Na noite da última terça-feira (10), o canal ABC News realizou o primeiro — e, ao que tudo indica, o único — debate da corrida eleitoral pela Presidência dos Estados Unidos. O evento foi um palco de desinformação, principalmente por parte de Donald Trump.
Isso, no entanto, não é novidade: o ex-presidente americano foi responsável por disseminar 30.573 informações enganosas durante seu mandato, segundo o contador de checagens do Washington Post. Isso não mudaria agora, quando as pesquisas indicam uma vantagem de Kamala, não é mesmo?
O que nos chamou a atenção, no entanto, foi como as mentiras que surgiram por lá são extremamente parecidas com as que circularam no Brasil durante as eleições de 2022 e que volta e meia ressurgem para atacar o governo Lula.
Imigrantes comendo animais
'Em Springfield, eles [imigrantes] estão comendo cachorros, as pessoas que vieram, eles estão comendo gatos. Eles estão comendo os pets das pessoas que vivem ali. E isso é o que está acontecendo no nosso país' — Donald Trump, em debate no dia 10.set.2024.
A desinformação mais destacada, tanto pela imprensa americana quanto pela brasileira, foi a de que imigrantes de diversos países, como a Venezuela e o Haiti, estariam entrando nos Estados Unidos e comendo animais de estimação.
Essa desinformação é conhecida no Brasil há anos: o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) falou algo semelhante — que venezuelanos comeriam animais para não passar fome em seu país — pela primeira vez em janeiro de 2021 e repetiu a alegação ao menos outras 29 vezes durante seu mandato.
Nos Estados Unidos, a mentira citada pelo ex-presidente americano começou a circular nas redes dias antes do debate. Uma foto de um homem negro segurando um pato enquanto caminhava pela rua foi publicada no X e em outras plataformas com a alegação de que haitianos teriam sido flagrados comendo animais em Springfield, no estado de Ohio.
Além de a polícia local negar que algo semelhante tenha ocorrido, a foto que tem circulado sequer foi registrada na cidade.
Mas como o desmentido nunca atinge o mesmo número de pessoas do que a desinformação, a teoria conspiratória começou a ganhar tração entre os apoiadores de Trump. Montagens e novas versões da mentira foram publicadas nas redes e disseminadas por Elon Musk (veja abaixo) e o senador republicano J. D. Vance.

Ao replicar no debate a mentira que estava viralizando entre seus apoiadores, Trump foi desmentido ao vivo por checadores que acompanhavam o evento.
Aborto de bebês ou recém-nascidos
'O vice-presidente dela [Tim Walz] diz que aborto no nono mês é absolutamente normal. Ele também diz que a execução depois do nascimento é ok' — Donald Trump, em debate no dia 10.set.2024.
Diferentemente da anterior, essa desinformação está no arsenal de mentiras de Trump há anos. Sua frequência de aparições em discursos do ex-presidente, no entanto, tem aumentado. Como Aos Fatos mostrou em reportagem anterior, uma das bandeiras da reeleição do republicano são as políticas voltadas a crianças e adolescentes, como aborto e identidade de gênero.
A declaração, que também foi desmentida ao vivo no debate, é uma distorção de uma fala do ex-governador democrata da Virginia, Ralph Northam, que, em 2019, defendeu uma lei que permitia abortos no terceiro trimestre de gravidez. Em entrevista, o político argumentou que o projeto se referia a bebês com “severas deformidades” ou que não conseguiriam viver fora do útero.
Apesar de Bolsonaro não ter dito algo semelhante, apoiadores e parlamentares ligados ao ex-presidente já disseminaram peças de desinformação semelhantes nas eleições para tentar sugerir que Lula seria favorável ao aborto. O presidente já disse, reiteradas vezes, que é pessoalmente contra o procedimento, mas que o considera uma questão de saúde pública.
A mentira de que o governo ou a esquerda seriam favoráveis ao aborto até os nove meses de gestação — ou até depois do nascimento — também foi divulgada por bolsonaristas em junho deste ano para defender o PL 1.904/2024.
No Brasil, o aborto legal é previsto no artigo 128 do Código Penal, que permite a interrupção da gestação nos casos em que a gravidez traz risco de vida à mãe ou foi resultado de um estupro.
O Ministério da Saúde segue as recomendações da OMS (Organização Mundial de Saúde), que não determina limite gestacional para o aborto. Para a organização, o procedimento pode ser necessário a qualquer momento para poder salvar a vida da gestante.
Kamala usou ponto eletrônico
'Parece que Kamala Harris estava sendo treinada usando fones de ouvido embutidos em seus brincos durante o debate presidencial da ABC contra o presidente Trump' — Publicações nas redes.
Uma das peças de desinformação mais virais das eleições de 2022 foi a história de que Lula teria usado um ponto eletrônico durante o debate da Globo. A mentira circulou entre os bolsonaristas para sugerir que o então candidato teria sido ajudado pela própria emissora.
Uma desinformação similar surgiu nas redes após o debate presidencial americano. Apoiadores de Trump passaram a sugerir que o brinco de Kamala Harris seria, na realidade, um ponto eletrônico do modelo Nova H1 Audio Earrings.

Na verdade, Kamala usava um modelo clássico de brincos da Tiffany & Co com o qual já havia aparecido publicamente inúmeras vezes.
A história mirabolante foi desmentida por organizações de checagem americanas, mas ainda há pessoas que acreditam na teoria. Outras, no entanto, ao serem desmentidas, criaram uma nova mentira: a de que Kamala usou os brincos propositalmente para enganar os apoiadores de Trump, em uma espécie de “jogada de mestre” da democrata para prejudicar a imagem dos trumpistas.
Não é possível afirmar que as mentiras citadas por Trump e seus apoiadores vieram do Brasil — é muito difícil dizer, com certeza, quem primeiro publicou uma mentira na internet.
Mas a repetição de discursos enganosos mostra que as bandeiras desinformativas são semelhantes no Brasil e nos Estados Unidos: tanto aqui quanto lá, apoiadores dos principais representantes políticos da extrema-direita se valem dos mesmos artifícios enganosos para gerar pânico moral e tentar alterar os rumos da corrida eleitoral.