Denúncia sobre atuação da Usaid contra Bolsonaro é baseada em desinformação

Compartilhe

As acusações de um ativista norte-americano sobre a suposta intervenção da Usaid (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) para impedir a reeleição do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2022 impulsionaram uma teoria da conspiração entre políticos brasileiros.

Sem apresentar provas, o ex-funcionário do Departamento de Estado Michael Benz acusou a Usaid de gastar “dezenas de milhões de dólares dos contribuintes americanos” para pressionar o Congresso brasileiro a aprovar leis contra a desinformação e financiar advogados a atuar junto ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) “para reprimir os tuítes de Bolsonaro e mensagens no WhatsApp e no Telegram”.

“Se a Usaid não existisse, Bolsonaro ainda seria o presidente do Brasil e o Brasil ainda teria uma internet livre e aberta”, afirmou Benz, no último dia 4, ao podcast War Room, do estrategista político e ex-assessor de Donald Trump Steve Bannon.

Com base nessas alegações, os deputados federais Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Gustavo Gayer (PL-GO) começaram a coletar assinaturas com o objetivo de instalar uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar a suposta interferência americana nas eleições brasileiras.

Print mostra letreiro de podcast que informa, entre os logos do War Room e da Real America’s Voice, que Mike Benz é diretor executivo da Foundation for Freedom Online. Benz é um homem branco careca, com barba e sobrancelhas grossas, que veste paletó cinza sobre camiseta branca. Ao fundo se vê imagem que remete à sala de um apartamento.
Em entrevista ao podcast War Room, Benz acusou Usaid de interferir nas eleições no Brasil, mas não apresentou provas (Reprodução)

As declarações de Benz, entretanto, não se sustentam. A campanha de Bolsonaro em 2022 não foi afetada por nenhuma lei de combate à desinformação, já que o Congresso nunca concluiu a votação do chamado “PL das Fake News” (PL 2.630/2020). O texto só entrou na pauta da Câmara em 2023. Também não há registro de que o ex-presidente tenha sido impedido de publicar no X naquele pleito.

Ao comentar a suposta ação da Usaid no Brasil, Eduardo Bolsonaro foi além e ressuscitou acusações baseadas em distorções da realidade para reforçar a denúncia de Benz.

“A influência da Usaid no Brasil ocorre por meio do financiamento de ONGs e veículos de mídia alinhados a uma agenda específica”, escreveu o parlamentar, em nota, citando entre os supostos beneficiários de verbas da agência o movimento ativista Sleeping Giants Brasil, a agência de notícias Alma Preta e agência de checagem Lupa — organizações que não receberam o dinheiro citado (leia mais abaixo).

Twitter Files

A referência da declaração do deputado é um suposto estudo publicado por uma organização do ativista norte-americano Michael Shellenberger, um dos responsáveis pela divulgação dos chamados Twitter Files — vazamento de documentos internos da empresa, ocorrido em dezembro de 2022, após sua aquisição por Elon Musk.

Os Twitter Files foram usados para sustentar a acusação de que a antiga gestão da plataforma atentava contra a liberdade de expressão por meio da moderação de conteúdo, marcando o surgimento da teoria da conspiração sobre um suposto “complexo industrial da censura”.

Em abril do ano passado, o caso respingou no Brasil, com a divulgação de ordens de remoção de conteúdo enviadas ao X pelo Judiciário brasileiro. O episódio deu início à investida de Musk contra o STF (Supremo Tribunal Federal), que no final de agosto culminou na suspensão da plataforma pelo ministro Alexandre de Moraes.

O caso Twitter Files Brazil uniu brasileiros investigados pelo STF a lobistas norte-americanos e inaugurou uma retórica, explorada pela campanha de Donald Trump, de que o Brasil teria se tornado uma ditadura com o apoio de Joe Biden e Kamala Harris.

A alegação, agora, começa a ser usada por círculos próximos do republicano para desmontar a Usaid, agência criada na década de 1960, em meio à Guerra Fria, com o intuito de centralizar a ajuda não militar dos Estados Unidos aos países em desenvolvimento. No Brasil, o caso fez ressuscitar correntes de desinformação que alegam ter havido fraude nas eleições de 2022.

Teoria da conspiração

Intitulado “O papel do governo dos Estados Unidos no Complexo Industrial da Censura no Brasil”, o relatório que traz as denúncias citadas por Eduardo Bolsonaro foi publicado pelo site Civilization Works, de Shellenberger, em 1º de outubro do ano passado.

O relatório define o que chama de “Complexo Industrial da Censura do Brasil” como “uma grande rede de ONGs, verificadores de fatos e agentes estatais”, sustentando que essa estrutura “parece acolher sugestões, treinamento e apoio financeiro do seu homólogo norte-americano”.

“Ao apoiar a censura brasileira, o governo federal dos Estados Unidos e seus subsidiários envolveram-se em intervenções estrangeiras impróprias, visando especificamente eleições e políticas públicas”, defendem os autores.

Emulando o formato de publicação acadêmica, o documento embasa sua conclusão em informações fora de contexto e falsas correlações entre fatos. Diversas fontes citadas pelo suposto estudo são artigos publicados por uma organização fundada pelo próprio Mike Benz em 2022: a Foundation For Freedom Online (em português, Fundação para a Liberdade Online).

O caso citado por Eduardo Bolsonaro — que envolve o coletivo Sleeping Giants e as agências Alma Preta e Lupa — é exemplo de como o documento produz desinformação:

  • O relatório defende que essas organizações teriam recebido fundos da Usaid por intermédio do ICFJ (Centro Internacional para Jornalistas, na sigla em inglês);
  • O repasse teria sido feito por meio do projeto Jogo Limpo 2.0, que selecionou projetos de combate à desinformação;
  • No entanto, o projeto citado não foi financiado por nenhum órgão do governo norte-americano;
  • Toda a verba usada para patrocinar as iniciativas jornalísticas selecionadas veio de uma empresa que a própria teoria da conspiração aponta como vítima do suposto esquema de censura: o YouTube.

“Nenhum valor da Usaid recebido pelo ICFJ foi utilizado no Brasil”, diz a organização em nota enviada ao Aos Fatos.

Segundo o ICFJ, a entidade recebeu financiamento da agência entre 2021 e 2024, mas esses recursos foram totalmente aplicados em projetos específicos realizados em outros países — e não em financiamento institucional.

No site do ICFJ, é possível constatar exemplos de emprego de verbas da Usaid que sequer têm relação com o tema da desinformação, como é o caso da publicação de um guia de segurança para jornalistas que trabalham na fronteira entre o México e os Estados Unidos.

O deputado também citou como suposto indício de intervenção um financiamento da Embaixada dos Estados Unidos recebido pelo Instituto Vero, do influenciador Felipe Neto.

Segundo divulgou o youtuber, a verba — US$ 24.965 — foi obtida por meio de edital para um projeto em parceria com a Fundação Amazônia Sustentável, que realizou oficinas de criação de conteúdo com jovens de oito municípios do Norte do país.

“A Usaid poderia ter trabalhado diretamente com o instituto sem problema algum, mas isso sequer aconteceu”, declarou Felipe Neto, após surgir uma onda de desinformação sobre o caso.

Follow the money

Outra entidade citada pelo relatório que nunca enviou dinheiro de contribuintes americanos para o Brasil é a Meedan, organização sem fins lucrativos que desenvolve tecnologias para a distribuição de informações confiáveis por meio de aplicativos, como o WhatsApp.

O relatório publicado pelo site Civilization Works cita que a ONG recebeu verbas da NSF (Fundação Nacional de Ciências, na sigla em inglês), desinformando ao insinuar que esse fato poderia ter relação com uma parceria firmada entre a organização e o TSE.

“A Meedan nunca usou fundos da NSF ou de qualquer outra agência do governo dos Estados Unidos para apoiar projetos no Brasil. O financiamento que recebemos da NSF foi usado para apoiar parceiros de verificação de fatos que trabalham nos Estados Unidos”, informou a organização, cujo histórico de parcerias inclui também fundações e empresas privadas — entre elas a Meta, que se alinhou ao governo Trump.

A prestação de contas do projeto americano, publicada no site da NSF, indica que a iniciativa financiada pelo convênio não tinha sequer relação com política. O objetivo era permitir, por meio da tecnologia, que usuários de serviços de mensagem pudessem checar notícias enganosas sobre saúde.

A tecnologia empregada nos Estados Unidos é similar à que foi usada nas duas últimas eleições no Brasil pelos projetos Confirma e Confia, fruto da parceria da Meedan com o TSE. “Nosso trabalho no Confirma foi apoiado pela Meta, e usamos financiamento organizacional irrestrito para o Confia”, esclareceu a organização.

As iniciativas criaram um bot de WhatsApp para distribuir conteúdos de agências de checagem — incluindo do Aos Fatos — a eleitores inscritos, não tendo qualquer poder de remover notícias.

“A Meedan nunca teve qualquer papel em iniciativas para censurar conteúdo online”, ressaltou o CEO da organização, Ed Bice, ao Aos Fatos.

A mesma estratégia de desinformação ocorreu em relação à 360/Open Summit, cúpula realizada em Londres, em 2019, pelo DFRLab (Laboratório de Pesquisa Forense Digital) do Atlantic Council, e ao relatório "Desinformação nas Democracias: Fortalecendo a Resiliência Digital na América Latina", cujas conclusões foram discutidas no evento.

Homem branco, grisalho e de óculos, faz apresentação sobre um palco branco para plateia. Participantes têm laptops sobre as mesas e estão sob uma luz azulada. Ao fundo, há um telão com fundo azul em que se lê o nome do evento e a hashtag #digitalsherlocks
Realizada em Londres em 2019, a 360/Open Summit reuniu especialistas de vários países para discutir o combate à desinformação (Reprodução/YouTube)

O relatório publicado pelo Civilization Works ressalta que o think tank recebeu verba de diversos órgãos do governo dos Estados Unidos e afirma que “vários eventos realizados pelo DFRLab pressionaram pela censura generalizada no Brasil”. O documento cita o caso de um painel apresentado na cúpula, no qual estudiosos da desinformação teriam afirmado “que mensagens privadas criptografadas eram uma ameaça à democracia no Brasil”.

O texto é construído de modo a insinuar que esse evento teria relação com um suposto banimento, pelo WhatsApp, de “centenas de milhares de contas no Brasil” e com a ordem de suspensão do Telegram por determinação do ministro Alexandre de Moraes em 2022.

Além de não apresentar nenhuma prova ou indício que sustente a correlação — a fonte da afirmação é um artigo publicado por Mike Benz —, o relatório também mente ao sugerir que o painel teria sido bancado pelo governo de Joe Biden.

“O financiamento para essa cúpula veio de uma variedade de doadores publicamente divulgados. O governo dos Estados Unidos não forneceu financiamento para esses painéis”, afirmou um porta-voz do Atlantic Council ao Aos Fatos. “De 2018 a 2019, nenhum subsídio do governo dos Estados Unidos financiou o trabalho do DFRLab no Brasil”, acrescentou.

Estranho no ninho

O relatório “Complexo Industrial da Censura do Brasil” também levanta suspeitas sobre organizações que, embora tenham recebido financiamento do governo americano por meio da Usaid, possuem relação com o partido de Trump.

É o caso do Cepps (Consórcio para o Fortalecimento de Eleições e Processos Políticos), fruto de uma parceria entre três organizações não governamentais:

  • Ifes (Fundação Internacional para Sistemas Eleitorais);
  • NDI (Instituto Democrático Nacional);
  • e IRI (Instituto Republicano Internacional).

Apesar de ser oficialmente uma instituição apartidária, o IRI tem laços históricos com o Partido Republicano, de onde provém boa parte de seus quadros — incluindo seu atual presidente do conselho de administração, o senador Dan Sullivan.

“O Cepps formou parcerias importantes com o TSE por meio de organizações intermediárias no Brasil”, diz o estudo, que cita como exemplo um trabalho da Ifes — parceira do consórcio — com o TSE “para discutir estratégias de censura através de uma iniciativa para ‘preservar a integridade da informação e a confiança pública nas eleições’.”

Realizado em agosto de 2023 — após a derrota de Bolsonaro, portanto —, o evento reuniu, durante dois dias, representantes de 13 países em Brasília para discutir o combate a notícias falsas.

Em um auditório de carpete vermelho e painel de madeira por trás de um telão em branco, diversas autoridades estão dispostas lado a lado em uma bancada que indica se tratar do Encontro Internacional Integridade a Informação e Confiança nas Eleições. No centro, falando em um microfone de mesa, está o ministro Alexandre de Moraes, um homem branco e careca de terno escuro.
Cerimônia de encerramento do Encontro Internacional Integridade da Informação e Confiança nas Eleições, organizado em parceria da IFES com o TSE (Antonio Augusto/Secom/TSE).

“O evento teve o objetivo de promover trocas entre autoridades eleitorais de diferentes países sobre os desafios que estavam enfrentando com informações falsas e desinformação relacionadas às eleições e comparar estratégias para mitigar o problema, como expor narrativas falsas que estavam ganhando força nas mídias sociais, explicando por que eram falsas e apresentando os fatos para manter os eleitores bem informados”, informou a Ifes ao Aos Fatos.

Segundo a fundação, outra informação citada no relatório — de que teria firmado uma segunda parceria com o TSE em outubro do mesmo ano — não tem fundamento. “A Ifes não realizou atividades nem eventos no Brasil em outubro de 2023”, diz a instituição.

A fundação esclarece que a única atividade realizada no Brasil que contou com o patrocínio da Usaid foi uma missão técnica de observação das eleições de 2022, que não teve qualquer poder para interferir nos resultados do pleito.

Os observadores analisaram o ambiente e o processo eleitoral, como o funcionamento das seções, os testes de integridade, a identificação biométrica dos eleitores, a transmissão e gestão dos resultados e a acessibilidade dos locais de votação, dentre outros aspectos, tornados públicos em um relatório enviado ao TSE.

Outro lado

Aos Fatos procurou, por email, os gabinetes dos deputados Eduardo Bolsonaro e Gustavo Gayer, além das organizações de Benz e Shellenberger, para pedir posicionamento, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.

O caminho da apuração

A reportagem transcreveu a entrevista de Mike Benz usando o Escriba, ferramenta desenvolvida pelo Aos Fatos. Também analisou publicações nas redes sociais e o relatório sobre o “complexo industrial da censura do Brasil”.

Aos Fatos procurou, então, organizações internacionais citadas nas denúncias para pedir esclarecimentos sobre projetos realizados no Brasil. Por fim, entrou em contato com os responsáveis por levantar suspeitas sobre o papel da Usaid no Brasil para pedir posicionamento.

Referências

  1. Aos Fatos (1, 2, 3 e 4)
  2. X (@BolsonaroSP)
  3. ICFJ (1, 2 e 3)
  4. X (@felipeneto)
  5. U.S. National Science Foundation
  6. Meedan (1 e 2)
  7. Atlantic Council
  8. Tribunal Superior Eleitoral (1 e 2)
  9. Usaid

Compartilhe

Leia também

falsoÉ golpe site que promete regularizar CPF para evitar bloqueio do Pix

É golpe site que promete regularizar CPF para evitar bloqueio do Pix

falsoÉ falso que pai de Vitória confessou assassinato da filha e se entregou à polícia

É falso que pai de Vitória confessou assassinato da filha e se entregou à polícia

falsoPosts compartilham vídeo editado para sugerir que Lula foi humilhado em MG

Posts compartilham vídeo editado para sugerir que Lula foi humilhado em MG