A quatro meses do primeiro turno das eleições municipais, deputados da Comissão de Comunicação agendaram uma reunião a portas fechadas com a Meta, dona do WhatsApp, para cobrar explicações sobre a proibição do uso da API da versão Business do aplicativo de mensagens por partidos e políticos.
A decisão de realizar o encontro sem transmissão da TV Câmara, sem a participação de jornalistas e longe do escrutínio público ocorreu durante um debate na comissão no último dia 5 (assista à íntegra).
As regras da Meta proíbem o uso da API do WhatsApp Business por “políticos ou partidos, candidatos e campanhas políticas”. A empresa também veta a utilização da plataforma por “entidades não governamentais que prestam serviços relacionados a política” e “empresas privadas que fornecem soluções para votação e sistemas para eleições”.
A proibição afeta apenas a plataforma da ferramenta, que é usada por empresas de médio e grande porte para gerenciar grandes volumes de conversas. Já o aplicativo, voltado para empresas menores, é liberado para políticos e campanhas, segundo a Meta.
O requerimento original para discutir o veto na Câmara previa uma audiência pública, mas, antes da votação, o deputado Gustavo Gayer (PL-GO) defendeu a empresa e pediu a retirada da pauta, argumentando que o evento tinha o objetivo de “constranger” a Meta.
O deputado argumentou que “levantar essa discussão na comissão só ajuda quem pretende reforçar medidas que limitam a utilização da plataforma para fins políticos eleitorais”. Como alternativa, sugeriu que, em vez da audiência pública, fosse feita uma reunião fechada com funcionários da empresa.
A vice-presidente da comissão, deputada Dani Cunha (União-RJ), negou que o objetivo fosse constranger a big tech e, ao mencionar o diálogo que mantém com uma diretora da empresa, afirmou que já pensava em sugerir a troca do pedido de audiência pública por uma “conversa fechada com os deputados”.
“Se nós estamos falando de uso político [do WhatsApp Business], esse esclarecimento não é um esclarecimento feito para ser jogado para a imprensa, tampouco distorcido pela imprensa”, opinou Dani Cunha.
Segundo a parlamentar, o interesse nos “esclarecimentos” é exclusivo de quem quer usar o serviço, “no caso, o político ou o partido político”, e não do público em geral.
Sem imprensa. A deputada Dani Cunha (União-RJ), que é vice presidente da Comissão de Comunicação da Câmara e foi autora do requerimento de convocação da Meta (Mário Agra/Câmara dos Deputados)
Colocado em votação, o requerimento para uma audiência a portas fechadas foi aprovado.
Aos Fatos questionou a Meta se a iniciativa dos deputados de fazer o debate a portas fechadas poderia comprometer a transparência, mas a empresa não respondeu essa pergunta. A reportagem também entrou em contato com a deputada Dani Cunha, e o texto será atualizado caso haja resposta.
A RAIZ DA QUESTÃO
O uso da API do WhatsApp Business por partidos e políticos virou assunto na Comissão de Comunicação da Câmara após o Podemos relatar que teve uma plataforma de comunicação bloqueada pela empresa.
Segundo a presidente da legenda, deputada Renata Abreu (SP), o partido contratou um serviço de CRM (customer relationship management, ou gestão de relacionamento com o cliente), para “poder falar com os seus filiados”, que hoje seriam cerca de 800 mil. “É como qualquer loja”, comparou a dirigente partidária, sublinhando a necessidade de ter “um número central de atendimento”.
Homologado pela Meta, o programa contratado precisava de acesso à API do WhatsApp Business para funcionar. Um CRM é um gestor de contatos, que permite tanto o acesso a interações prévias com clientes como a customização das mensagens enviadas.
“De um dia para o outro, bloquearam a plataforma. Bloquearam. Porque na política da Meta incluíram isso, que não podemos usar o WhatsApp Business para partido político. A gente não está falando de disparo para candidatos, para políticos”, enfatizou Abreu, considerando que as políticas da empresa equiparam políticos a “organizações criminosas, terroristas”.
O bloqueio do uso da API do WhatsApp Business por partidos é uma decisão da própria Meta, já que não existe uma ordem do TSE que diga como a empresa deve oferecer seus serviços.
O tribunal determina apenas que é dever das empresas adotarem e tornarem medidas “para impedir ou diminuir a circulação de fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que possam atingir a integridade do processo eleitoral”.
Problema partidário. A presidente nacional do Podemos, Renata Abreu (SP), que relatou que plataforma contratada pelo partido para se comunicar com filiados foi derrubada pela Meta (Vinicius Loures/Câmara dos Deputados)
“A nossa preocupação é chamar atenção para o tema, porque mesmo que a gente precise legislar para evitar que isso aconteça, que a gente seja comparado com terroristas, essa é a ideia”, disse a deputada.
Renata Abreu não é da Comissão de Comunicação da Câmara, mas compareceu à reunião do último dia 5 e relatou o episódio a convite da presidente Dani Cunha, que assinou o requerimento cobrando explicações da Meta. Aos Fatos entrou em contato com Abreu, e a reportagem será atualizada caso haja posicionamento.
PROPAGANDA EM MASSA
O acesso à API do WhatsApp Business permite integrar as conversas a bancos de dados, promover a automatização dos disparos de mensagens, conectar o canal de atendimento a robôs, dentre outras funções. Por isso, o uso da plataforma pode facilitar os disparos em massa de mensagens, que poderiam contribuir para campanhas coordenadas de disseminação de desinformação ou ataques a opositores, por exemplo.
A ferramenta também pode ajudar no tratamento de dados para categorizar os eleitores a fim de promover o microdirecionamento de propaganda política — atividade que, quando envolve “tecnologias inovadoras ou emergentes”, é considerada de “alto risco” pelo TSE.
Utilizar ferramentas de automação para se comunicar com filiados de um partido não caracterizaria, necessariamente, a distribuição ilegal em massa de mensagens políticas. No entanto, a flexibilização da regra poderia abrir brechas para campanhas coordenadas, alerta o coordenador do Laboratório de Humanidades Digitais da UFBA (Universidade Federal da Bahia), Leonardo Nascimento.
Na avaliação de Nascimento, a comunicação em massa com filiados poderia se tornar uma “primeira etapa” de uma cadeia, já que os correligionários que recebessem a mensagem de seu partido poderiam repassá-la adiante de “forma artesanal”, para contatos de outras esferas e nos grupos em que participam.
A discussão, diz, se torna ainda mais preocupante considerando que as eleições deste ano serão as primeiras com a funcionalidade Comunidades do WhatsApp, que permite criar canais com até 5.000 usuários.
“Essas coisas têm em comum a possibilidade de ampliar o alcance político inimaginável de mensagens diretas dadas por essas pessoas”, alerta o pesquisador.
“O WhatsApp Business e a API do WhatsApp, com todo esse ecossistema de ferramentas terceirizadas ao seu redor, favorecem um uso político muito específico, que, por exemplo, está fundamentado no disparo de mensagens em massa, na disseminação de desinformação, como a gente tem visto, ou seja, isso agrava um ambiente que hoje já é absolutamente complexo e requer bastante da nossa atenção”, avalia Viktor Chagas, professor e pesquisador da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Na avaliação de Chagas, a possibilidade de a API permitir que um mesmo número de WhatsApp possa ser administrado por uma equipe de pessoas poderia dificultar “saber exatamente quem é que está controlando” os disparos, para buscar uma eventual responsabilização na Justiça.
Chagas pondera que a ferramenta “permite um conjunto de usos que podem, inclusive, em alguma medida, serem benéficos para o ambiente político”, fornecendo dados de campanha aos candidatos e permitindo aos eleitores conhecer mais profundamente as propostas, por exemplo.
Entretanto, o pesquisador lembra que, quando o WhatsApp é usado como ferramenta de marketing, “a gente precisa entender quais são esses usos”, porque existem regras para a propaganda política eleitoral.
“Num ambiente como esse, absolutamente sujeito a esse sistema de criptografia, como é que você vai regular, por exemplo, a campanha negativa, aquela campanha que ataca um outro candidato? Não há como regular isso.”
A proibição dos disparos em massa virou norma do TSE após o veto ser defendido pelo próprio WhatsApp em uma audiência pública em 2019.
Na ocasião, um representante da empresa sugeriu estender a proibição de propaganda eleitoral via telemarketing, que já existia, às “ferramentas que ofereçam mensagens eletrônicas em massa automatizadas ou através de spam” para evitar a disseminação de desinformação, em referência às eleições de 2018.
As mensagens em massa pelo WhatsApp entraram na mira do TSE naquele ano após reportagem da Folha de S.Paulo revelar que a campanha do então candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PL) havia sido beneficiada pela estratégia. O WhatsApp admitiu o problema no ano seguinte.
Em dezembro de 2019, o TSE publicou a resolução que proibiu a propaganda “por meio de disparo em massa de mensagens instantâneas sem consentimento da pessoa destinatária”. O veto foi mantido em normas seguintes, incluindo na resolução de fevereiro deste ano, que vale para as eleições municipais de outubro.