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🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Abril de 2017. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Dado sobre falsas denúncias de estupro não tem amparo oficial

Por Tai Nalon

19 de abril de 2017, 17h00

O Senado divulgou em suas redes nesta quarta-feira (19) uma sugestão de projeto legislativo cuja premissa é tornar crime hediondo e inafiançável falsa acusação de estupro. A ideia tomou tração por se basear em estatísticas segundo as quais 80% das denúncias de estupro são falsas. Ao citar o número, o proponente disse se basear em "uma notícia", sem entrar em detalhes.

"Devido à impunidade, diversas mulheres se utilizam desse artifício para atingir homens, que têm sua vida arrasada, muitas vezes são estuprados na cadeia, sofrem linchamento público, perdem o emprego e dignidade", diz o proponente em sua justificativa.

Aos Fatos checou a informação em que se baseia o argumento principal para a elaboração da proposta e buscou dados oficiais de registros de abuso sexual tanto no Brasil quanto no exterior. Porém, devido à ausência de estatísticas mais básicas para comprovar ou refutar qualquer afirmação categórica a respeito de falsas acusações de estupro em território nacional, classificou a afirmação como INSUSTENTÁVEL.

Veja o que checamos.


INSUSTENTÁVEL

80% das denúncias de estupro são falsas.

Argumento frequente em páginas conservadoras, a afirmação de que 80% das denúncias de estupro são falsas tem origem em uma reportagem do jornal Extra de maio de 2012. A matéria atribui à psicóloga do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Glícia Barbosa de Mattos Brazil a informação de que, nas 13 varas de família do município do Rio de Janeiro, 80% das denúncias são falsas.

Os números, entretanto, se referem a registros de abuso infantil em situações de acusação de alienação parental e briga pela guarda de crianças. "Na maioria dos casos, a mãe está recém-separada e denuncia o pai para restringir as visitas", diz a psicóloga na reportagem em questão.

No mesmo texto, o Extra cita também dados da Vara da Infância e da Adolescência de São Gonçalo (RJ), segundo a qual 50% dos registros de abuso sexual infantil são forjados.

Uma busca rápida no Google pela afirmação "80% das denúncias de estupro são falsas" leva a uma série de páginas que usam a reportagem do Extra como fonte, porém sem mencionar que o dado não é nacional, tampouco se refere a casos de estupro de maneira geral.

Algumas páginas também citam reportagem de fevereiro de 2013 do site JCNet, de Bauru (SP), que afirma que, das 100 ocorrências de estupros registradas por ano na cidade, cerca de dez envolvem crimes com autoria desconhecida. Desses dez, cinco são revelados falsos após o início das investigações. Os dados são da Delegacia da Defesa da Mulher do município.

Não é possível extrapolar qualquer uma dessas informações, de caráter local, para o plano nacional. Tampouco é seguro usar o número como subsídio para estatísticas gerais de registros de estupro, já que o primeiro se refere a violência sexual infantil e o segundo, a casos em que o acusado é desconhecido.

Dados oficiais. Não existem dados oficiais no país que deem conta de subsidiar a afirmação — seja para confirmá-la ou para derrubá-la. As estatísticas brasileiras mal dão conta de agregar registros de abuso sexual, já que a subnotificação é grande.

No entanto, para fins de colocar as estatísticas do Rio de Janeiro em perspectiva, levantamento do Ministério Público do Estado revelou no ano passado que 6% dos casos de estupro registrados em 2015 foram a julgamento. Isso significa que, enquanto houve 4.887 casos de estupro oficialmente registrados em todo o Estado só em 2015, só 291 investigações foram concluídas. As demais sequer conseguiram localizar o acusado.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2015 a 2011, que mantém a contabilidade oficial dos vários tipos de crimes praticados no país, verificou que, entre 2010 e 2013, o número de casos de estupros registrados manteve trajetória ascendente  —  de 41.180 para 51.090. Em 2014, porém, houve menor número de notificações do que 2013 e 2012–47.646 registros.

O mesmo documento, entretanto, demonstra que não é possível determinar se há de fato queda ou aumento nos casos, uma vez que esses registros podem corresponder a apenas 35% do montante real de abusos.

No exterior. Da mesma maneira que estatísticas oficiais são inconclusivas, estudos acadêmicos que pretendem abraçar um universo muito amplo de pessoas também devem ser analisados com ceticismo, já que comumente se alimentam desses mesmos dados.

Um artigo publicado em 2010 por pesquisadores da Universidade do Massachussets e da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, averiguou os 136 relatos de violência sexual registrados entre 1998 e 2007 numa universidade americana. Do total, encontrou oito casos de falsa acusação — ou seja, 5,9%.

O estudo também ressalta que a escassa literatura científica sobre o tema apresenta resultados relativamente próximos a esse, mesmo trabalhando com universos diferentes. Os casos de falsas acusações de estupro nos EUA, conforme o artigo, vão de 2,1% do total de registros desse tipo de violência a 10,9%.

Os pesquisadores ainda citam as diretrizes do FBI para lidar com casos de estupro. Segundo o Uniform Crime Reports Handbook, "a recusa da vítima em cooperar ou o fracasso em encontrar o acusado não são motivos para considerar o caso 'inconclusivo'". As diretrizes dizem ainda que um caso "inconclusivo" não é necessariamente um caso "sem fundamento" e, portanto, falso. Em 1997, o FBI afirmava que 8% dos registros de estupro eram inconclusivos.

Conforme reportagem do jornal britânico The Guardian, no Reino Unido, entre 2012 e 2013, houve 3.692 ações penais motivadas por estupro, das quais 2.333 resultaram em condenções. A mesma reportagem também aponta que o órgão que regula e fiscaliza os inspetores de polícia britânicos diz que mais de um quarto dos casos de estupro e abuso sexual não são registrados criminalmente.

Jurisprudência. O STJ (Superior Tribunal de Justiça) tem vasto material que assegura ao depoimento da vítima de estupro valor de prova se for coerente com as demais evidências colhidas nos autos. Isso significa que um relato sozinho dificilmente condenará o acusado à maior pena, mas, se houver elementos adicionais acolhidos pela Justiça como prova, o relato da vítima também assume caráter contundente. Essas diretrizes são de particular imporância para proteger vítimas em casos de violência infantil, já que vestígios materiais da ocorrência do delito são raros.

Selo. Aos Fatos dá o selo INSUSTENTÁVEL àquelas afirmações que não podem ser refutadas nem confirmadas. Como não há dados oficiais tampouco literatura científica que deem conta de diagnosticar a quantidade de casos de falsas acusações de estupro no país, é dessa forma que Aos Fatos classifica a declaração.


Esta reportagem foi publicada de acordo com a metodologia anterior do Aos Fatos.

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