Não é verdade que números do Portal da Transparência do Registro Civil indicam que a curva de mortes pela Covid-19 esteja caindo de forma acentuada no país desde meados de julho, como afirma a colunista da Gazeta do Povo Cristina Graeml em vídeo postado nas redes do jornal em 2 de agosto (veja aqui). Consulta feita por Aos Fatos na plataforma dos cartórios nesta segunda-feira (17) mostra que não houve queda considerável no volume de óbitos diários da doença nas datas citadas e que a trajetória ainda se assemelha a um platô.
Isso acontece, pois, embora confiáveis, as informações da plataforma estão em constante atualização, especialmente em datas mais recentes, como as que Graeml extraiu para seu vídeo. O prazo legal para o envio de informações pelos cartórios ao portal é de 14 dias, mas pode chegar a três meses, dependendo da região.
Além disso, Corregedorias-Gerais da Justiça de estados como Ceará e Amazonas editaram normas locais por causa da pandemia para permitir o sepultamento com a guia da funerária, algo que também interfere no prazo inicial de 14 dias para envio do dado. Nada disso é explicitado pela colunista na gravação, o que conduz a interpretações distorcidas sobre a situação da pandemia.
A diferença nas datas de coleta do dado é bastante significativa. Exemplo disso é o dia 29 de julho, em que Graeml ressalta terem sido registradas 304 mortes. Nesta segunda-feira, a plataforma mostrava 812 óbitos na data. Como a gravação foi postada no dia 2 de agosto, é provável que os dados desse período ainda estivessem em processamento.
Procurada, Cristina Graeml alegou que as atualizações não influenciam em nada a análise do vídeo, que teria ênfase no pico da pandemia em maio. A Gazeta do Povo disse que o conteúdo é “opinativo” e que colunistas têm “liberdade de opinião”.
A gravação foi apagada das redes do jornal após a publicação desta checagem. Até então, o vídeo reunia 53.467 visualizações no Instagram e 55.928 no YouTube na terça-feira (18). No Facebook, o post tinha ao menos 59.000 compartilhamentos. Versões que permanecem circulando em perfis pessoais foram marcadas com o selo DISTORCIDO na ferramenta de verificação da rede social (entenda como funciona).
DISTORCIDO
...e desde o dia 22 de julho a queda [de registros de morte por Covid-19] começou a ser mais acentuada, 600 e poucos registros de morte por dia, depois 500 e poucos, 400 e poucos. No dia 29, já estava em 304 mortes por dia, um número bem menor...
...a pandemia teve o pico lá em maio, entrou no chamado platô em junho, início de julho, e agora está já numa curva descendente, está caindo…
Em vídeo publicado nas redes sociais da Gazeta do Povo em 2 de agosto, Cristina Graeml, colunista do jornal, faz uma análise sobre a curva de mortes pela Covid-19 com base nos dados do Portal da Transparência do Registro Civil. Segundo ela, o pico de óbitos da pandemia teria ocorrido em maio e que há uma queda acentuada nos registros desde meados de julho. Tal conclusão é enganosa, pois os dados da plataforma estão em constante atualização, especialmente os mais recentes. Isso não é informado no vídeo.
Apesar de o Registro Civil ser uma fonte oficial de dados, o prazo legal para a CRC Nacional (Central Nacional de Informações do Registro Civil) registrar um óbito na plataforma é de 14 dias. Todavia, com a pandemia, Corregedorias-Gerais de Justiça de alguns estados prolongaram ainda mais esse período, que, em algumas regiões, pode chegar a dois meses, caso do Ceará. Além disso, a Lei nº 6.015/1973 permite que pessoas que moram em cidades que ficam a mais de 30 km de distância de um cartório tenham até três meses para fazer o registro do óbito de um familiar.
Para provar que a atualização permanente é um fator essencial a ser considerado na análise dos dados dos cartórios, Aos Fatos comparou os números de mortes nas datas informadas no vídeo com os extraídos em consulta à plataforma nesta segunda-feira (18). Foram analisadas as estatísticas por data de registro do óbito e por data da morte, já que no vídeo não fica claro qual das duas métricas disponíveis foi usada pela colunista.
Na gravação, Cristina Graeml diz que a plataforma apontava 304 mortes registradas em 29 de julho, mas, nesta segunda, já eram 1.096 atestados de óbito anotados naquela data. A queda gradual na curva da média móvel que ela narra também não é visível hoje na plataforma, que indica uma trajetória praticamente retilínea, um platô em patamar elevado.
A alegação de que houve queda acentuada nas mortes a partir de meados de julho também não se sustenta se analisados os registros por data do óbito. Na coleta feita nesta segunda, a plataforma indicava 884 mortes em 29 de julho, não mais 304, como dito no vídeo. A média móvel também evidencia um platô com pequena alta, não uma curva descendente.
Todos os demais dados citados por ela, como as médias no meses de junho e julho, e até a data que ela indica como pico de mortes na pandemia (25 de maio), já foram atualizados em patamares superiores, como constatado ao consultar a plataforma nesta segunda.
Um exemplo disso é o dia 22 de julho, em que Graeml afirma marcar o início de uma queda acentuada nos registros, com “600 e poucos por dia”. Nesta segunda, a plataforma indicava 950 mortes e média móvel semanal de 923 óbitos naquela data.
É possível notar ainda nos gráficos acima que a curva descendente começa cerca de uma semana antes da data da consulta, mais um indicativo de que os dados mais recentes ainda não estão consolidados.
Aos Fatos procurou Cristina Graeml para explicitar as distorções geradas pela análise dos números no vídeo. Ao responder, ela reconheceu que houve alta nos registros do dia 29 de julho, mas negou que a atualização dos dados desminta a premissa inicial da gravação, de que o pico de mortes na pandemia se deu em maio. A jornalista não comentou especificamente a alegação de que a curva estaria em queda acentuada desde meados de julho.
“Na análise não houve ênfase ao prazo de 14 dias que os cartórios têm para informar sobre os registros de óbito à central que atualiza o portal, porque isso influenciaria somente o comportamento do final da curva, não influenciando a análise do período já consolidado, em especial, o pico da curva, que foi o foco da coluna”, afirma ela em um trecho da resposta, que pode ser lida na íntegra aqui.
Mais adiante, ao comentar os prazos mais alongados para a atualização da plataforma, a jornalista diz que "não chega a ser relevante, para fins estatísticos, o percentual de mortes registradas nos cartórios das localidades mais distantes, por serem cidades com população muito menor" e que esses dados não influenciariam "o comportamento da curva".
A Gazeta do Povo, que veiculou a análise nas suas redes sociais, respondeu que “o vídeo é um conteúdo opinativo da jornalista Cristina Graeml” e que seus colunistas “têm liberdade de opinião”. O jornal disse ainda respeitar “as análises de nossos colunistas, pois sabemos que trabalham com dados verdadeiros e fontes confiáveis”, mas que as opiniões “não refletem necessariamente a opinião da Gazeta do Povo”.
Após a publicação desta checagem, o vídeo foi removido das contas do jornal no Instagram, no Facebook e no YouTube. Versões dele, entretanto, continuam circulando em perfis pessoais nas redes.
Metodologia. No vídeo, Graeml também contrapõe os dados do cartórios aos divulgados diariamente pelo Ministério de Saúde para sugerir que os primeiros seriam mais confiáveis. Para isso, ela cita informações verídicas, como problemas na notificações de casos em secretarias estaduais, que não permitem afirmar com precisão se os óbitos ocorreram no mesmo dia em que foram informados ao ministério. Entretanto, ela omite que esse tipo de limitação também está presente na base do Registro Civil.
Além disso, a gravação não explica outra diferença fundamental entre as plataformas: os dados do Ministério da Saúde são atualizados conforme saem os diagnósticos positivos para Covid-19 após a morte do paciente. A base do Registro Civil só traz essa alteração caso a família peça ao cartório a retificação da causa da morte no atestado.
Narrativa. O uso da plataforma dos cartórios para desacreditar a gravidade da pandemia no Brasil tem sido frequente nas redes sociais. A primeira peça de desinformação do tipo checada por Aos Fatos surgiu em maio e sustentava que os dados provariam que os estados inflaram as estatísticas de mortes por Covid-19. A alegação enganosa foi repetida dias depois, com foco no Ceará, que estava na época em fase crítica do surto da doença.
Ainda em maio, os dados de 2020 também foram empregados em comparações com o volume de mortes no país em anos anteriores. A narrativa ressurgiu em julho, quando números da plataforma basearam um cálculo enganoso do jornalista Alexandre Garcia. Depois, passa a aparecer com frequência em diversos tipos de comparação entre períodos que não informam que os dados não estão consolidados (veja aqui, aqui, aqui, aqui).
Após o Brasil superar cem mil mortos pela doença, essa retórica enganosa ganhou ainda mais força, tendo sido usada em distorções para fazer crer que a marca não foi alcançada ou que os óbitos de Covid-19 não passariam de 25 mil.
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