Parlamentares, influenciadores e apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) têm atacado a Lei da Ficha Limpa com desinformações para defender um afrouxamento da legislação. Publicações do tipo, que foram compartilhadas por nomes como Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Mário Frias (PL-SP), acumularam ao menos 6 milhões de visualizações nas redes.
Os ataques ocorrem desde o final da semana passada, quando o ex-presidente publicou um vídeo para defender a mudança e, assim, permitir que ele seja candidato à Presidência em 2026.
“Estamos trabalhando para esse limite, né? Passa de oito para dois anos de elegibilidade [inelegibilidade]. Aí, sim, eu poderia disputar as eleições em 26. E você vai decidir se vai votar em mim ou não” — Jair Bolsonaro, em vídeo publicado no X, em 7.fev.2025.
Apesar de citar a Lei da Ficha Limpa, Bolsonaro está impedido de concorrer às eleições até 2030 devido a uma condenação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) por abuso de poder político e econômico, após ter usado as dependências e o dinheiro do governo, quando era presidente, para espalhar informações falsas sobre o sistema eleitoral brasileiro.
Dois projetos em tramitação buscam alterar a questão da inelegibilidade:
- O PLP 141/2023, do deputado federal Bibo Nunes (PL-RS), que reduz o tempo de inelegibilidade previsto na Lei das Inelegibilidades dos atuais de três a oito anos para no máximo dois anos. Esse trecho da Lei das Inelegibilidades havia sido alterado exatamente pela Lei da Ficha Limpa, em 2010, estabelecendo as punições atuais, mais severas que as de então;
- E o PLP 14/2025, do deputado federal Hélio Lopes (PL-RJ), que determina que só será inelegível o político com condenação penal em última instância.
Em ambos os casos, Bolsonaro poderia ser beneficiado mesmo tendo sido condenado em junho de 2023. Isso porque a pena imposta a ele pelos ministros do TSE só foi possível por causa da Lei das Inelegibilidades.
Além disso, há jurisprudência no tribunal para que condenados enquadrados em alterações na legislação obtenham eventuais benefícios, mesmo que retroativamente, mas cada caso é analisado individualmente.
Caso o Congresso altere a Lei das Inelegibilidades ao aprovar o PLP 141/2023, por exemplo, Bolsonaro teria um caminho jurídico possível para concorrer em 2026. Para que isso seja possível, no entanto, o texto teria de ser aprovado no máximo a um ano do pleito — ou seja, até 5 de outubro deste ano.
‘Imbecilidades de esquerda’
Até a tarde desta segunda-feira (12), o vídeo publicado por Bolsonaro havia acumulado quase 4 milhões de visualizações no Instagram e no X. No Facebook, a gravação tinha cerca de 40 mil curtidas e pouco mais de 9.000 compartilhamentos.
A partir do posicionamento do ex-presidente, parlamentares e apoiadores engrossaram o movimento por mudanças na legislação. O deputado federal Mário Frias, ex-secretário de Cultura de Bolsonaro, disse que a Ficha Limpa é “uma daquelas imbecilidades de esquerda que a sociedade compra sem sequer refletir”.
Ana Paula Henkel, ex-jogadora de vôlei e comentarista da Revista Oeste, também se posicionou a favor de alterações. “Estou com o presidente Bolsonaro. Eu acho que isso não tem que existir, como é aqui nos Estados Unidos [onde ela mora]. Se existisse a Lei da Ficha Limpa aqui, o presidente Donald Trump não poderia ter concorrido”, afirmou ela durante um programa ao vivo.
Outros sites alinhados ao bolsonarismo e reconhecidos por disseminar desinformação, como Conexão Política e Jornal da Cidade Online, também publicaram textos com críticas à Lei da Ficha Limpa ou apoio à declaração de Bolsonaro.
A movimentação contra a Lei da Ficha Limpa, no entanto, já acontecia entre os parlamentares — não só os bolsonaristas. O jurista Márlon Reis, idealizador da Lei da Ficha Limpa, alegou que o Congresso estava sendo palco de uma “ação em bloco” para tentar liberar a candidatura do ex-presidente Jair Bolsonaro.
No dia 4 de fevereiro, o recém-eleito presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), disse em entrevista acreditar que oito anos de inelegibilidade “é um tempo muito extenso”.
No dia 5 de fevereiro, dias antes da publicação de Bolsonaro, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) criticou a Ficha Limpa a partir de argumentos desinformativos. A postagem alcançou 12 mil curtidas e cerca de 220 mil visualizações no X.

‘Se funcionasse, Lula não era presidente’
Além de gerar pressão política, o vídeo de Bolsonaro impulsionou um argumento desinformativo contra a Lei da Ficha Limpa nas redes. Na gravação, o ex-presidente alega que Lula teria sido “descondenado” para poder disputar às eleições novamente e que, hoje, “a Lei da Ficha Limpa serve apenas para isso: perseguir a direita”.
Usuários então passaram a replicar o argumento de que a Lei da Ficha Limpa não teria nenhuma utilidade, uma vez que Lula conseguiu concorrer e se eleger mesmo sendo um “ladrão condenado” (veja abaixo).

O caso do petista citado por Bolsonaro, no entanto, não tem relação com nenhum problema da Lei da Ficha Limpa. Desde que entrou em vigor, em 2012, o texto não sofreu modificações para afrouxar as penalidades.
A legislação, inclusive, impediu Lula de concorrer em 2018. Naquele ano, o petista havia sido condenado pelo TRF-4 por corrupção e lavagem de dinheiro e, por isso, estava inelegível conforme a Ficha Limpa.
Lula só pôde concorrer em 2022 porque suas condenações foram anuladas pelo STF, que entendeu que seus processos — envolvendo o triplex do Guarujá e o sítio de Atibaia — não foram julgados pelos tribunais competentes.
Por isso, os processos foram remetidos à Justiça Federal e suas condenações foram anuladas. Lula, então, deixou de ser enquadrado na Lei da Ficha Limpa.
A alegação de que a Lei da Ficha Limpa só atinge políticos de direita também não se sustenta. Em 2022, por exemplo, 158 candidatos foram impedidos de concorrer às eleições porque feriam a lei. Desses, oito eram candidatos pelo PT (veja abaixo), um a mais que o PL de Bolsonaro, por exemplo.
Um exemplo notável é o do ex-governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz (PT), cuja candidatura ao cargo de deputado federal foi barrada por unanimidade no TSE. Ele era considerado inelegível porque foi condenado por improbidade administrativa.
Mudança de opinião
Ao defender o afrouxamento da Lei da Ficha Limpa, Bolsonaro contradiz posicionamentos públicos da época em que era presidente. Em março de 2019, por exemplo, ele editou um decreto para incluir os critérios da legislação na contratação de servidores públicos.

Em setembro daquele ano, Bolsonaro vetou um trecho do PL 5.029/2019, que flexibilizava os critérios de análise da elegibilidade dos candidatos com base na Lei da Ficha Limpa. Segundo o veto, a proposta “gerava insegurança jurídica para a atuação da Justiça Eleitoral”.
Os mesmos parlamentares e canais que defendem o fim da Ficha Limpa após o vídeo de Bolsonaro também já se posicionaram a favor da lei em outros momentos.
Em julho de 2022, o deputado Mario Frias citou a lei para criticar o voto em Lula, afirmando que um presidente deve ser “exemplo de retidão e ter ficha limpa”.
Já Ana Paula Henkel possui diversas declarações a favor da medida desde ao menos 2018. Em uma delas, a comentarista criticou o então ministro Celso de Mello, do Supremo, que votou pela inconstitucionalidade do texto em 2019.

Outro lado. A reportagem entrou em contato com as assessorias de Jair Bolsonaro e dos deputados Eduardo Bolsonaro e Mario Frias. O espaço segue aberto caso haja posicionamento. Aos Fatos também enviou mensagem para a equipe da comentarista Ana Paula Henkel, mas não teve retorno.
O caminho da apuração
Aos Fatos analisou os dados de viralização do vídeo de Bolsonaro e procurou por publicações de apoiadores sobre o assunto nas redes. Também buscamos por reportagens sobre a movimentação contra a Lei da Ficha Limpa no Congresso.
Em outra frente, procuramos posicionamentos antigos das personalidades citadas sobre a legislação afim de demonstrar a contradição dos discursos e também procuramos dados para desmentir as alegações de que a Lei da Ficha Limpa só atinge políticos de direita.




