que houve fraude na disputa e que iria apresentá-las “logo”.
O “logo” nunca veio, o que não impediu que se espalhassem pelas redes outras falsidades. Em agosto, por exemplo, circulou a alegação enganosa de que a PF teria descoberto que o presidente venceu no primeiro turno.
Em outubro, uma denúncia apresentada em 2018 e que já havia sido arquivada pelo TSE por falta de provas passou a ser compartilhada para afirmar que Bolsonaro teve mais votos no primeiro turno de 2018. Os ataques serviam à defesa da PEC do voto impresso, que tramitava na Câmara.
Em 15 de novembro, durante o primeiro turno das eleições municipais, um suposto ataque hacker ao sistema do TSE impulsionou narrativas desinformativas: de acordo com Bolsonaro, as urnas eletrônicas não seriam auditáveis (o que é falso), não seriam usadas em nenhum outro lugar do mundo (não procede), e que um ataque hacker a elas para alterar votos seria simples (não é verdade).
A eleição municipal de 2020 acabou com a derrota da maior parte dos candidatos que o presidente pediu votos em lives, e o voto impresso se consolidou como bandeira bolsonarista. O mandatário e alguns dos seus apoiadores passaram a direcionar seus ataques para o TSE e a Luís Roberto Barroso, então presidente da corte. Os ministros do tribunal estariam, segundo Bolsonaro, extrapolando suas competências para negociar a derrubada do chamado “voto auditável” no Congresso.
“E o Supremo agora, não o Supremo, mas um ministro, pelo menos. Talvez esteja negociando isso com alguns partidos políticos. ‘Olha, vamos arquivar teus processos aqui, vamos dar um tempo, e você não aprova o voto impresso’”, disse, em entrevista no dia 7 de junho.
Isso porque a fraude estaria no TSE, que contaria votos em uma “sala secreta”, segundo ele. Essas alegações foram verificadas como falsas.
ABRIL E JULHO DE 2021
Declarações com teor golpista se intensificam após o STF (Supremo Tribunal Federal) anular as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e torná-lo elegível, no dia 15 de abril, como observou Aos Fatos.
No dia 8 de julho, Bolsonaro resgatou, durante conversa com apoiadores, a história de um vídeo que fala de fraude nas eleições de 2014. Nele, a ex-candidata a deputada federal pelo PSL Naomi Yamaguchi, irmã de Nise — médica defensora da cloroquina próxima do presidente —, alega que a apuração minuto a minuto mostraria a manipulação dos resultados do pleito em que Dilma Rousseff (PT) derrotou Aécio Neves (PSDB) no segundo turno, o que não é verdade.
Ele mencionou pelo menos nove vezes o teor do vídeo enganoso desde julho. “Ou fazemos eleições limpas no Brasil, ou não temos eleições”, afirmou no dia 8. O presidente, então, marcou para o dia 29 uma live em que promete apresentar as supostas provas de suas acusações.
Na transmissão ao vivo, porém, Bolsonaro reciclou desinformações já desmentidas. Afirmou, por exemplo, que o caso de um hacker que teria sido preso em Minas Gerais por supostamente invadir o sistema do TSE seria uma prova de que as urnas não seriam invioláveis, o que é falso: o homem foi preso por vazar dados do Serasa e só teve acesso a dados de servidores do tribunal eleitoral.
A alegação viralizou em um vídeo publicado pelo deputado bolsonarista Filipe Barros (PL-PR), relator da PEC do voto impresso.
Simultaneamente, as redes disseminaram publicações enganosas que diziam que o voto impresso seria previsto há décadas, com base em uma lei que não está mais em vigor, e que teria o apoio de políticos influentes — citando um falso posicionamento favorável do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
AGOSTO DE 2021
A escalada de ataques às urnas chega ao ápice em agosto, quando Bolsonaro fez ao menos 84 críticas e declarações enganosas contra o sistema. Durante uma transmissão ao vivo com o deputado governista Filipe Barros (PL-PR) no dia 4, por exemplo, ele distorceu informações de um inquérito sigiloso que apurava invasão ao sistema do TSE em 2018 ao afirmar que a corte eleitoral havia reconhecido uma “invasão hacker a urnas”. Não foi apontado qualquer tipo de alteração ilegal no resultado das eleições.
No dia 10, a PEC do voto impresso foi arquivada na Câmara dos Deputados, após alcançar 229 votos dos 308 necessários para seguir tramitando. A derrota não arrefeceu as críticas de Bolsonaro: entre 11 e 30 de agosto, foram ao menos 19 declarações falsas. Uma das mais repetidas era que a estabilidade dos resultados parciais das eleições de São Paulo em 2020 provaria fraude. Segundo o TSE, isso indica, na realidade, homogeneidade nos votos recebidos ao longo da apuração.
Nas redes sociais, essa narrativa foi reforçada por peças recicladas de outros pleitos. Voltaram, por exemplo, a alegação de que o TSE entregou o código-fonte das urnas eletrônicas a uma empresa venezuelana — se referindo à Smartmatic, que é britânica e que não teve acesso a esses documentos — e a de que mesários teriam descartado votos em 2014, quando na verdade eram papéis que não tinham relação com o resultado da eleição.
SETEMBRO E NOVEMBRO DE 2021
No 7 de setembro, grandes manifestações de rua mobilizaram a base eleitoral bolsonarista e direcionaram para a figura do STF (Supremo Tribunal Federal), em especial o ministro Alexandre de Moraes, os ataques às urnas. Em seu discurso na avenida Paulista, Bolsonaro disse que o sistema eleitoral não oferecia “qualquer segurança”.
Aconselhado pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), o presidente recuou e divulgou, no dia 9, uma carta em que dizia não ter tido a intenção de “agredir os poderes” durante as agitações no feriado da Independência. O tema perdeu espaço temporariamente no discurso do presidente: foram nove declarações contra o sistema até o fim do ano. A fervura baixou também nas redes sociais, e Aos Fatos não verificou postagens sobre fraudes eleitorais até fevereiro de 2022.
No entanto, um novo elemento entrou em cena: as Forças Armadas, que foram convidadas pelo TSE para compor a Comissão de Transparência das Eleições. O presidente, a partir de então, passou a recorrer aos militares para compor o argumento contra o sistema eleitoral.
Em 7 de novembro, Bolsonaro disse: “Tenham tranquilidade, porque o voto eletrônico — calma, fiquem tranquilos — vai ser confiável no ano que vem. Por que vai ser confiável? Porque tem uma portaria lá do presidente do TSE, o Barroso, convidando entidades para participar das eleições, entre elas as nossas, as suas Forças Armadas”.
FEVEREIRO DE 2022
O tema ressurgiu nas redes com um vídeo que dava a entender que Walter Braga Netto, então ministro da Defesa, teria condicionado a realização da eleição de 2022 à aprovação da impressão do voto, mesmo após o arquivamento da PEC.
Ao programa Os Pingos nos Is, da Jovem Pan, Bolsonaro comentou, no dia 16, as perguntas enviadas pelas Forças Armadas ao TSE sobre “possíveis vulnerabilidades” do sistema eleitoral, tema que seria o mote dos capítulos seguintes da crise entre o chefe do Executivo e o Judiciário.
ABRIL E MAIO DE 2022
O argumento de que as Forças Armadas não vão fazer papel de “espectadoras” das eleições ganhou intensidade após declaração do ministro do STF Luís Roberto Barroso em 24 de abril de que os militares estavam orientados a “atacar” o processo eleitoral.
Depois disso, passou a circular nas redes a alegação falsa de que o STM (Superior Tribunal Militar) deu 48 horas para Barroso apresentar “provas das acusações”, o que nunca aconteceu.
Em 27 de abril, voltou a circular a alegação enganosa sobre uma “sala secreta” onde são contados os votos. A apuração, no entanto, já é pública e diversas entidades participam.
Após insinuações de que estaria tornando o processo sigiloso e pouco transparente, o TSE publicou, em 9 de maio, as respostas às Forças Armadas. No documento, a corte apontou inconsistências nas dúvidas dos militares. No mesmo mês, Bolsonaro retomou a teoria do conluio de autoridades para garantir a vitória de Lula nas eleições.
Em meio ao avanço da inflação, Bolsonaro discursou aos berros, durante um evento de empresários do setor de supermercados no dia 16, em São Paulo, e elevou o tom golpista sobre as eleições deste ano. “Podemos ter outra crise. Podemos ter umas eleições conturbadas. Imagine acabarmos as eleições e pairar, para um lado ou pro outro, a suspeição de que elas não foram limpas?”
Em 26 de maio, ele não respondeu se aceitaria uma eventual derrota no pleito presidencial. “Democraticamente, eu espero eleições limpas”, afirmou o presidente.
Segundo a pesquisa Datafolha publicada no dia seguinte, em 27 de maio, 73% dos brasileiros disseram confiar nas urnas eletrônicas.