Decisão da ANPD pode piorar situação no ambiente digital para crianças e adolescentes

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Problemas complexos exigem soluções igualmente complexas. É por isso que é difícil encontrar uma saída para o problema enfrentado pela ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) com o tratamento de dados de usuários por grandes empresas de tecnologia — em especial no que se refere a crianças e adolescentes.

Recentemente, o Aos Fatos noticiou que a autoridade reguladora determinou que o TikTok deverá passar a exigir cadastro de todos os usuários que desejarem acessar a rede.

A nova exigência é consequência de uma apuração que descobriu que menores de 13 anos — que não deveriam sequer conseguir acessar os conteúdos, de acordo com a política do próprio aplicativo — estariam fazendo uso da funcionalidade “feed sem cadastro” para burlar as regras da plataforma.

Para delimitar de forma mais clara os protocolos de tratamento de dados de usuários, em especial os de crianças e adolescentes, a ANPD concluiu que o “feed sem cadastro” deverá ser eliminado.

A ByteDance, responsável pelo TikTok, também deverá adotar meios para garantir que seus usuários não mintam sobre a própria idade — e, consequentemente, acessem conteúdos impróprios. Afinal, a solução mais rápida para jovens com muito tempo em mãos e pouca consciência na cabeça é usar informações falsas para continuar consumindo dancinhas e entregando seus dados para a plataforma.

É importante lembrar nesse caso que só há a necessidade de proteger aquilo que existe. Se os dados não existem, não há o que proteger. A ANPD deveria, portanto, definir planos que evitassem que os dados fossem coletados em primeiro lugar, e não submeter jovens a entregarem mais informações pessoais de graça.


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Decisões como essa não estão restritas ao Brasil. Nos últimos anos, houve nos Estados Unidos uma reprodução em série de leis que obrigavam a verificação da idade de usuários. A plataforma de vídeos adultos Pornhub, por exemplo, foi compelida a bloquear acessos em vários estados americanos em decorrência disso.

Apesar de parecerem bem intencionadas, decisões que obrigam usuários a informarem idade, gênero, orientação sexual ou local de residência podem criar uma série de problemas:

  • Hoje, a maior parte dos sites detém dados apenas sobre preferências de consumo. Ao obrigar que a população ceda mais informações, as entidades reguladoras dão às plataformas o direito de armazenar mais dados — alguns deles considerados sensíveis;
  • Com mais dados disponíveis, as plataformas conseguem cruzar de forma mais confiável informações que podem identificar usuários;
  • Bloqueados por mecanismos de verificação de idade, os usuários passam a buscar outras plataformas que ainda não solicitam informações pessoais, mas que também compartilham conteúdo impróprio;
  • Usuários também são impelidos a criar mecanismos para burlar os bloqueios impostos pelas plataformas, o que pode introduzir outros problemas de governança de dados;
  • Por fim, as regras abastecem mais bancos de dados com informações sensíveis, recurso valioso para criminosos.

Segundo a Nota Técnica nº 50 da ANPD, a ordem de retirada do “feed sem cadastro” e a necessidade de que crianças e adolescentes sejam obrigadas a se identificar decorrem do fato de que “mesmo que sejam aprimorados os mecanismos de verificação de idade, a plataforma continuará a ser utilizada indiscriminadamente na versão sem cadastro, com tratamento irregular de dados pessoais de crianças e adolescentes, minando assim os esforços de proteção em outras frentes”.

A mesma nota, entretanto, indica que a empresa é capaz de identificar padrões de comportamento que permitam determinar a idade de uma pessoa.

O “feed sem cadastro”, conclui a autarquia, seria a maneira usada para acessar o conteúdo da rede sem que ela própria consiga ter controle sobre os usuários. “Se não há usuário para banir, não há como controlar” é o raciocínio.

As intenções da ANPD, não tenho dúvidas, são legítimas, e a missão do órgão é louvável e necessária. À primeira vista, elas vão em conformidade com o que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) preconizam: que os dados de jovens sejam tratados de forma especial.

A questão é que, na era da coleta massiva de informações e do capitalismo de vigilância, a privacidade protegida pela Constituição é alcançada quando o usuário se encontra camuflado em meio a milhares de seus pares, não atomizado via cruzamentos de bases. Provavelmente voltaremos a discutir esse tópico no futuro, a depender da solução apresentada pelo TikTok.

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